Artigo Destaque dos editores

Declaração de ofício da prescrição.

Uma visita a Pontes de Miranda e Câmara Leal

Exibindo página 2 de 2
26/04/2008 às 00:00
Leia nesta página:

5. ALGUMAS QUESTÕES SUPOSTAMENTE CONTROVERTIDAS.

Fixada a adequação da declaração de ofício da prescrição às razões de ser do fenômeno, cumpre analisar, rapidamente, a título de encerramento, algumas questões pontuais apontadas pela doutrina, sem, no entanto, qualquer intenção de esgotar o assunto, o que não caberia, destarte, neste breve estudo.

A primeira questão, reverenciada por parte da doutrina, diz respeito a suposta imoralidade em, reconhecida a prescrição, acabar-se por perpetuar uma situação antijurídica, privilegiando possível devedor que foi, premeditadamente, mal-pagador.

A tal argumento não se aterá em profundidade a presente explanação, uma vez que de cunho demasiadamente subjetivo, bastando citar que, se por um lado é verdade que poderão existir devedores – diga-se mal-pagadores – que se beneficiem do reconhecimento de ofício da prescrição de forma supostamente "imoral", é também verdade que poderão existir credores que maliciosamente posterguem o litígio, no intuito de dificultar a defesa do devedor, diante do perecimento e dificuldade de produção de provas em razão do escoar do tempo.

Da mesma forma, àqueles que acreditam que o reconhecimento de ofício da prescrição constitui espécie de "sistema de proteção ao prescribente", basta que se diga que seu fundamento, conforme assevera Miranda (2000), "(...) é proteger o que não é devedor e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente ela aparecia (...)" [32] Grifos no original.

Por fim, não se pode deixar de considerar que o credor, nesses casos, terá dado causa, por meio de sua displicência, a eventual benefício que possa advir da prescrição ao devedor, de forma que se afigura um tanto incondizente perquirir-se a respeito da moralidade do último, diante da cabal contribuição do primeiro ao seu – supostamente – "imoral" benefício.

Outra crítica de necessário enfrentamento, diz com a temerosa afirmação de que, com o reconhecimento de ofício da prescrição, o devedor estaria impedido de cumprir a obrigação objeto da ação.

A esse respeito impende, primeiramente, perfazer a distinção entre duas situações.

Na primeira situação, verificada a prescrição e, sendo o direito objeto da mesma oponível apenas pela ação então prescrita, ainda que o direito permaneça intacto, uma vez que a prescrição não o extingue, tornar-se-ia, inexistindo outra forma de o exigir, em termos práticos, indiscutivelmente inócuo – frise-se, nas ações em que o seu cumprimento houver de ser exigido apenas por meio da ação prescrita.

Nesses casos, se obrigação resta ao réu, é de cunho meramente moral, estranha, portanto, ao judiciário e que, dessa forma, não a vincula à prestação jurisdicional.

Nesse contexto, se, necessitando atender aos anseios de sua consciência, o devedor desejar cumprir a obrigação objeto a ação prescrita, poderá fazê-lo fora do juízo, não ficando, pelo reconhecimento de ofício da prescrição, em absoluto, impedido de cumprir a obrigação.

Não bastasse tal argumento, ocorre que nem perante o próprio juízo restará impedido o devedor de adimplir a respectiva obrigação, forte no fato de que a alteração ora estudada não vedou a utilização, pelo réu, do instituto da renúncia, conforme será esclarecido adiante.

A segunda situação diz respeito a, quando verificada a prescrição de determinada ação, o direito a ela atinente permanecer exigível por meio de outra ação, contra a qual não tenha ocorrido a prescrição (como ocorre, por exemplo, com os títulos cambiários).

Nesses casos, prescrita uma das ações, a obrigação poderá exigida por meio da restante, de forma que, uma vez mais, o reconhecimento de ofício da prescrição não obsta, de forma alguma, o cumprimento da obrigação pelo devedor.

