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Imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.

A questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista

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10/05/2008 às 00:00
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4. Da Imunidade jurisdicional absoluta à Imunidade meramente relativa: estudo de caso

O Tribunal da Relação de Lisboa, Portugal, em 21 de setembro de 2005, julgou interessante caso em que cidadã alemã, residente em Lisboa, intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa ação declarativa de condenação na forma comum contra Embaixada da Áustria – Delegação Comercial da Embaixada da Áustria em Lisboa, alegando, em síntese, ter sido admitida ao serviço da Embaixada em 23.02.2000, para exercer as funções de secretária da Delegação Comercial da Embaixada da Áustria em Portugal, por conta e sob a autoridade e direção desta, mediante retribuição. Alega a autora que em 4 de março de 2004 seu contrato foi rescindido, sem fundamento legal. Requereu, desta forma, a condenação do Estado Austríaco no pagamento das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença (deduzidas das referentes até 30 dias antes da propositura da ação), retribuições de férias e respectivo subsídio, indenização pelo não gozo de férias, subsídios de Natal, indenização por danos patrimoniais resultantes do despedimento, indenização por danos não patrimoniais (quantificando a totalidade dos créditos já vencidos em € 6.059,84) e ainda na sua reintegração no posto e local de trabalho que ocupava e, à cautela, se porventura a Embaixada vier a obstar à reintegração e esta venha a ser julgada procedente, no pagamento dos quantitativos compensatórios máximos devidos em substituição da reintegração, legalmente estabelecidos. [52]

Notificado o Estado Austríaco da ação trabalhista, o mesmo requereu o reconhecimento da imunidade de jurisdição sob o fundamento de que a imunidade soberana é um princípio de Direito Internacional Público, corolário do princípio da igualdade dos Estados, que traduz a velha máxima par in parem non habet judicium e visa garantir o respeito à soberania. De acordo com o Estado Austríaco nenhum Estado pode julgar, através dos seus tribunais internos, os atos de um outro Estado, a não ser com o respectivo consentimento.

O Tribunal da Relação de Lisboa negou o pedido do Estado Austríaco de imunidade jurisdicional, aplicando normas provenientes da Convenção de Basileia (1972) e outros fundamentos do Direito Internacional consuetudinário:

Reconhecida, através do Direito Internacional Consuetudinário, discute-se na doutrina se tal imunidade alguma vez teve carácter absoluto, isto é, que se considerasse aplicável a qualquer que fosse a actividade do Estado. Ainda que se admita que alguma vez tivesse tido carácter absoluto, é indiscutível que tem vindo progressivamente a perdê-lo, quer na jurisprudência dos diversos países - que, distinguindo entre actos de gestão pública (acta jure imperii) e actos de gestão privada (acta jure gestionis), limita a imunidade apenas aos primeiros – quer, em alguns casos, em países de common law, através da adopção de legislação especial (caso da Grã Bretanha e dos Estados Unidos da América).

A matéria encontra-se em vias de codificação internacional.

Impondo-se a exigência de uma solução internacional unívoca sobre as hipóteses em que o exercício da jurisdição seria admissível, o Conselho da Europa, em 16/5/72, em Basileia, abriu à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados, que adopta o critério de enunciar de modo específico (nos art. 1º a 14º) as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a excepção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros. Assinada por Portugal em 10/5/79, mas ainda não ratificada, esta Convenção foi ratificada por oito Estados (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido e Suiça).

No seu artigo 5º dispõe:

"1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.

2 – O parágrafo 1 não se aplica :

a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;

b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou

c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objecto do processo...".

