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Mídias audiovisuais e tribunais.

Uma análise comparativa sobre o televisionamento dos debates judiciais com base nas experiências brasileira e francesa

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01/05/2008 às 00:00
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4.A Experiência brasileira na abordagem da relação entre Mídia e Judiciário.

No Brasil, o tema tem sido discutido basicamente por duas vias. A primeira delas é decorrente da preocupação institucional da magistratura quanto à visibilidade e credibilidade social do Poder Judiciário. A renovação da interação com os meios de comunicação tem papel fundamental no processo de modernização desenvolvido por tal poder. A título ilustrativo, a juíza Andréa Pacha, que já ocupou a Vice-Presidência de Comunicação Social da Associação dos Magistrados Brasileiros, assim se manifesta sobre o assunto:

"Devemos entender a lógica da comunicação de massa para, através deste caminho, buscarmos o resgate da credibilidade de um Poder que é essencial para a afirmação dos valores humanos [13]".

Todavia, o diálogo institucional tem sido realizado sem lastro teórico. Nele não há qualquer referência às transformações sofridas pelo princípio da publicidade processual em virtude da simbiose entre judiciário e mídias audiovisuais. As alusões à questão disponíveis na literatura jurídica nacional são desenvolvidas, sobretudo, no âmbito do processo penal [14]. Essa seria a segunda via da discussão mencionada anteriormente.

Talvez o especial interesse demonstrado pelos estudiosos da área estudiosos seja explicado pela maior interesse da mídia na justiça criminal, vide a extensa cobertura de crimes nos noticiários e a criação de programas televisivos com essa temática, tais como o ‘Linha Direta’. Um sintoma que corrobora a suposição é que o debate sobre a cobertura televisiva de julgamentos veio à tona entre nós, recentemente, com o caso Suzane Von Richthofen. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou a autorização para que imagens do julgamento fossem captadas. A decisão denegatória fundou-se na violação do direito à intimidade e na necessidade de preservar a atuação dos jurados. No referido acórdão, sustentou-se que:

"a publicidade do processo é uma garantia de que os atos nele praticados são feitos com lisura, daí a permanência das portas abertas de forma a que qualquer pessoa que esteja no Fórum possa ingressar e assistir à cerimônia solene. Daí a se pretender que todo o país possa assistir ao lamentável drama que se desenvolve no Plenário do tribunal do Júri, inclusive com repasse de trechos para jornais internacionais, vai uma longa distância" [15].

A doutrina nacional tem refletido a preocupação com os efeitos nocivos que a publicidade ampliada pelas mídias audiovisuais pode ocasionar ao processo. A advogada e professora Flávia Rahal faz a seguinte consideração crítica: "as loas indiscriminadas feitas à publicidade absoluta ignoram a carga com que as investigações preliminares e as ações penais têm abastecido a mídia, bem como seus excessos" [16].

No plano legislativo, temos na Constituição uma abordagem genérica sobre a publicidade dos atos processuais nos artigos 5º, inc. LX e 93, inc. IX. Em decorrência dos dois dispositivos, vigora em nosso país um sistema de ampla publicidade, onde os atos processuais só serão praticados em segredo em vista da preservação da intimidade das partes e do interesse social (ainda assim sem que tal segredo alcance as próprias partes e seus procuradores). Ademais, o constituinte deixou ao legislador a tarefa de delimitar as hipóteses legítimas de restrição da publicidade processual. O tema foi então regulamentada nos arts. 155 do CPC e 792 do CPP. Percebe-se que o tratamento legal da matéria na legislação nacional não enfrenta especificamente a atividade de captação e difusão de imagens das audiências judiciais. Isso permite ao judiciário um tratamento discricionário do assunto. Vale ressaltar que tramita no Congresso Nacional projeto de lei que aborda especificamente o problema [17]. A proposta, de autoria do Deputado Federal Carlos Bezerra, mesmo que não trate em profundidade da situação, representa um avanço na direção da regulação das relações entre mídia e judiciário. De acordo com o projeto, o art. 792 do CPP passaria a apresentar a seguinte redação:

"Art. 792..............

