4. Violência institucional
Uma das espécies de violência existentes atualmente, é a violência institucional, espécie da qual trata-se este artigo, e que ocorre com muita frequência principalmente nas grandes cidades, onde ocorrem as grandes operações policiais. Mas não é só nesses lugares que ela ocorre.
De acordo com a Lei nº 14.321/2022, violência institucional ocorre quando o agente público submete uma vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”. (BRASIL, 2022)
A chamada “vitimização secundária” (ou violência institucional) tem especial gravidade, já que ela é causada pelos agentes públicos que deveriam proteger a vítima no curso da investigação ou do processo. Configura-se esse tipo de violência quando algum funcionário público realiza ação discriminatória ou humilhante a algum cidadão. Sempre que as ações de um membro das polícias, carcereiro ou das forças armadas violam os direitos humanos, estamos diante de um caso de violência institucional.
Geralmente as vítimas são pessoas de grupos minoritários, ou que se encontram em situação de exclusão social, são os jovens dos subúrbios, coletivo LGBTQIAPN+, as comunidades indígenas, minorias étnicas, etc. Homens negros são alvo preferencial de ações abusivas das polícias.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o perfil das vítimas no país não tem apresentado mudanças significativas e prevalece entre homens adolescentes e jovens, pretos e pardos e 99,2% das vítimas eram homens. Em 2021 foram cerca de 84,1% de todas as vítimas com raça/cor identificados, sendo a maioria pretos e pardos, enquanto brancos 15,8%.
No Brasil, a preocupação em neutralizar e punir os denominados criminosos, na prática, faz com que o jovem negro, de baixa escolaridade e morador de bairros periféricos seja apontado pelas autoridades e por parcela significativa da população como os principais responsáveis pela insegurança. É comum o jovem afrodescendente ser rapidamente considerado como “líder de facção”, “ladrão” ou “chefe do tráfico” pelas autoridades de segurança pública (notadamente das polícias) e do sistema de justiça criminal se apresenta como algo aparentemente óbvio (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022).
Há um equívoco em dizer que a razão da população negra ser morta se dá por conta de serem maioria, por serem mais pobres, ou por serem a maioria moradores de regiões periféricas, onde a economia gira em torno da atividade criminosa. Esses argumentos foram construídos pelo racismo estrutural presente na sociedade brasileira.
Nos últimos três anos, dois casos de violência policial contra negros tiveram muita repercussão. Em abril de 2019 no subúrbio de Guadalupe no Rio De Janeiro, o carro de uma família negra onde haviam cinco pessoas foi alvejado com nada menos que 80 tiros disparados por militares do Exército. Todos sobreviveram, com exceção do motorista, o músico Evaldo Rosa dos Santos de 51 anos, que morreu no local. Luciano Macedo, catador de materiais recicláveis, também foi atingido enquanto tentava ajudar a família, e morreu dias depois no hospital. A justificativa para tal brutalidade foi de que o Exército confundiu o carro da família negra com o de dois criminosos. Na época, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro havia enviado uma proposta de lei ao Congresso que pretendia isentar de culpa os policiais que matassem criminosos “por medo ou surpresa”. Quando questionado, após seis dias do fato, o governante disse que “O Exército não matou ninguém”, e que “houve um incidente”.
Em outubro de 2021 veio a condenação dos militares envolvidos no caso. Dos 12, 8 foram condenados por duplo homicídio e tentativa de homicídio, com penas que vão de 28 a 31 anos. Em maio de 2022, a defesa entrou com habeas corpus, pedindo a anulação da sessão e que fosse realizado um novo julgamento, alegando surpresa com duas provas constantes no julgamento. O Superior Tribunal Militar (STM) rejeitou. Embora a análise inicial tenha indicado 80 disparos, depois constatou-se que foram 257 tiros, os quais 62 atingiram o veículo do músico.