Apesar de a Áustria ter ratificado a Convenção e se encontrar vinculada por ela, uma vez que Portugal ainda a não ratificou, não podendo por isso ser considerado, enquanto o não fizer, um Estado contratante para efeitos de aplicação da mesma, não estava a R. obrigada, nos termos daquela norma, a não invocar a imunidade de jurisdição perante um tribunal português. [53]

Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora em estudo, a nível mundial, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados de que resultou a elaboração de um projeto sobre imunidades jurisdicionais dos Estados e da sua propriedade (Draft Articles on Jurisdictional Immunities of States and Their Property), que adotou também o critério de enunciar, nos art. 10º a 16º, os atos sujeitos a restrição à imunidade, cujo princípio é formulado no art. 5º. [54] O Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça, em um de seus julgados, relacionou algumas hipóteses de exceções ao princípio da imunidade de jurisdição, com base na European Convention on State Immunity e respectivo Protocolo Adicional em 1972, na Foreign Sovereign Immunity Act (EUA/1976), na State Immunity Act (Reino Unido/1978), bem como no projeto de Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição e de seus Bens da ONU:

a) lides imobiliárias e sucessórias (inventário e partilha), que, aliás, como assinalado, já eram tidas por excepcionais mesmo quando interpretada a imunidade de forma absoluta;

b) ações relativas e atos comerciais, inclusive aquelas referentes ao comércio marítimo, bem como ao Direito Comercial Societário (participação em sociedades comerciais), por serem atividades tipicamente de gestão, exercidas pelo Estado enquanto interventor na economia, extraindo-se, como exemplos, o transporte de passageiros, o fornecimento de bens e serviços, até mesmo bancários;

c) lides trabalhistas, em sendo as relações firmadas entre Estado estrangeiro empregador e particular nacional empregado, quer se cogite de contrato de trabalho ou de prestação de serviços, salvo se para o exercício de funções diplomáticas;

d) causas relativas a responsabilidade civil, em regra, desde que soberano o caráter do ato ilícito praticado. [55]

Por fim, o Tribunal Português chegou à conclusão de que a imunidade do Estado estrangeiro, em causas trabalhistas, é relativa, pois nestes casos o Estado Austríaco agiu como se fosse particular (jure gestionis). Por outro lado, quando o Estado estrangeiro agir na condição de império (jure imperii), tal imunidade pode e deve ser reconhecida, haja vista o postulado do direito internacional da igualdade dos Estados soberanos. Eis as palavras da Juíza Relatora Maria João Romba do Tribunal da Relação de Lisboa:  

Como refere Jónatas E. M. Machado "...a CDI decidiu em 7/5/99 criar um grupo de trabalho para retomar a questão das imunidades dos Estados e da sua propriedade. Por seu lado a AG da ONU, na sua resolução 55/150, de 12/12/2000, decidiu estabelecer um comité ad hoc para aprofundar o estudo da questão da imunidade de jurisdição dos Estados e da sua propriedade e o trabalho até agora feito. O seu relatório (A/57/22) foi produzido em 13/2/2002, tendo apresentado algumas alterações aos Draft Articles da CDI da ONU."

Se bem que o referido processo de codificação internacional ainda não esteja concluído, ele é bem revelador do crescente peso que vem assumindo, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados.

Temos pois como adquirido que a teoria restritiva da imunidade é hoje dominante.

Com a adopção desta teoria, a questão essencial passa por saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se se é jure imperii ou jure gestionis.

Todavia, não é pacífico o critério distintivo entre actos jure imperii e actos jure gestionis.

Dominante é o critério que atende à natureza do acto, de acordo com o qual actos jure imperii são, sem dúvida, os actos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e actos jure gestionis, actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular. É certo que alguns Estados defendem que se dê idêntico valor ao critério do fim, como refere Eduardo Correia Batista na obra "Direito Internacional Público", Almedina, 2004, II vol, a pag. 144. Na nota 279 refere este autor que o art. 2º nº 1 al. c) do Projecto da Comissão de Direito Internacional define "transacção comercial" em função da sua natureza e não do fim a que se destina e, mais adiante, acrescenta "depois de uma cuidadosa resenha da jurisprudência interna sobre a questão, o grupo de trabalho da CDI, na sua reapreciação da questão, reconheceu que o critério da natureza era predominante, embora, por vezes, o do fim ainda recebesse algum acolhimento." [...]

Também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, a teoria da imunidade restrita tem vindo, ultimamente, a obter acolhimento mais alargado (cfr. ac. referidos na douta decisão recorrida).