Ainda que assim não fosse, de igual maneira ao ocorrido no outro caso, a possibilidade da renúncia à prescrição permanece intacta e, portanto, plenamente invocável pelo réu que deseje satisfazer a respectiva obrigação na primeira demanda – medida que se afigura de enorme economia processual, por sinal.

Outro enfrentamento necessário diz respeito à invocação de possível inconstitucionalidade na modificação em comento, forte no princípio da liberdade, em razão de alguns juristas consideram o reconhecimento de ofício da prescrição uma espécie de "invasão" da esfera pessoal daquele que a deveria alegar.

Quanto a essa crítica, verifica-se plenamente resolúvel por meio de uma interpretação sistemática do ordenamento pátrio.

Com efeito, o que se verifica nessa questão, é a ocorrência de um aparente conflito principiológico. Assim que, enquanto a Constituição Federal assegura a autonomia privada, frente à disponibilidade dos direitos patrimoniais, a eternização dos conflitos, conforme examinado retro, é intrinsecamente incompatível com o Estado Democrático de Direito, de forma que a "paz social" e a "segurança jurídica" são também princípios, ainda que não expressos, uma vez que inerentes à forma democrática de Estado.

Assim sendo, não há qualquer inconstitucionalidade na modificação em comento, uma vez que, levando-a a efeito, o legislador não fez mais do que, diante de um conflito principiológico aparente, fazer prevalecer o princípio que melhor atende aos objetivos maiores do Estado, fortes na consecução da tão sonhada sociedade livre, justa e solidária [33], incompatível, frisa-se uma vez mais, com a possibilidade de duração ad eternum dos conflitos.

Corroboram com o acima exposto as colocações de Leal (1959), segundo o qual "mesmo quando a lei tem por fim prover a um interesse privado, ela age precipuamente no interesse público, visto como essa é a sua função, pela influência que o equilíbrio das relações privadas exerce sobre a ordem pública" [34]. Adaptou-se o trecho segundo as atuais normas de acentuação gráfica.

Por fim, necessário perfazer referência, ainda que breve, à manutenção da possibilidade de renúncia da prescrição por parte do réu.

Com efeito, tal assunto tem sido uma das questões de maior polêmica perante a comunidade jurídica, a respeito do que vários autores têm se manifestado pela incompatibilidade entre tal possibilidade e o reconhecimento de ofício da prescrição.

Nesse sentido ocorre que, ainda que existisse, aparentemente, certo grau de incompatibilidade entre o reconhecimento de ofício da prescrição e a possibilidade de sua renúncia, tal incompatibilidade afigura-se plenamente superável a partir de uma análise sistemática da mudança ocorrida, a qual leve em consideração os princípios do contraditório e da ampla defesa e, principalmente, não confunda a declaração de ofício da prescrição com a sua decretação de plano [35].

Nesse ínterim, é preciso que se atente ao fato de que, conforme excelentemente explorado por Bueno (2006), a correta interpretação e aplicação da alteração em comento carece do exame do princípio do contraditório, conforme suas palavras:

"a escorreita aplicação do §5° do art. 219 depende, em todo e em qualquer caso, da incidência do princípio do contraditório na acepção que a doutrina mais recentemente tem dado a ele, qual seja, de cooperação, de colaboração, de um princípio que, por definição, coloca lado a lado na atividade jurisdicional, autor, réu e o magistrado." [36] Itálicos no original. Negritou-se.

Outra não foi a intenção do legislador, ao levar a efeito a alteração em comento, conforme resta evidenciado na Exposição de Motivos que deu origem à Lei 11.280/06:

"Sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da Justiça, faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa." [37]

Assim sendo, antes que se utilize uma interpretação puramente lógico-gramatical, perante a qual, efetivamente, o reconhecimento de ofício da prescrição e a possibilidade de sua renúncia seriam incompatíveis, afigura-se inarredável que se efetue uma interpretação sistemática de ambas as normas, levando em conta os princípios que as regem.