Coincidentemente, em maio de 2022, um novo fato criminoso envolvendo forças de segurança vem à tona: um vídeo contendo imagens de um homem sendo “sufocado” no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF). De acordo com as imagens, após a abordagem, dois agentes da PRF teriam feito uma espécie de câmara de gás dentro da viatura e trancado homem lá dentro, resultando na morte da vítima. O fato ocorreu na cidade de Umbaúba, litoral sul do Sergipe e foi flagrado por moradores do local. A vítima trata-se de Genivaldo de Jesus, de 38 anos, negro. Segundo o laudo preliminar do IML, a causa mortis foi insuficiência aguda secundária e asfixia. O caso sem dúvidas chocou o país, e os agentes encontram-se presos no Presídio Militar de Sergipe, em outubro de 2022, por ordem da Justiça Federal do Estado.
Fora do Brasil também houve um caso que possui forte semelhança com os casos ocorridos aqui, o assassinato de um homem afro-americano, George Floyd, em 25 de maio de 2020, depois que o policial Derek Chauvin ajoelhou-se sobre o pescoço de Floyd durante 8 minutos, causando sua morte por asfixia, a cena foi gravada e é possível ver o homem dizendo não conseguir respirar. Chauvin foi condenado à 22 anos de prisão nos Estados Unidos. (GLOBO, 2021).
Da forma que se conhece a justiça brasileira, sabe-se que esses casos são punidos graças à repercussão da mídia. De acordo com os estudos do pesquisador sênior da ONG Human Rights Watch (HRW) César Muñoz, a impunidade é um fator importante a ser considerado, uma vez que agentes da lei têm a sensação de que não serão punidos pelos crimes que cometeram.
Para Muñoz:
No caso de mortes causadas pela polícia, vemos enormes falhas nas investigações, como a não preservação da cena do crime, a falta de testemunhas, a coleta de depoimentos somente de agentes. Não há uma ação efetiva da Polícia Civil frequentemente. Então quanto maior a sensação de impunidade, mais a violência aumenta, já que policiais com atitudes abusivas e violentas pensam que dificilmente serão responsabilizados
O especialista também ressaltou um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que apontou que, em 2016, O Ministério Público pediu o arquivamento de 90% dos casos de violência cometida por policiais do Rio de Janeiro e São Paulo. César explica que “quando se fala em 90% de inquéritos arquivados, não quer dizer que não houve denúncia, apenas que não foram arquivados e com isso, o número de denúncias é menor ainda.” Em 2016, a HRW Também divulgou o estudo O Bom Policial Tem Medo, onde concluiu que mais de 8 mil pessoas foram mortas pela polícia no Rio de Janeiro entre 2006 e 2015, e 20% dos homicídios foram cometidos por agentes das forças de segurança.
O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Legalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI – UFF), afirmou que, nos dez primeiros meses de 2021, a letalidade policial foi de 35%, houveram 264 chacinas no estado nos últimos quatro anos, e 25% delas contaram com a participação de grupos especiais da polícia.
Para Hirata (2021):
‘As forças policiais têm se tornado agentes propulsores da violência letal. As chacinas são a expressão mais dramática deste problema. É preciso um controle efetivo da atividade policial, para que o uso da força seja exercido seguindo o princípio maior de preservação da vida e com as devidas cautelas.”
Os estudos do sociólogo concentram-se no Estado do Rio de Janeiro, onde as ações policiais são recorrentes nas favelas, e revelam sua preocupação com o uso da força policial no Estado, na época da pandemia, devido ao julgamento dos embargos de declaração da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que restringia a realização de operações policiais durante a pandemia de Covid-19 e não foi respeitada.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 relata que a letalidade policial caiu, mas a mortalidade de negros se acentuou em 2021. Desde que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar os números das mortes em intervenções policiais em 2013, foram somadas pelo menos 43.171 vítimas de ações policiais civis ou militares de todo o país. Não são incluídos os dados sobre vítimas de intervenções das polícias Federais e Rodoviárias federais, que embora sejam menos comuns, passaram a ser motivo de debate após o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, por asfixia, já retratado nesta pesquisa.