Merece-nos referência especial o ac. do STJ de 13/11/2002, publicado no site do ITIJ, que relativamente à questão de saber se, num determinado litígio laboral, está em causa um acto de soberania ou um acto de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas ou, de algum modo, funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação. "A natureza das actividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular." É que, como refere Pingel Lenuzza (obra citada, pag. 134) "um serviço do Estado, investido de uma missão de soberania pode empregar certas pessoas que não participam, de forma alguma, no cumprimento dessa missão." [56]

Guido Fernando Silva Soares lembra que na jurisprudência italiana, depois belga, foi-se desenvolvendo uma doutrina de separação desses atos, casos estes fossem atos de império [57] ou atos de gestão – acta juri imperi, acta juri gestiones ou negotie -, ou seja, se fossem atos de império, seriam absolutamente imunes, porque o Estado estaria no exercício de uma função pública (in parem non habet judicium). Mas, se for um ato natural que qualquer pessoa possa fazer, um ato de gestão ou de negócio, então, esses atos seriam passíveis do conhecimento da jurisdição local. [58] O Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça assevera que a diferenciação entre atos de império e gestão, "perfaz-se fortemente subjetiva, valendo-se os Estados, em suma, de dois critérios à respectiva efetivação, sendo que ‘um caracteriza o ato governamental por sua natureza jurídica, negando imunidade às atividades que são igualmente empreendidas pelos particulares; outro perquire a finalidade ou o objetivo do ato, concedendo a imunidade para os atos diretamente ligados a funções públicas’ [59](Jacob Dolinger (Coord.), A imunidade estatal à jurisdição estrangeira, in ´A nova constituição e o direito internacional´, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 196)." [60]

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Eneas Bazzo Torres defende a idéia de que o reconhecimento, ou não, da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro demandado, não pode estar vinculada à natureza do ato praticado ou sua finalidade, mas sim ao seu resultado. Segundo o autor,

Na conformidade deste critério, não importa se o ato é de gestão ou se o ato é de império; se houve a prática de um dano, que esse prejuízo seja indenizado. Penso até que, se não for dessa maneira, não estará sendo respeitado o velho princípio do par in parem non habet imperium. Ora, na medida em que fique dispensado de indenizar, estar-se-á concedendo ao Estado acreditante um privilégio em relação ao Estado acreditado. E, neste caso, termina por ser quebrada a igualdade. [61]

Luiz de Pinho Pedreira da Silva assevera que "a qualificação da atividade estatal (ato de soberania ou não) deve ser operada segundo a lex fori (isto é, segundo a lei do Estado do foro, do Estado do tribunal perante o qual foi proposta a ação (Rainer Frank, L’Immunité d´Éxecution de l´État et dês Autres Collectivités Publiques em Droit Allemand, in Centre Universitaire de Droit Public, Bruxelas, 1990, pp. 3 e seguintes). [62] O Ministro Jorge Scartezzini afirma que "a admissão da diferenciação, altamente subjetiva, entre atos de império e gestão como fundamento único e suficiente à delimitação da imunidade de jurisdição, à vista de sua concepção relativa, encontra severas objeções, na medida em que, com efeito, torna o fenômeno sob estudo compreensível segundo a diversidade dos modelos político-econômicos abertos dos Estados." [63][64] E isso também é um problema no Direito internacional. Atos semelhantes poderão ser interpretados diferentemente dependendo do foro. Exemplo claro dessa complexidade é fornecido por Márcio Pereira Pinto Garcia:

[...] Em 1989, a Suprema Corte estadunidense não teve dificuldade em reconhecer a imunidade da República Argentina em ação movida por proprietário de navio avariado pela força aérea daquele país durante a guerra das Malvinas (Argentine Republic v. Amerada Hess Shipping Corp., 109 S. Ct. 683 - 1989). O uso das forças armadas em conflito bélico é exemplo típico de função estatal, ponderou a Corte. Em outra oportunidade, agora em solo Britânico, o desfecho foi ligeiramente distinto (Kuwait Airways Corporation v. Iraqi Airways Company and Another. Financial Times Law Reports, 17 de julho de 1992). Estava em jogo a transferência de aeronaves da Kuwait Airways para a Iraqi Airways Company realizadas por oficiais iraquianos após a invasão de território do Kuwait. A Corte de Apelação reverteu a decisão de origem ao argumento de que, à vista das ´circunstâncias do caso´ (sic), não se tratava de ato de império, mas de gestão. [65]

Antenor Pereira Madruga Filho entende que "um Estado soberano não deixa de ser um Estado soberano quando pratica os chamados ‘atos de gestão.’" [66] Para o autor também não é a doutrina do ato de Estado (Act of State Doctrine), fazendo uma crítica ao Supremo Tribunal Federal, que impede a submissão do Estado estrangeiro à jurisdição local, mas sim, a doutrina da imunidade soberana (Sovereign Immunity), conceitos nitidamente distintos. [67]

Para Antenor Pereira Madruga Filho a regra par in parem non habet imperium somente se justifica na imunidade soberana absoluta, pois atualmente, considerando a imunidade de jurisdição relativa, seu correto fundamento é o costume internacional, norma esta do Direito Internacional Público, e não no princípio da igualdade entre os Estados soberanos. "A regra par in parem non habet imperium continua a existir no direito internacional, como existirá em qualquer sistema jurídico, dado o seu conteúdo lógico. Apenas não é ela mais o fundamento da imunidade dos Estados à jurisdição de outros Estados." [68]

O fundamento da imunidade na regra de igualdade é um vício histórico que a doutrina ainda não conseguiu largar. Inebriados pela falsa imagem antropomórfica do soberano no banco dos réus de outro soberano, criamos ficções para conciliar a crença de que a submissão à jurisdição estrangeira fere a igualdade entre os soberanos com o fato de que os Estados são hoje freqüentemente – e de acordo com o direito internacional – submetidos à jurisdição estrangeira.

Apenas a teoria da imunidade absoluta poderia, coerentemente, ser fundada no princípio da igualdade entre os Estados. Na medida em que são aceitas exceções à imunidade, é preciso abandonar esse fundamento ou admitir uma violação à regra da igualdade soberana. Aceitando que a imunidade de jurisdição específica do Estado moderno (não confundir com a imunidade dos monarcas soberanos) nunca foi realmente absoluta, permitimo-nos considerar a possibilidade de que essa prerrogativa jamais teve fundamento lógico na igualdade soberana dos Estados. [69]

O Supremo Tribunal Federal, a partir do caso Genny v. República Democrática Alemã (1989), decidiu que o princípio da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro deixou de ser absoluta, passando a ser relativa. A partir desta data deixou-se de reconhecer a imunidade de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro no Brasil, o que já vinha ocorrendo no direito comparado desde a década de 70.

Apesar do atraso histórico no reconhecimento da relatividade da imunidade do Estado estrangeiro em causas trabalhistas pelo Supremo Tribunal Federal, tal jurisprudência, atualmente, vem se firmando. O caso Espólio de Iracy Ribeiro de Lima v. Consulado Geral do Japão, da relatoria do Ministro Celso de Mello, registra bem esse fato (Ag. Reg. 222.368-4):

Imunidade de Jurisdição – Reclamação Trabalhista – Litígio entre Estado Estrangeiro e Empregado Brasileiro – Evolução do tema na doutrina, na legislação comparada e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Da Imunidade Jurisdicional Absoluta à Imunidade Jurisdicional meramente Relativa – Recurso Extraordinário não conhecido.

Os Estados estrangeiros não dispõem de imunidade de jurisdição, perante o Poder Judiciário Brasileiro, nas causas de natureza trabalhista, pois essa prerrogativa de Direito Internacional Público tem caráter meramente relativo.

- O Estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes do STF (RTJ 133/159 e RTJ 161/643/644).

- Privilégios diplomáticos não podem ser invocados, em processos trabalhistas, para coonestar o enriquecimento sem causa de Estados estrangeiros, em inaceitável detrimento de trabalhadores residentes em território brasileiro, sob pena de essa prática consagrar censurável desvio ético-jurídico, incompatível com o princípio da boa-fé e inconciliável com os grandes postulados do direito internacional. [...] [70]

Do voto condutor do acórdão extrai-se fundamento teórico sobre a passagem da concepção absoluta da imunidade dos Estados estrangeiros à relativa:

[...] Como se sabe, a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros derivava, ordinariamente, de um princípio básico – o princípio da comitas gentium – consagrado pela prática consuetudinária internacional, assentado em premissas teóricas e em concepções políticas, que, fundadas na essencial igualdade entre as soberanias estatais, legitimavam o reconhecimento de que par in parem non habet imperium judicium, consoante enfatizado pelo magistério da doutrina [...]

Tais premissas e concepções – que justificavam, doutrinariamente, essa antiga prática consuetudinária internacional – levaram a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente aquela que se formou sob a égide da revogada Carta Política de 1969, a emprestar, num primeiro momento, caráter absoluto à imunidade de jurisdição instituída em favor dos Estados estrangeiros (RTJ 66/727 – RTJ 104/990 – RTJ 111/949 – RTJ 116/474 – RTJ 123/29).

Essa orientação, contudo, sofreu abrandamentos, que, na vigência da presente ordem constitucional, foram introduzidos pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Apelação Cível 9.696/SP, Rel. Min. Sydney Sanches (RTJ 133/159) e do AI 139.671-AgR/DF, Rel. Min. Celso de Mello (RTJ 161/643-644).

Em função dessa nova orientação, a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de atuação de Estado estrangeiro em matéria de ordem privada, notadamente em conflitos de natureza trabalhista, consolidou-se no sentido de atribuir caráter meramente relativo à imunidade de jurisdição, tal como reconhecida pelo direito internacional público e consagrada na prática internacional. [...] [71]

O Supremo Tribunal Federal, consoante se depreende da análise de seus acórdãos, não somente vem restringindo a imunidade do Estado soberano com base no costume internacional, mas também em atos unilaterais de direito interno dos Estados estrangeiros. Segundo Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça, tal critério normativo é "a verificação de iniciativas estatais unilaterais no tocante ao estabelecimento de normas internas limitadoras da imunidade jurisdicional, de regra, mediante a técnica de enumeração expressa e taxativa das atividades em que inviável aos Estados beneficiarem-se do privilégio da imunidade de jurisdição, sendo aludido rol especificado não em razão, tão-somente, da configuração do ato como de gestão, mas basicamente em atenção à evolução dos próprios costumes internacionais (relativização histórica da imunidade quanto às ações imobiliárias e sucessórias, e evolutiva no concernente, entre outras, às lides comerciais e marítimas, trabalhistas, imobiliárias e sucessórias)." [72] Antenor Pereira Madruga Filho entende ser o critério normativo um parâmetro recomendável pois poderá o "Estado soberano definir melhor suas ações no território estrangeiro com mais certeza quanto à extensão do seu privilégio de foro, os particulares farão negócios com Estados estrangeiros em ambiente jurídico mais seguro e o Estado do foro reduzirá a probabilidade de ser chamado à responsabilidade internacional que, na ausência de lei interna, potencializa-se em cada sentença judicial que interpreta os obscuros limites do direito consuetudinário internacional. [73] No caso Paulo da Silva Valente v. Estados Unidos da América o Ministro Relator Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, fundamentou seu voto, entre outros, com os seguintes dizeres:

Uma das razões decisivas dessa nova visão jurisprudencial da matéria deveu-se ao fato de que o tema da imunidade de jurisdição dos Estados soberanos – que, antes, como já enfatizado, radicava-se no plano dos costumes internacionais – passou a encontrar fundamento jurídico em convenções internacionais (a Convenção Européia sobre Imunidade dos Estados de 1972) ou, até mesmo, consoante informa Luiz Carlos Sturzenegger (RDA 174/18-43), na própria legislação interna de diversos Estados, como os Estados Unidos da América (Foreign Sovereign Immunities Act de 1976), o Reino Unido (State Immunity Act de 1978), a Austrália (Foreign Act de 1985), Cingapura (State Immunity Act de 1979), a República da África do Sul (Foreign States Immunities Act de 1981) e o Paquistão (State Immunity Act de 1981), exemplificativamente. [74]