Assim sendo, sob o enfoque da necessária observação do princípio do contraditório, portanto, assegurar-se a manifestação do réu, por meio da renúncia à prescrição, quando do seu reconhecimento de ofício, não apresenta qualquer incompatibilidade, porquanto se está, em última análise, seguindo estritamente os mandamentos de um princípio de ordem constitucional que, como tal, afigura-se de necessária observação por toda e qualquer norma jurídica processual, o que inclui, logicamente, a norma alteradora.

Sob o mesmo prisma, dessa forma, verifica-se que a possibilidade de reconhecimento de ofício da prescrição não investe o magistrado de uma espécie de "poder supremo" de contradizer a vontade das partes, porquanto a manifestação de ambas, autor e réu, deverá ser assegurada, em consonância com o princípio do contraditório, na mesma linha de raciocínio anterior.

Com efeito, a declaração de ofício da prescrição traduz-se na desnecessidade de provocação por parte do interessado, não à privação da manifestação das partes a seu respeito. Nesse ínterim, é de clareza solar a argumentação de Kloh (2006), abaixo colacionada:

"(...) o reconhecimento da prescrição de ofício somente retira do devedor o ônus da alegação, mas não modifica a natureza fática da prescrição (o que pode determinar a necessidade de atividade probatória mais intensa e delongada), tampouco torna irrelevantes as alegações feitas por credor e devedor acerca dos fatos que cercam a situação prescricional." [38]

Conforme retro-citado, portanto, verifica-se que o reconhecimento de ofício da prescrição não diz respeito a uma espécie de "decretação prematura" de sua ocorrência, não se admitindo, dessa forma, a sua decretação de plano, mas apenas depois de ouvidas as partes [39].

Assim procedendo, ou seja, oportunizando às partes a manifestação a respeito da decisão em comento, o magistrado estará prestigiando o princípio do contraditório, situação em que, não apenas restará assegurado o direito do réu à renúncia da prescrição, como as pertinentes alegações do autor a respeito de causas suspensivas ou interruptivas de seu curso.

Por todo o exposto, resta evidente que a possibilidade de renúncia não só é compatível com a declaração de ofício da prescrição, como a oportunização da manifestação do réu a esse respeito é essencial à correta aplicação da alteração em comento.

Dessa forma, aplicando-se uma interpretação sistemática à alteração em comento, ela vem harmonizar-se perfeitamente com o instituto da renúncia, bem como com as possíveis alegações do autor da causa, assegurando, por conseguinte, plenamente, o princípio do contraditório.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme excelentemente evidenciado pelo Exmo. Sr. Ministro Marcio Thomaz Bastos, na exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei n° 11.280/06, a onda reformista do direito processual civil, como um todo, teve o "escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa" [40].

Nesse ínterim, verifica-se que a introdução da possibilidade de declaração de ofício da prescrição efetivamente afinou-se com o objetivo maior da chamada "Reforma da Justiça", porquanto atribuiu, conforme reiteradamente invocado pelo Exmo. Sr. Ministro Marcio Thomaz Bastos, nos projetos das leis alteradoras do Código de Processo Civil (CPC), a tão almejada "racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional".

Com efeito, a modificação em comento, possibilitando que o Juízo de primeiro grau reconheça, de plano, a prescrição da demanda, em verdade impede que esta tramite indevidamente, até as vias jurisdicionais superiores, para então ser alegada, conforme faculta o artigo 193 do Código Civil de 2002. Nem seria preciso referir que tal tramitação indevida constituir-se-ia absolutamente atentatória às referidas racionalidade e celeridade da atividade jurisdicional e, em verdade, verdadeira inversão de suas funções.

Nesse sentido, inclusive, foi o parecer do Exmo. Sr. Deputado Maurício Rands, relator do projeto da referida lei na Câmara, representando a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, ao pronunciar-se a respeito de tal modificação: "A providência é salutar, uma vez que (...) não raro o seu reconhecimento tardio ocasionava a tramitação inócua do processo, gerando uma extinção do feito que poderia ter ocorrido muito antes (...)", conforme suas próprias palavras.