§ 3º Será permitida a transmissão radiofônica e televisiva de audiências e julgamentos, se as partes, o Ministério Público e o juiz o autorizarem e desde que não haja ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da honra ou da vida privada das pessoas.

§ 4º O tribunal competente regulará a forma de ingresso de equipamentos e o número de pessoas na sala de audiências com o fim de evitar tumultos".

Por fim, cabe destacar a iniciativa do STF de criar um canal público dedicado aos assuntos do judiciário, a chamada ‘TV Justiça’. A transmissão ao vivo das sessões de julgamentos de nossa Corte Constitucional tem auxiliado na ampliação da publicidade de seus atos. E, ademais, a criação de um canal público para realizar a tarefa se coaduna com as preocupações levantadas pelo ‘Relatório Linden’ no que tange ao conflito entre captação, edição e tratamento das imagens pela mídia e a necessidade de preservação da dinâmica intrínseca da atividade jurisdicional.


5.Conclusão

A publicidade dos atos judiciais é um corolário do regime político democrático. Todavia, a extensão dada ao princípio pela sua simbiose com os modernos meios audiovisuais de comunicação social pode por em risco outros valores do exercício da função jurisdicional. A tortuosa relação entre Mídia e Poder Judiciário é marcada por inúmeros pontos de atrito e afinidade decorrentes da lógica peculiar de cada uma das instituições. Mesmo que existam inegáveis vantagens na aproximação de ambos, é preciso, para salvaguarda do Estado Democrático de Direito, que esta se faça mediante uma judicialização do debate público e não por uma midiatização do processo judicial [18]. Por essa razão, é extremamente conveniente que se aprofunde a regulamentação jurídica relativa ao tema da cobertura televisiva das audiências judiciais.

Comparando a experiência francesa e brasileira, percebemos que estes estão a frente em relação a análise teórica do assunto. Todavia, a legislação e a prática judicial brasileira demonstram que em determinados pontos já colocamos em andamento as recomendações elaboradas no substancial ‘Relatório Linden’. A existência de uma TV pública gerida pelo STF e de propostas de alteração do art. 792 do CPP são testemunhos disso. Todavia, seria prudente que aproveitássemos a reflexão francesa, bem como desenvolvêssemos um pensamento autóctone sobre o assunto, a fim de que a regulação das relações entre mídia e judiciário seja implementada em nosso país de forma racional e sistemática.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MIGUEL, Luis Felipe. Representação Política em 3-D: Elementos para uma teoria da representação política amplificada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092003000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1º de Abril de 2008.

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RAHAL, Flávia. Publicidade no Processo Penal: a mídia e o processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, 2004, pp. 270-283.

ROURE, Sandrine. L’élargissement du principe de publicité des débats judiciaires. Revue Française de Droit Constitutionnel, nº 68, 2006

SARTORI, Giovanni. Homo Videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: EDUSC, 2001.

VIDAL, Luís Fernando C. B. Mídia e Júri: possibilidade de restrição da publicidade do processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41, 2003, pp. 113-124.

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Notas

01 SARTORI, Giovanni. Homo Videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: EDUSC, 2001.

02 Felizmente, o ponto omitido já foi amplamente tratado por muitos estudiosos. Vejam-se, por todos: CAPPELETTI, Mauro. TALLON, Denis. Fundamental guarantees of the parties in civil litigation. Milão: Giuffré, 1973. GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. Disponível em: < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429>. Acesso em 1º de abril de 2008.

03 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1997, p.84

04 GRECO, Leonardo. op.cit. p. 27.

05 ROURE, Sandrine. L’élargissement du principe de publicité des débats judiciaires. Revue Française de Droit Constitutionnel, nº 68, 2006, p. 740.

06 MIGUEL, Luis Felipe. Representação Política em 3-D: Elementos para uma teoria da representação política amplificada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092003000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1º de Abril de 2008.

07 GARAPON, Antoin. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituo Piaget. 1997, p.275.

08 "Em março de 1994, vários órgãos da imprensa publicaram uma série reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, todas alunas da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, na capital. Os seis acusados eram os donos da escola Ichshiro Shimada e Maria Aparecida Shimada; os funcionários deles, Maurício e Paula Monteiro de Alvarenga; além de um casal de pais, Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França. De acordo com as denúncias apresentadas pelos pais, Maurício Alvarenga, que trabalhava como perueiro da escola, levava as crianças, no período de aula, para a casa de Nunes e Mara, onde os abusos eram cometidos e filmados. O delegado Edelcio Lemos, sem verificar a veracidade das denúncias e com base em laudos preliminares, divulgou as informações à imprensa. A divulgação do caso levou à depredação e saque da escola. Os donos da escola chegaram a ser presos. No entanto, o inquérito policial foi arquivado por falta de provas. Não havia qualquer indício de que a denúncia tivesse fundamento. Com o arquivamento do inquérito, os donos e funcionários da escola acusados de abusos deram início à batalha jurídica por indenizações. Além da empresa ''Folha da Manhã'', outros órgãos de imprensa também foram condenados, além do governo do estado de São Paulo". Entenda o caso da Escola Base. O Globo Online. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sp/mat/2006/11/13/286621871.asp> Acesso em: 1º de Abril de 2008.

09 Ao encontro da afirmação, segue a advertência de Fábio Konder Comparato: "Na realidade, porém, a organização do espaço público de comunicação – não só em matéria política, como também econômica, cultural ou religiosa – faz-se, hoje, com o alheamento do povo, ou a sua transformação em massa de manobra dos setores dominantes. Assim, enquanto nos regimes autocráticos a comunicação social constitui monopólio dos governantes, nos países geralmente considerados democráticos o espaço de comunicação social deixa de ser público, para tornar-se, em sua maior parte, objeto de oligopólio da classe empresarial, a serviço de seu exclusivo interesse de classe". COMPARATO, Fábio Konder. A Democratização dos Meios de Comunicação de Massa. Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. Ed. Malheiros e Revista USP, 2001.

10 Rui Barbosa contemporâneo aos fatos, foi uma das vozes insurgentes contra a injusta condenação do oficial Dreyfus. A posição de Rui pode ser vista ao lado do artigo daquela de Zola na seguinte obra: BARBOSA, RUI. ZOLA, Emile. Eu Acuso!: O Processo do capitão Dreyfus. São Paulo: Ed. Hedra, 2007, 112 p.

11Idem, pp. 273-295.

12Rapport de la Comission sur l’enregistrement et la diffusion des débats judiciaires, 2005. Disponível em: < http://lesrapports.ladocumentationfrancaise.fr/BRP/054000143/0000.pdf>. Acesso em: 1º de Abril de 2008.

13 PACHA, Andréa Maciel. A Justica, a comunicacao e o pensamento unico. Forum: Debates sobre justiça e cidadania, v. 3, n.12,p 34.

14 Vejam-se, por exemplo: RAHAL, Flávia. Publicidade no Processo Penal: a mídia e o processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, 2004, pp. 270-283; VIDAL, Luís Fernando C. B. Mídia e Júri: possibilidade de restrição da publicidade do processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41, 2003, pp. 113-124. ;ÁVILA, G. N. GAUER, G. J. C. Presunção de inocência, mídia velocidade e memória – breve reflexão transdiciplinar. Revista de Estudos Criminais, nº 24, 2007, pp. 105-113.

15 TJSP, 5ª Câmara da Seção Criminal, HC 972.803.3/0-00, Relator Des. José Damião Pinheiro Machado Cogan.

16 RAHAL, Flávia. op. cit. p.273.

17 PL -1407/2007. Autor: Dep. Carlos Bezerra, PMDB / MT.

18 Conforme: ROURE, Sandrine. op. cit.p. 740.

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Sobre o autor
Rodrigo de Souza Tavares

Advogado, Mestre em Direito pela UGF-RJ, Professor na mesma Instituição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Rodrigo Souza. Mídias audiovisuais e tribunais.: Uma análise comparativa sobre o televisionamento dos debates judiciais com base nas experiências brasileira e francesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1765, 1 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11227. Acesso em: 17 mai. 2024.

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