O Poder Legislativo brasileiro, consoante constatação do Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça, "optou por não especificar, em lei própria, os limites à imunidade de jurisdição. Ademais, tal orientação prevaleceu mesmo em se cuidando de regulamentação esparsa (salvo raras hipóteses, relativas, na verdade, à competência, v. g., a previsão do art. 114 da CF/88, com a redação da EC n. 45/2004, consoante o qual, no que releva ao feito, ‘Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo (...);’ segundo se verificou, recentemente, quando da elaboração do novo Estatuto Civil (2002). Deveras, a novel legislação, ao distinguir as pessoas jurídicas de direito público interno e externo (art. 40 do CC/2002), caracterizando-as (arts. 41 e 42 do CC/2002), optou por excluir de seu regime de responsabilidade civil as pessoas jurídicas de direito público externo (art. 43 do CC/2002), relegando a respectiva regência ao Direito Internacional Público." [75]

Salienta-se, por oportuno, que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo da mesma forma. [76] O Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça afirma que não é "fonte normativa da imunidade de jurisdição a mera cortesia internacional (comitas gentium) do Estado do foro com relação ao Estado estrangeiro, porquanto, a seguir-se tal entendimento, estaria a imunidade de jurisdição despojada de qualquer juridicidade, quando, ao revés, prevalece a orientação conforme a qual a prerrogativa do Estado estrangeiro de ser imune à jurisdição de outro Estado é obrigação legal, embora, atualmente, desprovida de sua originária extensão absoluta, consubstanciando-se em verdadeira norma de Direito Consuetudinário Internacional Público." [77]

É devido o registro da sentença proferida em 20 de agosto de 1976 pelo juiz federal Dario Abrantes Viotti, anexada em seu inteiro teor por Guido Fernando Silva Soares em sua clássica obra intitulada ‘Das Imunidades de Jurisdição e de Execução’. O juiz federal Dario Abrantes Viotti, em uma época em que quase não se falava sobre esse assunto no Brasil, conforme lembra Jorge Fontoura, [78] proferiu decisões que mitigou a imunidade dos Estados estrangeiros. Cite-se, como exemplo, o caso Vitral – Vidros Planos Ltdas v. República Socialista da Tchecoslováquia. A ementa da decisão monocrática foi assim consignada:

Ação contra Estado estrangeiro. – O princípio da extraterritorialidade. – Distinção entre atos jure imperii e jure gestionis. – Inexistência de norma internacional, geralmente aceita, sobre a imunidade jurisdicional de Estado estrangeiro, quanto a seus atos de natureza privada. – Reconhecimento da jurisdição brasileira e da competência da Justiça Federal. [79]

Outro exemplo, porém bem menos abrangente, é o voto do Ministro Firmino Paz do Supremo Tribunal Federal proferido em 10 de março de 1982, no caso República Árabe da Síria v. República Árabe do Egito, no sentido de que a imunidade soberana deveria ser relativizada quando o objeto da demanda fosse um imóvel situado no Brasil (art. 89, inciso I, do Código de Processo Civil), [80] mesmo que as partes fossem Estados estrangeiros. Expõe o Ministro Firmino Paz seus fundamentos da seguinte forma:

[...]

7. Dir-se-á, todavia, que, cuidando-se de Estados soberanos, inadmissível é que um tenha poderes de julgar acto ou actos do outro. Daí, pois, ser absoluta a imunidade de jurisdição, necessária à boa convivência internacional.

Essa imunidade, que deve existir, não pode ser absoluta. É de ser relativa, excluídos, da jurisdição de outro Estado soberano, os actos inerentes à própria soberania. São aqueles actos, que só Estado soberano pode praticar. A exemplo: Declaração de guerra, Tratado de paz entre duas ou mais nações.

Dessas razões, entre outras, é que o princípio da imunidade absoluta de jurisdição não tem sido acolhido pela grande maioria dos doutrinadores, e tendo, sem dúvida, a desaparecer.

8. Vale lembrar-se que, em contrariedade ao previsto no artigo 153 da Constituição Federal, no artigo 12 e § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, inexiste qualquer tratado ou convenção internacional.

A meu ver, no caso dos autos, tratado, ou convenção internacional, não poderia prever imunidade de jurisdição, para excluir, data venia, da jurisdição do Supremo Tribunal Federal a ação proposta pela República Árabe da Síria à República Árabe do Egito.

9. Diante do exposto, rejeito a preliminar de imunidade de jurisdição, para que, na ação proposta, se prossiga, na forma da lei.

Assim, voto. [81]

A doutrina, por sua maioria, entende que a imunidade de jurisdição deve ser considerada relativa. Entre seus defensores, podem ser citados os seguintes: Haroldo Valladão, [82] Guido Fernando Silva Soares, [83] José Francisco Rezek, [84] Antenor Pereira Madruga Filho, [85] Marco Antônio Ribeiro Tura, [86] José Souto Maior Borges, [87] Ian Brownlie, [88] Arnaldo Süssekind, [89] Hee Moon Jo, [90] Paulo Massi Dallari, [91] Luiz Paulo Romano, [92] Marçal de Assis Brasil Neto, [93] Nadia de Araújo, [94] Rodrigo Giostri da Cunha, [95] Carlos Eduardo Caputo Bastos, [96] Aziz Tuffi Saliba, [97] Maria de Assis Calsing, [98] Luiz Andrade Oliveira, [99] Laerte Meyer de Castro Alves, [100]Plácido Fernandes, [101] José Carlos de Magalhães, [102] Oscar Vilhena Vieira, [103] José Francisco Sieber, [104] José Ignácio Botelho de Mesquita, [105] Evanna Soares, [106] Leonardo Rodrigues Itacaramby Bessa, [107] João Grandino Rodas, [108] Rangel Garcia Barbosa, [109] Eneas Bazzo Torres, [110] Ronaldo Guimarães Gallo, [111] Arion Sayão Romita, [112] Leonardo Arquimino de Carvalho, [113] Beatriz Schiffer Durães, [114] Ranieri Lima Resende, [115] José Luiz Ferreira Prunes, [116] Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, [117] Inês Mónica Weinberg de Roca, [118] Beat Walter Rechsteiner, [119] Renato Rabbi-Baldi Cabanillas, [120] Cássio Mesquita Barros, [121] Luiz de Pinho Pedreira da Silva, [122] Lúcio Pires de Amorim, [123] entre outros.

Antes do célebre julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso Genny v. Alemanha em 1989, alguns doutrinadores defendiam a imunidade absoluta de jurisdição. Afirmava, por exemplo, Georgenor de Sousa Franco Filho:

De qualquer sorte, não cabem dúvidas quanto à absoluta impossibilidade de se questionar, no juízo nacional, contrato de trabalho com ente de DIP que goze de isenção de jurisdição. Mesmo que o contrato se celebre com organismos internacionais, as demandas devem ser apreciadas por outros foros, como a CIJ ou o Tribunal Administrativo da ONU, v.g., quando teria o empregado condições de viabilizar as suas pretensões, até mesmo porque, afora o ajuizamento dessas demandas no Judiciário nacional implicarem a conseqüente declaração da incompetência ex ratione personae por força da imunidade de que gozam os pretendidos reclamados, "tais feitos, sobre constituírem uma expectativa ilusória para os demandantes, sobrecarregam os juízos pátrios e, o que é pior, estorvam os serviços destes entes no país, a ponto de estarem desestimulando o aumento de agências e programas de que o Brasil tanto carece", como alerta Teixeira Paranhos, salvo renúncia expressa à imunidade jurisdicional, mesmo porque esses organismos internacionais não têm "nenhuma intenção de lesar seus empregados, até porque tal atitude não faria sentido em entes cujas tarefas são geralmente de ajuda e cooperação entre os povos." Repita-se, ademais, que, mesmo na ocorrência da renúncia à isenção de jurisdição, nenhuma medida de caráter executivo, também em questões trabalhistas, se poderá processar contras essas organizações. [124]