Quanto à garantia dos direitos ao contraditório e à ampla defesa, também reiterada pelo Exmo. Sr. Ministro Marcio Thomaz Bastos, em praticamente todos os projetos das leis alteradoras do CPC, verifica-se que se encontra plenamente assegurado aos jurisdicionados, porquanto, conforme supra-explanado, o direito de renúncia e o direito de alegação de quaisquer das causas interruptivas ou suspensivas da prescrição permanecem intactos frente à modificação examinada.

Desse modo, seja por harmonizar-se com a natureza pública do instituto e, sob esse aspecto, atribuir verdadeira efetividade aos fins a que se destina, seja por se confirmar enquanto matéria de ordem pública e que, como tal, pode – e leia-se "deve" – ser declarada de ofício em qualquer grau de jurisdição, bem como, por fim, preservar por completo o direito ao contraditório e à ampla defesa, o reconhecimento de ofício da prescrição veio, em última análise, tornar congruente o instituto com as suas próprias razões de ser, razão pela qual se afigura salutar a alteração em comento, a despeito das severas críticas aventadas pela doutrina.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM Filho, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. In Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 744, p. 725-750, outubro de 1997.

BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. V. 2. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Reconhecimento de Ofício da Prescrição: Uma Reforma Descabeçada e Inócua. In Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 43 set/out. 2006.

LEAL, Antônio Luís da Câmara. Da prescrição e da decadência. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1959.

MATTIETTO, Leonardo. A nova sistemática da prescrição civil – declaração de ofício pelo juiz e renúncia do devedor. In Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 44 nov/dez. 2006.

MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de direito privado. 1ª ed., São Paulo: Bookseller, t. VI, 2000.

THEODORO Júnior, Humberto. A exceção de prescrição no processo civil. Impugnação do devedor e decretação de ofício pelo Juiz. In Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 41 maio/jun. 2006.


Notas

01 Provérbio chinês.

02 CÂMARA, 2006, p. 110.

03 LEAL, 1959, p. 17-18 passim.

04 LEAL, op. cit.

05 LEAL, op. cit., p. 26 passim.

06 LEAL, op. cit., p. 26.

07 LEAL, op. cit., p. 35.

08 LEAL, op. cit., p. 25.

09 MIRANDA, 2000, p. 135.

10 MIRANDA, op. cit., p. 146.

11 MIRANDA, op. cit., p. 34-35 passim.

12 MIRANDA, op. cit., p. 302-303 passim.

13 MIRANDA, 2000, p. 146.

14 MIRANDA, 2000, p. 302.

15 LEAL, op. cit., p. 80.

16 LEAL, op. cit., p. 33.

17 MIRANDA, op. cit., p. 145.

18 MIRANDA, op. cit., p. 302.

19 MIRANDA, op. cit., p. 311.

20 MIRANDA, op. cit., p. 316.

21 LEAL, op. cit, p. 94.

22 MIRANDA, op. cit., p. 316.

23 LEAL, op. cit, p. 92-96.

24 LEAL, op. cit., p. 67.

25 MIRANDA, op. cit. p. 136.

26 MIRANDA, op. cit. p. 294

27 LEAL, op. cit., p.31

28 LEAL, op. cit., p. 69.

29 LEAL, op. cit., p. 68-69.

30 LEAL, op. cit., p. 80.

31 LEAL, op. cit., p. 80.

32 MIRANDA, op. cit., p. 135.

33 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 3°, inciso I.

34 LEAL, op. cit., p. 29.

35 KLOH, 2006, apud MATTIETTO, 2006, p. 13.

36 BUENO, 2006, p. 109.

37 EM nº 00184 – MJ, de 19 de novembro de 2004.

38 KLOH, 2006, apud MATTIETTO, 2006, p. 13.

39 MATTIETTO, 2006, p. 13-14.

40 EM nº 00184 – MJ, de 19 de novembro de 2004.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Lívia Heinzmann

bacharelanda do curso de Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HEINZMANN, Lívia. Declaração de ofício da prescrição.: Uma visita a Pontes de Miranda e Câmara Leal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1760, 26 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11197. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos