Capa da publicação Delegado e insignificância: poder na tipificação de condutas
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Autoridade de garantias: o poder do delegado de polícia em tipificar condutas em face ao princípio da insignificância

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20/12/2024 às 16:17
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O Delegado de Polícia pode decidir sobre a aplicação do princípio da insignificância para evitar a instauração de inquéritos ou prisões desproporcionais?

Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar se o Delegado de Polícia, diante de um fato flagrantemente desprovido de tipicidade material, pode aplicar o princípio da insignificância ao caso ou se o reconhecimento dessa insignificância está restrito à análise do Ministério Público e do Poder Judiciário. Para isso, parte-se da concepção de um Direito Penal de natureza subsidiária e fragmentária, considerando também a lógica do garantismo penal e o conceito de tipicidade material.

Palavras-chave: princípio da insignificância; Delegado de Polícia; tipificação; atipicidade material; direitos fundamentais.


1. INTRODUÇÃO

Atribui-se ao princípio da insignificância o status de causa supralegal de exclusão da tipicidade material, com certa razão, já que sua aplicação não possui previsão legal, mas tão somente doutrinária e jurisprudencial. Sendo assim, partindo da ideia de que para uma conduta ser considerada criminosa esta tem que atender ao conceito analítico de crime, ou seja, constituir um fato típico, ilícito e culpável, entende-se que a insignificância irá excluir, de plano, a análise do fato típico, mais especificamente no seu elemento tipicidade material. Nesse sentido, o Direito Penal não pune as condutas que apesar de se encaixarem perfeitamente na descrição de um tipo penal não ferem o bem o jurídico protegido pela norma.

Desta forma, pela falta de tratamento legislativo ao tema, a incidência do princípio da insignificância ao caso concreto é condicionada à presença de determinados requisitos descritos pelo Supremo Tribunal Federal como vetores objetivos, quais sejam: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência total de periculosidade social da ação; ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica ocasionada. Todavia, pouco se discute na jurisprudência quais seriam os sujeitos jurídicos aptos a aplicar o princípio da insignificância, pois, a uma primeira vista, atribui-se essa função somente ao Ministério Público, titular da ação penal, e ao Poder Judiciário.

No entanto, atualmente, tem sido alvo de muitas discussões doutrinárias a possibilidade de aplicação da insignificância por outro personagem, qual seja, o Delegado de Polícia.

Portanto, buscou-se reunir informações com o propósito de responder ao seguinte problema de pesquisa: ao se deparar com um fato flagrantemente insignificante, isto é, ausente de tipicidade material à luz dos critérios objetivos descritos pelo STF, pode o Delegado de Polícia deixar de lavrar auto de prisão em flagrante, deixar de instaurar inquérito policial ou, até mesmo, não realizar o registro da ocorrência policial? Ou sua análise dos fatos está limitada à tipicidade formal, de maneira que o reconhecimento da insignificância se encontra restrito ao exame do Ministério Público e do Poder Judiciário?

Apesar desse estudo ainda estar em desenvolvimento no âmbito doutrinário, seu grande foco é analisar de que forma a aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia pode servir como obstáculo à movimentação desnecessária da máquina estatal diante da ausência de tipicidade material da conduta. Dessa forma, um dos passos a ser realizado para alcançar esse objetivo geral da pesquisa é explicar, de fato, qual a definição do princípio da insignificância, suas origens, natureza jurídica e quais os requisitos objetivos e subjetivos para sua aplicação.

Ademais, se faz necessário entender quem é a figura do Delegado de Polícia e como sua carreira é constituída, de forma a perceber o aspecto jurídico de suas atividades e seu poder discricionário de decisão diante de uma situação fática. Por fim, têm-se por objetivo analisar a possibilidade e abrangência da atuação do Delegado na aplicação do princípio da insignificância já no estágio da investigação criminal, de forma a demonstrar que a autoridade policial não é obrigada, inclusive, a instaurar inquérito policial ou lavrar auto de prisão em flagrante diante de uma ocorrência nitidamente carente de tipicidade material, a qual pode e deve proceder um primeiro juízo desta.

Conforme explicado acima, o que importa é reconhecer o poder que possui o Delegado de Polícia em tipificar condutas em face ao princípio da insignificância, uma vez que, este se constitui como representante tanto do Estado- Investigação quanto da Polícia Judiciária, visto que a insignificância ataca a tipicidade e, portanto, a própria configuração do crime em seu conceito analítico podendo, assim, ser por ele aplicada.

Nessa conjuntura, devido à grande problemática de movimentar a máquina pública em razão de fatos insignificantes aos olhos do Direito Penal, essa pesquisa se justifica através da aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia de forma a contribuir para a diminuição do inchaço do Poder Judiciário, assim como, para proporcionar uma maior celeridade na aplicação da norma de forma a evitar o encarceramento desnecessário de pessoas por fatos atípicos, o que confirma a posição da autoridade policial como o primeiro operador do Direito a analisar o fato concreto e realizar a adequação típica.

