Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a diferença ente a “pescaria probatória” e a “serendipidade”, abordando suas características e consequências no que se refere a produção probatória e ao processo penal. Procuramos fazer uma análise acerca do reconhecimento da i/licitude da prova e entendimentos jurisprudenciais sobre a temática e seus reflexos processuais.
Palavras-chave: Pesca probatória. Serendipidade. Fishing expedition. Provas. Licitude das provas.
INTRODUÇÃO
A distinção entre os institutos “pesca probatória” e “serendipidade” é de grande importância, pois se relaciona diretamente com as provas no âmbito do processo penal e suas respectivas (i)licitudes.
As provas desempenham um papel vital nesse contexto, uma vez que são definidas como todos os elementos que evidenciam a existência e a veracidade de um fato, com o objetivo de persuadir o juiz. Por isso, é essencial que o juiz, como autoridade encarregada de analisar as provas, realize uma avaliação meticulosa dos sistemas de apreciação probatória, especialmente no que diz respeito à caracterização da prova ilícita e suas exceções.
Nesse cenário, consideram-se ilícitas as provas obtidas em desacordo com normas constitucionais ou legais, as quais podem ser excluídas do processo. Com base na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), faremos uma análise do fenômeno conhecido como pescaria probatória (fishing expedition), estabelecendo uma distinção entre este e o conceito de serendipidade dentro do processo penal.
“PESCA PROBATÓRIA”
O fenômeno da pescaria probatória é uma prática proibida no ordenamento jurídico brasileiro, pois não se admite investigações especulativas e indiscriminadas, sem objetivo certo ou declarado. Na lição do Ministro Gilmar Mendes, a prática da fishing expedition consiste em “investigações genéricas para buscar elementos incriminatórios aleatoriamente, sem qualquer embasamento prévio”.
Constata-se a prática da pesca probatória, sobretudo a partir de mandados genéricos de busca e apreensão, bem como em interceptações telefônicas, com representações utilizando esse meio de prova em longa escala, sem individualização dos números de telefones. Ademais, é possível também verificar sua ocorrência nos pedidos de prisões cautelares, hipótese em que a prisão é usada como estratégia de “fishing” não apenas para conseguir uma confissão, mas também para alcançar declarações sobre fatos até então desconhecidos, transformando a investigação em uma busca que se estende permanentemente.
Portanto, pode-se afirmar que a vedação ao fishing expedition decorre da proteção contra a autoincriminação, conforme expressa o direito constitucional que assegura que ninguém tem obrigação de produzir provas contra si mesmo. Referida vedação deve ser interpretada de modo restrito, uma vez que com o início de uma investigação pela autoridade policial, mesmo que relacionada a um crime completamente diverso do que é eventualmente descoberto, é válida a busca por provas que possam "casualmente" levar a uma nova investigação, fazendo com que o procedimento siga por uma trilha investigativa até então desconhecida e em relação a um delito que a autoridade sequer considerava em uma análise preliminar.
SERENDIPIDADE
É possível considerar que o fenômeno da serendipidade se refere a uma descoberta inesperada, durante uma investigação legalmente instaurada, acerca de evidências sobre um crime que inicialmente não era o foco/objetivo. Isso é válido mesmo que não exista conexão ou continuidade com o crime que surge posteriormente, desde que não haja desvio de finalidade nas diligências que deram origem aos elementos probatórios.
Os limites entre essas duas práticas são analisados em diversas jurisprudências dos Tribunais Superiores e, dependendo de como as provas foram obtidas, os juízes podem considerar sua legalidade ou não. De acordo com a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os indícios de autoria antecedem as medidas invasivas, não se admitindo em um Estado Democrático de Direito que primeiro sejam violadas as garantias constitucionais para só então, em um segundo momento, e eventualmente, se justificar a medida anterior, sob pena de se legitimar verdadeira fishing expedition.
Isso posto, é importante ressaltar que a principal diferença entre a pesca probatória e o encontro fortuito é que, na primeira, a autoridade responsável pela investigação toma a iniciativa de utilizar meios investigativos sem base suficiente, sem que haja indícios que justifiquem as medidas adotadas, a fim de pescar qualquer elemento hábil a impulsionar uma futura investigação criminal diversa. Enquanto no segundo, o elemento probatório é encontrado por acaso, mas dentro dos limites de ordem judicial limitadora.
Desse modo, observa-se que a prática da pesca probatória contribui para a perpetuação da seletividade penal, eis que, em se tratando de investigação especulativa e indiscriminada, os alvos mais propensos a eventual abordagem dos agentes investigatórios são os indivíduos socialmente e historicamente marginalizados. Em contrapartida, constata-se que o Superior Tribunal de Justiça considera que as provas oriundas do encontro fortuito são lícitas e admitidas no ordenamento jurídico brasileiro.
Logo, a serendipidade é admitida pela jurisprudência, e consideram-se válidas as provas encontradas ao acaso pelos agentes da persecução penal sobre infrações penais até então desconhecidas, durante a execução de medidas investigativas autorizadas para a investigação de outros crimes, desde que haja nenhum desvio do propósito na realização dos procedimentos. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não aceita prova de pesca probatória, porque resulta de uma investigação especulativa cega, sem objetivo específico ou declarado, o que representa uma prática que contribui para a continuação de práticas socialmente discriminatórias que se refletem no âmbito do Direito Processual Penal, caracterizando-se, pois, as provas obtidas pelo fishing expedition como nulas.
Não podemos admitir um jogo de vale tudo e nem a máxima de que os fins justificam os meios na seara do Direito.
Diante o exposto, a prova no processo se destina a informar ao julgador acerca da validade do enunciado proposto na acusação ou no pedido de prestação jurisdicional, devendo o conjunto probatório estar intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais e legais que os disciplinam. Todavia, comumente, na prática, muitos dos meios e procedimentos de investigação, podem resultar na violação da esfera privada humana, constituindo colisão entre o direito à intimidade e a incansável busca por uma verdade “real” (verdade possível). Portanto, deve-se verificar, para a admissibilidade de provas, a preservação das garantias fundamentais, bem como a necessidade de uma decisão judicial fundamentada e coerente com o caso concreto, a fim de evitar violações dos direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Extrai-se do estudo apresentado que a distinção entre a “pesca probatória” e serendipidade é de extrema importância no âmbito do processo penal, notadamente no que concerne às provas lícitas e aceitas em nosso ordenamento jurídico e na jurisprudência, a fim de que as regras processuais sejam observadas e o processo penal expresse a higidez esperada.
De salientar, inclusive, que a diferenciação decorre de critérios muito bem delineados e independe da discricionariedade das autoridades policiais e judiciais no caso concreto. Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça considera que as provas oriundas do encontro fortuito são lícitas e admitidas no ordenamento jurídico brasileiro, desde que não haja desvio de finalidade na execução das diligências. Contudo, o STJ não admite as provas oriundas da pesca probatória, pois decorrem de uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, representando uma prática discriminatória.
Deste modo, temos que a serendipidade encontra consonância com as normas processuais penais constitucionais, sendo que o mesmo raciocínio não pode ser afirmado em relação a “pesca probatória” que resulta em provas nulas.
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