De acordo com os dados do Anuário, 12,9% de todas as Mortes Violentas Intencionais (MVI) ocorridas eram causadas pela polícia, e em 2021 foram cerca de 6.145 vítimas, ou seja uma redução de 4,2% em relação ao ano anterior. A redução se deu em 16 unidades da federação, seguindo a tendência do país, que reduziu os números em 6,5% no país.
Tal redução merece ser celebrada, porém as altas taxas de mortalidade em intervenções policiais continuam altas em vários estados do país, e o perfil das vítimas também permanece o mesmo: homens, jovens e negros.
5. Medidas de enfrentamento à violência policial
“A violência policial não pode ser tolerada como um mal necessário. Ela configura uma das mais persistentes formas de violação de direitos humanos na sociedade brasileira, atingindo especialmente as camadas socialmente mais excluídas” () “A necessidade de controle interno e externo sobre a atividade policial deriva de diversas normas internacionais” ()
A Lei de Abuso de Autoridade nº 4.898/65, foi criada em um período autoritário da história do Brasil, sendo promulgada em pleno regime militar. Foi crucial a criação dessa Lei na época, devido aos abusos e torturas sofridos pelos prisioneiros do regime. Sua alteração se deu em 2019, trazendo A Nova Lei de Abuso de Autoridade.
A nova Lei de Abuso de Autoridade tem o objetivo de atualizar a legislação a respeito de crimes cometidos por servidores públicos.
Confira o que diz o primeiro parágrafo da Lei 13.869/19:
‘Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.”
Segundo Guilherme Nucci (2020), a atual Lei 13.869/19 é muito mais garantista e protetora do que a legislação anterior, pois agora, o agente público está amparado pelo escudo do elemento subjetivo específico, que é muito difícil de explorar e provar.
O Art. 2º da Nova Lei determina quem são as autoridades que podem configurar como sujeito ativo nos crimes de abuso de autoridade:
Art. 2º É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:
I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II - membros do Poder Legislativo;
III - membros do Poder Executivo;
IV - membros do Poder Judiciário;
V - membros do Ministério Público;
VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo
O abuso de autoridade é conceituado como ato humano de se prevalecer de cargos para fazer valer vontades particulares. No caso do agente público, ele atua contrariamente ao interesse público, desviando-se da finalidade pública.” (NOVO, 2019).
A legislação brasileira sobre abuso de autoridade é um indicador marcante de nossa história institucional, desde a sua origem, com o Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), como também na configuração do delito de abuso de autoridade, Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Essas leis, mesmo editadas em períodos distintos, evoluíram na linha de priorizar a proteção dos direitos individuais, fortalecendo o papel do cidadão na representação judicial contra os atos de irresponsabilidade administrativa, civil e penal, de autoridades constituídas (BASTOS, 2019).
Como a lei descreve, as autoridades são aqueles que exercem função pública, servidor ou não da administração direta. “O anseio populacional pela responsabilização daqueles que abusam de seu papel enquanto agentes do Estado, fizeram com que os próprios representantes do povo formulassem e aprovassem normas, leis ou outros meios de controle de tais atos.” (MIRANDA, 2020).
Existe um ditado popular muito conhecido que diz que “se quisermos conhecer uma pessoa, devemos dar poderes â ela”. È o caso de alguns agentes de polícia, porém o poder dado a eles é de servir e proteger os cidadãos, e não tornar-se o seu algoz. Mas deve ficar claro que nem todos os agentes de segurança pública praticam atos abusivos em suas funções, assim como pensa Guilherme Souza Nucci:
A imensa maioria dos agentes de segurança pública, membros do Ministério Público e autoridades judiciárias atua de maneira lisa e honesta, sem nem pensar em se exceder no campo da sua autoridade. É preciso lembrar que, na lei 4.898/65, coube à doutrina e à jurisprudência exigir, para configurar abuso de autoridade, a finalidade específica de se exceder para prejudicar outrem ou satisfazer a si mesmo (NUCCI, 2020).