Para o desenvolvimento do presente trabalho,foram utilizadas pesquisas bibliográficas, tais como as provenientes de livros, artigos científicos, revistas e documentos eletrônicos na busca de discernimento sobre o que pensam os autores acerca do poder do Delegado de Polícia em tipificar condutas em face ao princípio da insignificância.

Dessa forma, a coleta de dados se deu mediante a abordagem do tema sob a ótica de autores clássicos, como Francisco de Assis Toledo, Paulo Queiroz e Juarez Cirino dos Santos, mas também, baseado em uma doutrina mais atual e voltada de forma mais específica para a problemática da pesquisa, tais como Luiz Flávio Gomes, Fernando Capez, Cleber Masson, Henrique Hoffmann, dentre outros.

Assim sendo, o trabalho de conclusão de curso estrutura-se em três capítulos, apresentando-se no primeiro a definição do princípio da insignificância e de sua natureza jurídica baseado no conceito analítico de crime, bem como, quem são os sujeitos de aplicabilidade deste e como se concebe sua relação com os demais princípios presentes no ordenamento jurídico, além de demonstrar como a doutrina e jurisprudência o aplicam aos mais variados delitos.

Já no segundo capítulo, o foco da pesquisa foi a pessoa do Delegado de Polícia, de forma a compreender como é sua atuação à luz da ordem constitucional e da lei que rege a carreira, qual seja, a lei nº 12.830/2013. Dessa forma, buscou-se atribuir ao Delegado o status de autoridade que exerce atividade de natureza jurídica e imprescindível não só para encontrar o infrator de determinado delito, mas também, para proporcionar a garantia dos direitos fundamentais, da legalidade e da justiça.

Por fim, o terceiro capítulo busca convergir os dois anteriores, de maneira a demonstrar os mais variados posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais tanto favoráveis quanto desfavoráveis acerca da aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado, não deixando de expor qual é o posicionamento mais adequado sobre o tema com base em todas as informações coletadas ao longo deste estudo.


2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA SOB A ÓTICA DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

O conceito de crime sob o qual se deve recair o prisma jurídico é o conceito analítico, ou seja, aquele que considera o crime como um fato típico, ilícito e culpável. No que se refere ao fato típico, este é o primeiro substrato do crime, o qual representa um fato considerado pela lei como uma infração penal, sendo formado pela conduta, nexo de causalidade, resultado e tipicidade, a qual pode ser formal e material, sendo esta última o alvo de incidência do princípio da insignificância.

Portanto, quando se fala em tipicidade, devem ser esquecidos o conceito formal de crime, o qual considera crime como toda ação ou omissão proibida por lei, pouco importando o seu conteúdo, assim como o conceito material, ao definir crime como tudo aquilo que viola um bem jurídico fundamental para a existência da coletividade. Nesse contexto, nasce a teoria tripartida, a qual atribui uma espécie de equação do crime, ou seja, para que reste caracterizada uma infração penal, primeiro deve ser analisada a tipicidade da conduta, que caso se faça presente, resultará na análise da ilicitude e da culpabilidade do comportamento, sendo na análise da materialidade do fato o ponto de incidência do princípio da insignificância (CAPEZ, 2018).

Pode-se dizer que, sob a ótica do bem jurídico a ser protegido, o crime pode ser considerado como uma ação ou omissão humana que lesiona ou ao menos põe em risco tais bens jurídicos. Todavia, para Toledo (2007) fica claro que tal definição, por si só, se faz por insuficiente, visto que há a necessidade de considerar todos os elementos estruturais do crime, quais sejam: a ação típica, ilícita e culpável. Vale ressaltar que, sob a ótica do Código Penal Brasileiro, a punibilidade não integra tal conceito analítico de crime, visto que, para que o crime se faça presente não se leva em consideração a possibilidade do agente infrator cumprir a sanção correspondente à sua infração, ou seja, há crime mesmo sem a imposição de pena, sendo a punibilidade uma consequência jurídica do crime e não um elemento constitutivo deste (TOLEDO, 2007, p.133).

Conforme explicado acima, o fato típico é formado pela Conduta, Resultado, Nexo de Causalidade e Tipicidade. No tocante à conduta, se faz interessante, aliás, perceber que foi adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro a teoria finalista da ação de Hans Wezel, ou seja, para a conduta ser considerada criminosa, tenha ela advindo de uma ação ou de uma omissão,esta tem que ser voluntária, consciente, humana (em regra) e voltada para uma finalidade. (PACELLI & CALLEGARI, 2018, p.218).

Assim, a consequência desta conduta gerará um resultado, pouco importando se o crime é material, formal ou de mera conduta. Ademais, no que se refere ao resultado em seu âmbito jurídico, todo crime há de ser revestido por este visto que em toda infração um bem jurídico tutelado é agredido. Todavia, é verdade que existem os crimes sem resultado, pois são aqueles em que falta o chamado resultado naturalístico (BITENCOURT,2014, p.60). Isso explica a aplicação do princípio da insignificância, tendo em vista que o resultado é toda lesão ou ameaça de lesão a um interesse penalmente relevante e quando não há esse dano ao bem jurídico o fato não deve ser punido aos olhos do Direito Penal.

Porém, se faz de suma importância entender que é necessário existir algo que conecte a conduta ao resultado, sendo este liame o nexo de causalidade. O Código Penal, ao disciplinar o nexo causal estabeleceu duas teorias da relação de causalidade: Teoria da equivalência dos antecedentes causais, também chamada de Teoria da "conditio sinequa non" e Teoria da Causalidade Adequada ou da Condição Qualificada. A primeira foi adotada pelo Código Penal em seu artigo 13, a qual prevê que tudo aquilo que contribuir para o resultado será considerado uma causa delitiva. Já a segunda teoria, para muitos autores prevista no art.13, §1ª, defende que causa é a ação ou omissão que além de praticar um antecedente indispensável à produção do resultado, realiza uma atividade adequada à sua concretização. (XAVIER, GUEDES, & MOURA, 2019, p. 104-105).

Por sua vez, os Tribunais Superiores já aplicaram outra teoria para apontar o nexo de causalidade: a teoria da imputação objetiva. Tal teoria busca quebrar o regresso ao infinito gerado pela teoria da equivalência dos antecedentes causais, ou seja, o resultado só pode ser imputado ao agente quando sua conduta gerar um risco proibido e relevante no resultado e que esse resultado se encontre abarcado dentro da esfera de proteção da norma. Somente nessas condições é que o fato seria formalmente criminoso e possibilitaria a análise acerca da sua tipicidade material, conforme entendimento do STF a seguir destacado:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.

1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41. do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.

4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.

6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580. do Código de Processo Penal

( STJ - HC: 46525 MT 2005/0127885-1, Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Data de Julgamento: 21/03/2006, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 10.04.2006 p.245). Grifei.

Por falar em tipicidade, como já exposto, esta é o último componente do fato típico, sendo constituída na esfera formal e material. Vale ressaltar, que não basta o encaixe perfeito entre a conduta praticada pelo agente e o tipo penal, visto que, para o fato ser típico há a necessidade de existir uma lesão (crime de dano) ou um perigo de lesão (crime de perigo), o que justifica a aplicação do princípio da insignificância não de maneira genérica, mas sim, considerando as peculiaridades do caso concreto. (SANTOS, 2010, p.26).

Nessa mesma linha de raciocínio, leciona Greco (2015, p.142):

Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção. Quando o legislador penal chamou a si a responsabilidade de tutelar determinados bens - por exemplo, a integridade corporal e o patrimônio -, não quis abarcar toda e qualquer lesão corporal sofrida pela vítima ou mesmo todo e qualquer tipo de patrimônio, não importando o seu valor.

Assim, por todo o exposto, há de se concluir que o princípio da insignificância possui a natureza jurídica de causa supralegal de exclusão da tipicidade material (GOMES, 2010), tendo em vista a ausência de lesão ao bem protegido pela norma penal.

De acordo com esse entendimento, decidiu o STJ em julgado abaixo descrito:

“HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A FURTO. RES FURTIVA: MEMORY CARD AVALIADO EM R$ 15,00, RESTITUÍDO À VÍTIMA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE MESMO ANTE O COMETIMENTO DO FATO POR MENORES. PRECEDENTES DO STJ.PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. ORDEM CONCEDIDA, PARA, APLICANDO O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, TRANCAR A REPRESENTAÇÃO PENAL.

1. A jurisprudência desta Corte tem pacificamente enunciado a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ao fato cujo agente tenha praticado ato infracional equiparado a delito penal sem significativa repercussão social, lesão inexpressiva ao bem jurídico tutelado e diminuta periculosidade de seu autor. Precedentes. 2. O princípio da insignificância, que está diretamente ligado aos postulados da fragmentariedade e intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem sido acolhido pelo magistério doutrinário e jurisprudencial tanto desta Corte, quanto do colendo Supremo Tribunal Federal, como causa supra-legal de exclusão de tipicidade.Vale dizer, uma conduta que se subsuma perfeitamente ao modelo abstrato previsto na legislação penal pode vir a ser considerada atípica por força deste postulado. 3.No caso em apreço, além de o bem substraído ter sido recuperado, o montante que representava não afetaria de forma expressiva o patrimônio da vítima, razão pela qual incide na espécie o princípio da insignificância. 4.Ordem concedida, em conformidade com o parecer ministerial, para, aplicando o princípio da insignificância, trancar a representação penal em curso em razão dos fatos ora especificados”.

(STJ HC 163.349/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 01/06/2010, DJe 28/06/2010). Grifei.

Fica evidente, diante desse quadro, que o princípio da insignificância ou da bagatela própria se encontra diretamente ligado com o conceito analítico de crime, mais especificamente no que se refere ao fato típico, no seu elemento tipicidade material. Ou seja, a aplicação ou não do princípio da insignificância ainda no primeiro substrato do crime, o fato típico, irá decidir se haverá a análise da ilicitude e da culpabilidade da conduta: em caso de incidência de tal princípio, a ilicitude não chega nem a ser analisada, muito menos a culpabilidade.

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2.1. OS SUJEITOS DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO CASO CONCRETO

O princípio da insignificância e sua consequente aplicação tem sido bastante debatido no âmbito doutrinário e jurisprudencial, principalmente no que se refere à moderna visão da tipicidade penal. Sua incorporação ao Direito Penal se deu no ano de 1970, graças aos estudos de ClausRoxin, todavia, sua origem se deu no Direito Romano através do brocardo latino "minimus non curatpraetor". Em outras palavras, os órgãos julgadores não devem se ocupar de assuntos irrelevantes (MASSON, 2015, p.199).

A configuração dos elementos do crime passa por analisar, inicialmente, a ocorrência da adequação típica formal e material, sendo nesta última que o referido princípio ganha aplicabilidade. Assim, o princípio da insignificância, também conhecido como princípio da bagatela, se apresenta como uma cláusula supralegal de exclusão da tipicidade material, e tem por finalidade reconhecê-la diante da efetiva lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido, bem como, realizar um juízo de proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a intervenção estatal (QUEIROZ, 2014, p.86).

Nesse sentido, leciona Bitencourt (2014), vejamos:

A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado (BITENCOURT, 2014, p. 60).

O autor deixa claro que para haver o reconhecimento da tipicidade de uma conduta criminosa não é suficiente o simples encaixe da conduta ao tipo penal previsto na lei, mas há um fato que se sobrepõe, qual seja, a relevância da conduta no seu âmbito material. Conforme citado acima, não existe razão para que ocorra a movimentação desnecessária da máquina estatal em decorrência de uma conduta que não violou o bem jurídico protegido pela norma. É sinal de que há, enfim, uma tentativa de mostrar que o Direito Penal não lida com todos os bens jurídicos, mas apenas àqueles que as outras esferas do Direito não conseguem proteger.

Nesse contexto, fica claro que tal princípio possibilita que o Direito Penal só seja aplicado, de fato, nos casos em que o bem jurídico tutelado seja lesionado ou sofra perigo de lesão. Sendo assim:

Em virtude do conceito de tipicidade material, excluem-se dos tipos penais aqueles fatos reconhecidos como de bagatela, os quais têm aplicação o princípio da insignificância. Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a importância do bem ao caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal. (GRECO, 2012, p. 160).

Ora, em tese, mesmo os autores citados acima terem alguns anos de diferença nas publicações, percebemos as mesmas ideias. Caso contrário, teríamos uma regressão na forma de entender e aplicar o ordenamento jurídico. Conforme citado acima, não se trata de um juízo de valor sobre a existência formal ou não do crime, mas sim, da absolvição do agente que não fere o bem jurídico do ponto de vista material, não constituindo uma lesão apta de ser protegida na esfera penal. Lamentavelmente, não é uma realidade absoluta nos tempos atuais, havendo muitas decisões conflitantes e divergentes sobre a consideração da insignificância ao caso concreto. (QUEIROZ, 2014).

Desse modo, pode-se dizer que o princípio da insignificância é uma causa de exclusão da tipicidade material. Nesse contexto, como bem nos assegura Capez (2017, p. 60), "a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em um tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido".

O mais preocupante, contudo, é constatar que o princípio da insignificância não possui parâmetros que permitam identificar socialmente um fato como insignificante sem fugir da subjetividade. Não é exagero afirmar que, por exemplo, de forma recorrente, há a movimentação desnecessária da máquina estatal pela ausência de tipicidade material da conduta, considerando apenas o encaixe entre a conduta e o fato descrito em lei, sendo esta uma análise insuficiente para considerar um fato típico ou atípico. É importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado no sentido de que a análise da insignificância não pode ficar presa a regras gerais, isso porque a avaliação do juiz deve ser casuística, considerando as peculiaridades de cada caso concreto para considerar a aplicação do princípio, vejamos:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TENTATIVA DE FURTO. CRIME IMPOSSÍVEL, FACE AO SISTEMA DE VIGILÂNCIA DO ESTABELECIMENTO COMERCIAL. INOCORRÊNCIA. MERCADORIAS DE VALOR INEXPRESSIVO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. 1. O pleito de absolvição fundado em que o sistema de vigilância do estabelecimento comercial tornou impossível a subtração da coisa não pode vingar. As pacientes poderiam, em tese, lograr êxito no intento delituoso. Daí que o meio para a consecução do crime não era absolutamente ineficaz. 2. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística, tendo-se em conta critérios objetivos. 3. A tentativa de subtração de mercadorias cujos valores são inexpressivos não justifica a persecução penal. O Direito Penal, considerada a intervenção mínima do Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões significativas aos bens juridicamente tutelados. 4. Aplicação do princípio da insignificância justificada no caso. Ordem deferida a fim de declarar a atipicidade da conduta imputada às pacientes, por aplicação do princípio da insignificância.

(STF HC 97129, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 11/05/2010, DJe-100 DIVULG 02-06-2010 PUBLIC 04-06-2010 EMENT VOL-02404-02 PP-00300).

Dessa forma, a partir desse contexto, surge a grande questão a ser debatida nesta obra: ao se deparar com um fato flagrantemente insignificante de acordo com os critérios objetivos descritos pelo STF, seria possível ao Delegado de Polícia deixar de lavrar auto de prisão em flagrante, deixar de instaurar inquérito policial ou não realizar o registro da ocorrência policial? Ou sua análise dos fatos está limitada à tipicidade formal, estando o reconhecimento da insignificância restrito ao Ministério Público e ao Poder Judiciário?

Tal tema é alvo de grande debate na doutrina e na jurisprudência, o que faz existir autores, como Greco (2012), por exemplo, que se posicionam no sentido da não aplicação do princípio da bagatela pelo Delegado, sob o argumento de que tal autoridade deve se limitar à atividade de cunho investigativo e à análise do encaixe entre a conduta praticada e o tipo penal respectivo.

Também coadunam com esse pensamento os juristas Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2013), os quais defendem que a decisão pela aplicação da insignificância ou não deve pertencer ao titular da ação penal, e não ao Delegado de Polícia.

Todavia, no sentido de mostrar uma outra visão, a qual é a que será defendida, Masson (2015, p.28) mostra que é interessante, aliás, lembrar acerca da dificuldade com a movimentação desnecessária da máquina estatal pela ausência de tipicidade material da conduta, pois há um fato que se sobrepõe à provocação exacerbada do Estado, uma vez que, é importante a aplicação dos vetores objetivos relativos ao princípio da insignificância pelo Estado Juiz.

Mesmo assim, não parece haver razão para que tal princípio não seja aplicado por outro sujeito jurídico, qual seja, o Delegado de Polícia, visto que, a autoridade policial é a primeira receptora da notícia do crime, a qual é obrigada, tanto pela Constituição Federal quanto pela Lei que rege a carreira (lei 12.830/2013) a exercer suas atribuições em harmonia com os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, também possui por dever garantir que pessoas não sejam violentamente encarceradas por fatos de pouquíssima ou nenhuma repercussão penal e social (BRENE, 2019, p.186-187).

É sinal de que há, enfim, uma tentativa de diminuir a superlotação do Poder Judiciário e conceder uma maior celeridade na aplicação da norma ao caso concreto, confirmando a competência da Autoridade Policial, por exemplo, em chefiar o exercício tanto da função de Polícia Investigativa, quanto de Polícia Judiciária, buscando romper com a sobrecarga decisória depositada no Estado Juiz.

Nesse mesmo sentido, o magistério de Masson (2015, p.44) aduz que:

“O princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial. Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade. Para nós, o mais correto é agir com prudência no caso concreto, acolhendo o princípio da insignificância quando a situação fática efetivamente comportar sua incidência”. Grifei.

Conforme explicado acima o que importa, portanto, é reconhecer em que casos cabe a aplicação do princípio da insignificância e quais são os sujeitos aptos a aplicá-lo, como o Magistrado, Membro do Ministério Público e o Delegado de Polícia. Essa, porém, é uma tarefa que se mostra cercada de inúmeras barreiras no ordenamento jurídico pátrio. Vê-se, pois, que uma parte da doutrina e jurisprudência é contrária a aplicação de tal princípio pela Autoridade Policial, se posicionando no sentido de que somente o Poder Judiciário poderia aplicá-lo.

Portanto, o autor deixa claro a importância da figura do Delegado não só como representante do Estado- Investigação, mas também, como detentor da função de Polícia Judiciária, visto que a insignificância ataca a tipicidade, e, portanto, a própria configuração do crime em seu conceito analítico, podendo, assim, ser aplicado por todos os atores da persecução penal, inclusive o Delegado de Polícia, até antes mesmo de ser iniciada a investigação. Infelizmente, na maioria dos casos, a preocupação com o movimento indevido do aparato estatal é vencido pela banalização do Direito Penal e de alguns de seus princípios basilares, tais como o da intervenção mínima, subsidiariedade, proporcionalidade e lesividade. Por final, a aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia pode se revelar como uma ótima alternativa para solucionar o inchaço do Poder Judiciário, ora que ele é o primeiro operador do Direito a analisar o fato concreto e realizar a adequação típica, podendo e devendo reconhecer a existência manifesta de uma causa excludente da tipicidade diante de um caso concreto.

2.2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E SUA CORRELAÇÃO COM OUTROS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL

Inicialmente, se faz importante frisar que o ordenamento jurídico pátrio é formado por inúmeros princípios, que ao lado das regras, formam a base para a interpretação e aplicação do Direito. Ou seja, os princípios são o conjunto de mandamentos nucleares e valores fundamentais que impõe a criação e a conservação do ordenamento jurídico, auxiliando tanto o legislador quanto os aplicadores do Direito na elaboração e aplicação da tarefa interpretativa (SILVA, 2006, p.23).

Nesse contexto, pode-se perceber que determinados princípios estão estritamente interligados, sendo improvável a aplicabilidade de um deles sem a influência do outro. Este é o caso dos princípios da insignificância, intervenção mínima, ofensividade, adequação social e proporcionalidade, visto que somente a aplicação conjunta e harmônica deles é capaz de legitimar o poder punitivo do Estado.

Pode-se dizer que, no que se refere ao princípio da intervenção mínima, o Direito Penal atua como um verdadeiro soldado reserva, ou seja, só entra em ação quando as demais áreas do Direito falham na solução de determinada problemática jurídica. Neste contexto, fica claro que em matéria penal não se tem a proteção de todos os bens jurídicos, mas somente daqueles considerados mais importantes ao convívio social. Este princípio decorre do caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal (PACELLI & CALLEGARI, 2018, p.97).

Assim, por força deste princípio, num sistema punitivo, como é o Direito Penal, a criminalização de condutas só deve ocorrer quando se caracterizar como meio absolutamente necessário à proteção de bens jurídicos relevantes (fragmentariedade), e desde que isso não seja possível pelos outros ramos do Direito (subsidiariedade). Não é exagero afirmar que este princípio fundamenta o princípio da insignificância ao passo que as normas penais não serão invocadas para cuidar de condutas que não lesionem ou não causem perigo de lesão ao bem jurídico tutelado (MASSON, 2015, p.199).

Na mesma linha de pensamento se insere o princípio da adequação social, o qual prega que não devem ser consideradas típicas as condutas que não ferem o sentimento de justiça da sociedade. Desse modo, não se pode confundir os princípios da insignificância com o da adequação social, tendo em vista que na insignificância a conduta não é aceita pela sociedade, mas apenas tolerada em virtude de sua escassa lesividade. Assim, estes princípios não se contradizem, pelo contrário, se completam e se amoldam à concepção material do tipo penal. (TOLEDO, 2007, p.133).

Conforme explicado, a tipicidade material será a fonte embasadora para a aplicação de todos os princípios ora mencionados, ou seja, uma conduta só será criminosa se lesionar ou causar perigo de lesão ao bem protegido. Aliás, é nesse raciocínio jurídico que se encaixa o princípio da ofensividade ou lesividade, o qual pune tanto os crimes de dano quanto os crimes do perigo. Mas, afinal, qual a diferença entre eles? Em uma breve explanação, pode-se afirmar que os crimes de dano são aqueles em que o bem jurídico é efetivamente danificado. Já o crime de perigo é aquele que apesar de o objeto protegido pela norma não ser atingido, este sofre um perigo de lesão.

Nesse sentido, os crimes de perigo ainda se subdividem em duas espécies: crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Os crimes de perigo abstrato são aqueles em que o risco a que o bem jurídico é submetido é presumido, bastando a prova da conduta para que reste caracterizada a conduta criminosa. Por sua vez, nos crimes de perigo concreto o risco não se presume, sendo exigido além da prova da conduta, a comprovação de um risco real de perigo que o bem tenha sofrido (BOTTINI, 2010).

Pode-se inferir, que se o crime é de perigo abstrato não será cabível a aplicação do princípio da insignificância, pois a simples conduta já é considerada detentora de potencialidade lesiva, o que torna a lesão jurídica expressiva, sendo a aplicação de um princípio o contrapeso do outro, vejamos:

O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões irrelevantes contra bens jurídicos protegidos na lei penal. Em outras palavras, o princípio da lesividade tem por objeto o bem jurídico determinante da criminalização, em dupla dimensão: do ponto de vista qualitativo, tem por objeto a natureza do bem jurídico lesionado; do ponto de vista quantitativo, tem por objeto a extensão da lesão do bem jurídico. [...] Nessa medida, o princípio da lesividade é a expressão positiva do princípio da insignificância em Direito Penal: lesões insignificantes de bens jurídicos protegidos, como a integridade ou saúde corporal, a honra, a liberdade, a propriedade, a sexualidade etc., não constituem crime" (SANTOS, 2010, p. 26).