Há quem defenda que a atual flexibilização da imunidade soberana é temporária e natural, diante da atuação do Estado como empresário, mas pode voltar a ser absoluta. Nesse sentido, disserta Jorge Fontoura:

Decorrentes ou do mau uso do instituto imunitário ou da ingerência indevida do domínio público naquele privado, através da hipertrofiada atuação do Estado empresário, a limitação ou exclusão das imunidades estatais pode reverter-se rapidamente, com a restauração do status quo ante. Vale dizer, com o refluxo do Estado ao seu leito natural, e parece ser "espírito do tempo" falar-se em redução do tamanho do Estado, não é impensável que a imunidade volte a ser absoluta, na firme convicção de que o Estado continua sendo senhor de sua vontade, inclusive no que concerne à flexibilização de suas faculdades imunitárias. [125][126]

Peter Troboof, citado por Antenor Pereira Madruga Filho, tendo em vista a dinamicidade do tema, defende uma revisão a cada cinco anos da questão da imunidade soberana nos cursos da Academia de Direito Internacional. [127]

Antenor Pereira Madruga Filho defende a tese de que a imunidade soberana nunca foi absoluta, mesmo quando o Supremo Tribunal Federal assim a proclamava antes do caso Genny v. Alemanha – 1989 -, pelo menos em questões imobiliárias. Afirma o autor:

[...] que a imunidade dos Estados nunca teve fundamento lógico, tendo em vista que a possibilidade do Estado ser submetido à jurisdição estrangeira sempre existiu, pelo menos em questões imobiliárias, mesmo quando a doutrina e a jurisprudência defendiam a chamada ‘teoria da imunidade absoluta’. Nesse sentido, o Ministro Moreira Alves pronunciou-se obter dicta no caso Síria v. Egito (STF, Ação Cível Originária n. 298, julgada em 14 de abril de 1982, Relator para o Acórdão: Ministro Décio Miranda. Ver RTJ 104/920), em que a Síria reivindicava no Supremo Tribunal Federal a propriedade de imóvel localizado na Rua Muniz Barreto, Rio de Janeiro, ocupado pelo Egito. Embora o Ministro Moreira Alves, integrando a maioria, tenha reconhecido a ausência de jurisdição brasileira com base noutro fundamento (impossibilidade de determinar os direitos de sucessão internacional em decorrência da dissolução da República Árabe Unida), fez ele constar em seu voto uma análise da exceção imobiliária à teoria da imunidade absoluta de jurisdição, onde se lê:

"...mesmo os mais intransigentes defensores da imunidade absoluta admitiam, entre as exceções que a afastavam, as questões relativas às ações reais imobiliárias e às ações sucessórias no tocante a imóveis situados em ". [128]

Registra-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, em 30 de agosto de 2006, ser absoluta, salvo renúncia, a imunidade de jurisdição executória da República da Coréia em execução fiscal promovida pela União. Os Ministros Celso de Mello, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso, vencidos, entenderam que a imunidade de jurisdição é relativa, e deram provimento ao recurso para permitir que o processo de execução fiscal tivesse curso, impondo-se à União o dever de demonstrar a inobservância da cláusula de reciprocidade e a existência de bens, em território brasileiro, que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, estivessem funcionalmente desvinculados das atividades diplomáticas e consulares (Precedente citado: ACO 524 AgR/SP – DJU de 9.5.2003). ACO 543 AgR/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 30.8.2006. [129]

Conclui-se que, atualmente, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os Estados estrangeiros, em matéria trabalhista, não possuem imunidade de cognição. A seguir, verificar-se-á a questão da imunidade de execução do Estado estrangeiro em matéria trabalhista.

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Sobre o autor
Claudinei Moser

Advogado da União em Blumenau/SC. Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau – FURB (2001). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Regional de Blumenau – FURB (2003). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2007). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI (2005)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOSER, Claudinei. Imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.: A questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1774, 10 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11217. Acesso em: 29 mar. 2024.

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