Atualmente, os policiais militares são limitados a obedecer ordens, não se preocupando com o uso do raciocínio para a resolução de conflitos. Ocorre que a polícia ostensiva precisa estar preparada para a mediação. (SILVA, EBERHARDT, 2021, p.7). O modelo de polícia ostensiva militarizada tem se mostrado ineficaz à garantia da segurança pública no país.
As críticas ao caráter militarizado das polícias militares são conhecidas, por representar um resquício de vínculo com as forças armadas, absolutamente incompatível com o desempenho de atividades de segurança pública. A militarização causa descontentamento entre os próprios policiais, especialmente dos que atuam no policiamento de rua, pertencentes aos escalões mais baixos e mais numerosos da polícia, por determinar relações de trabalho diferenciadas em relação aos demais servidores públicos, impossibilidade de questionamento das ordens superiores, obrigação de realizar atividades de acordo com a vontade do superior, mesmo que em desvio de função, etc. (AZEVEDO, 2016, p. 18).
As críticas ao modelo militarizado da polícia visam mudanças comportamentais dos policiais e a desconstrução da concepção de combate ao inimigo. Desconstruindo essa antiga percepção, os policiais tenderão a agir de maneira menos violenta e, consequentemente, ocorrerá a redução do abuso de autoridade e letalidade policial (SILVA, EBERHARDT, 2021, p.8).
O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 23, prevê as excludentes de ilicitude sobre o uso da força:
Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
Em estado de necessidade;
II- Em legítima defesa;
III- Em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito
O Art. 234 do Código Penal Militar também descreve as condições de uso da força:
Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e seus auxiliares, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. §2° O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou de auxiliar seu
O Art. 5º, inciso III da CRFB/88 estipula: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos desumanos ou degradantes”, copiando assim o disposto nos tratados internacionais de direitos humanos. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a atividade policial não pode mais ser pautada por abusos. O respeito e proteção aos direitos humanos na atividade policial é fundamental.
Para Silva e Eberhardt (2021) entende-se que para haver um trabalho mais eficaz dos agentes de segurança pública, deve existir uma menor percepção de combate ao inimigo e isso fará com que se reduza o abuso de autoridade e a letalidade policial.
O discurso de ódio espalhado pela mídia, a famosa frase aclamada pelo atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro na qual ele diz que “bandido bom é bandido morto” fez a cabeça de muita gente, principalmente de boa parte do seu fiél eleitorado. Isso mostra que o sistema de segurança brasileiro é antidemocrático. A influência da mídia também contribui para o estímulo à violência policial, quando os veículos de comunicação criam o estereótipo do criminoso, o negro pobre, e essas características fazem ser esse considerado o perfil de um criminoso.
A saúde mental dos policiais também precisa ser levada em consideração, assim como descrevem SILVA E EBERHARDT (2021):
O relatório sugere que o risco de suicídio entre os policiais é alto porque o policiamento ostensivo representa uma profissão propensa a fatores de estresse, bem como a situações violentas e traumáticas, o que compromete tanto o desempenho profissional quanto a segurança dos cidadãos. Dessa forma, constata-se que os discursos de ódio, a concepção de um combate ao inimigo e o uso da força física atribuídos à Polícia Militar contribuem tanto para a vitimização de civis quanto de policiais militares. Isso leva a sociedade a questionar a quem interessa manter o modelo de polícia vigente.
Diante de todo o exposto, vê-se que a atuação policial precisa ser feita com diálogo, não atuando sob a figura da eliminação, e não significa que os policiais irão perder seus empregos ou ficarem desarmados, mas sim uma polícia fora do histórico regramento militar sob o qual eles atuam. A participação política é essencial no combate ao racismo estrutural, para isso é importante uma maior ocupação de pessoas negras em cargos públicos, apoio dos partidos a essas candidaturas e maiores oportunidades, isso avançaria numa democracia representativa e participativa.