Fica evidente, diante desse quadro que determinados princípios atuantes na seara penal não se aplicam isoladamente, o que torna necessária a interligação destes com outros princípios para obterem aplicabilidade. É interessante, aliás, perceber que o fato de determinada conduta típica ser ou não considerada insignificante será o guia para fundamentar a incidência dos outros princípios ao caso concreto. Isto se dá em razão do Instituto do Garantismo Penal, regido pelo princípio da proporcionalidade, o qual pugna pelo equilíbrio entre o limite do direito de punir do Estado e a proteção dos bens jurídicos pertencentes à sociedade (SANTOS, 2010). Desta feita, propõe a aplicação do Direito Penal apenas e exclusivamente como ultima ratio, ou seja, somente quando for imprescindível ante o fracasso dos demais ramos do Direito e das instituições sociais na solução dos conflitos. Da mesma forma ocorre com os princípios da adequação social e da lesividade ou ofensividade. Se um fato é aceito socialmente por não ferir o sentimento de justiça da sociedade, infere-se que o Direito Penal não deve atuar, pois apenas as condutas que a sociedade realmente reprova devem ser apenadas.

2.3. PREVISÃO LEGAL E ACATAMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL NO BRASIL.

Faz- se importante frisar, prosseguindo com o raciocínio firmado, que o princípio da insignificância não possui previsão em nenhuma legislação, sendo este uma criação doutrinária e jurisprudencial, por isso, a doutrina afirma que tal princípio possui natureza jurídica de causa supralegal de exclusão da tipicidade material, servindo como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal incriminador.

Ademais, como já mencionado, o princípio da insignificância precisa se relacionar com outros princípios para que produza efeitos no caso concreto, como são os casos dos princípios da intervenção mínima e da lesividade por exemplo, pois só assim conseguirá eliminar a tipicidade da conduta em seu âmbito material. Todavia, para que incida no caso concreto, segundo os Tribunais Superiores, faz-se necessário que cumpram determinados requisitos, podendo ser eles objetivos ou subjetivos. O Supremo Tribunal Federal, no tocante à lesão ao bem jurídico, elencou requisitos ou vetores objetivos para a aplicação do princípio da bagatela, quais sejam: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência total de periculosidade social da ação; ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.(STF, 2004).

Nesse contexto, considerando os vetores objetivos descritos pelo STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou entendimento quanto a não aplicação da insignificância aos mais variados crimes, sendo eles: crimes contra a Administração Pública (STJ, 2017); posse de drogas para consumo pessoal (STJ, 2013); crimes que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher (STJ, 2017); e aos casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofreqüência (STJ, 2018), (BRENE, 2019), sob o argumento de serem crimes de perigo abstrato, bastando o risco de perigo para que a lesão ao bem jurídico seja considerada expressiva.

Outrossim, para a existência do princípio ora estudado também se faz necessária a análise dos requisitos subjetivos, ou seja, aqueles que não dizem respeito ao fato, mas sim ao agente e a vítima, recaindo sobre a reprovabilidade do comportamento (MASSON, 2015).

Nesse contexto, no que diz respeito às condições pessoais do agente, surgem duas questões: aplica-se o princípio da insignificância ao criminoso habitual? e ao reincidente? Antes de responder a tais perguntas, se faz imperioso ressaltar que o pleno do STF já decidiu que o princípio da insignificância deve ser analisado caso a caso e não de forma abstrata (STF, 2014). Bem, visto isto, em regra, no que se refere ao criminoso reincidente ou dotado de maus antecedentes, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal não cabe a aplicação do princípio da insignificância, vejamos:

A aplicação do princípio da insignificância deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais. O valor da res furtiva não pode ser o único parâmetro a ser avaliado, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato para decidir-se sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela, bem assim o reflexo da conduta no âmbito da sociedade. In casu, a) a paciente foi condenada a 3 (três) anos, 3 (três) meses e 6 (seis) dias de reclusão, em regime inicial semiaberto, pela prática do crime de furto qualificado pelo concurso de agentes (art. 155, § 4º, IV, do CP), por ter subtraído uma lata de azeite de oliva, dois bolos e três discos de uma máquina Makita de três estabelecimentos comerciais distintos. Ademais, trata-se de condenada reincidente na prática de delitos contra o patrimônio. Destarte, o reconhecimento da atipicidade da conduta da recorrente, pela adoção do princípio da insignificância, poderia, por via transversa, imprimir nas consciências a ideia de estar sendo avalizada a prática de delitos e de desvios de conduta.

(STF, HC nº 123.108/MG. Relator: Ministro Roberto Barroso. , 2014). Grifei.

Por outro lado, de forma singular e direcionada a um caso específico, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu em sentido contrário no sentido de aplicar o princípio da bagatela mesmos nos casos de reincidência, justamente por entender que a demonstração da reincidência, por si só, não é suficiente para afastar a aplicação do princípio, conforme exposto a seguir:

A análise objetiva do caso em exame conduz ao reconhecimento da configuração, na espécie, do fato insignificante, a descaracterizar, no plano material, a tipicidade penal da conduta em que incidiu a ora paciente, eis que estão presentes todos os vetores cuja ocorrência autoriza a aplicação do postulado da insignificância. (...) No caso, o reduzidíssimo valor das “res furtivae” (R$ 40,00 !!!) e as circunstâncias concretas em que se deu a subtração patrimonial, meramente tentada, com a restituição dos objetos (duas peças de queijo!!!) subtraídos à vítima (uma sociedade empresária), justificam, não obstante a condição de reincidência, o reconhecimento do fato insignificante.

(STJ, HC n° 84.412/SP. Relator: Ministro Celso de Mello. DJU: 19/04/2004. AgRg no REsp1459...MG. Relator: Min. Rogério Schietti Cruz, 6ºª Turma. DJ:07/05/2015., 2018). Grifei.

Todavia, se com relação ao reincidente existe uma pequena divergência entre os julgamentos dos tribunais, apesar da não aplicação da bagatela ser o mais comum ao caso concreto, com relação ao criminoso habitual as decisões são unânimes pela não aplicação da insignificância.

Além disso, criminoso habitual é todo e qualquer indivíduo que faz do crime o seu estilo de vida, o praticando seguidas vezes de maneira padronizada, não sendo compatível com o Direito Penal incentivar tal descumprimento da lei (MASSON, 2015), conforme decisão do STF:

EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. DESCAMINHO. VALOR INFERIOR AO ESTIPULADO PELO ART. 20. DA LEI 10.522/2002. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. HABITUALIDADE DELITIVA. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. 1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada considerando os aspectos relevantes da conduta imputada. 2. A habitualidade delitiva revela reprovabilidade suficiente a afastar a aplicação do princípio da insignificância (ressalva de entendimento da Relatora). Precedentes. 3. Agravo regimental conhecido e não provido

(STF, HC 133956. AgR. Relatora: Min. ROSA WEBER. Primeira Turma.DJ:21/06/2016., 2016). Grifei.

Pois bem, ainda no que se refere aos vetores subjetivos para aplicação do princípio da bagatela, se faz imperioso destacar e levar em consideração as condições da vítima, ou seja, sua capacidade econômica, e o valor sentimental da coisa subtraída. Desta forma, entendeu o STJ que para incidir o princípio da insignificância, principalmente nos crimes contra o patrimônio, deve-se analisar a capacidade econômica da vítima, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.INAPLICABILIDADE. QUALIDADE E VALOR DA COISA FURTADA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. INVASÃO DA RESIDÊNCIA DA VÍTIMA. RECURSO PROVIDO. I. A aplicação do princípio da insignificância requer o exame das circunstâncias do fato e daquelas concernentes à pessoa do agente,sob pena de restar estimulada a prática reiterada de furtos de pequeno valor. II. A verificação da lesividade mínima da conduta apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar,subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado. III. Hipótese em que o agente invadiu a casa da vítima com o intuito de se subtrair o bem, tendo sido detido pela vítima, que acionou a Brigada Militar, impedindo a consumação do delito. IV. Circunstância que demonstra maior audácia do agente que o pratica. V. O valor e a qualidade dos bens subtraídos associados às circunstâncias do crime que revelam a existência de relevância penal da conduta. VI. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.

(STJ, REsp: 1224795 RS 2011/0000034-9, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 13/03/2012, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/03/2012, 2012). Grifei.

Todavia, em outro julgado, o STF não reconheceu a insignificância do furto de "disco de ouro", tendo em vista que o prêmio artístico, apesar de não ser de ouro, era dotado de valor sentimental inestimável para a vítima, conforme ementa a seguir transcrita:

EMENTA Habeas corpus. Furto de quadro denominado "disco de ouro". Premiação conferida àqueles artistas que tenham alcançado a marca de mais de cem mil discos vendidos no País. Valor sentimental inestimável. Alegada incidência do postulado da insignificância penal. Inaplicabilidade. Bem restituído à vítima. Irrelevância. Circunstâncias alheias à vontade do agente. Paciente reincidente específico em delitos contra o patrimônio, conforme certidão de antecedentes criminais. Precedentes. Ordem denegada. 1. As circunstâncias peculiares do caso concreto inviabilizam a aplicação do postulado da insignificância à espécie. Paciente que invadiu a residência de músico, donde subtraiu um quadro denominado "disco de ouro", premiação a ele conferida por ter alcançado a marca de mais de cem mil discos vendidos no País. 2. Embora a res subtraída não tenha sido avaliada, essa é dotada de valor sentimental inestimável para a vítima. Não se pode, tão somente, avaliar a tipicidade da conduta praticada em vista do seu valor econômico, especialmente porque, no caso, o prejuízo suportado pela vítima, obviamente, é superior a qualquer quantia pecuniária. 3. Revela-se irrelevante para o caso o argumento da defesa de que o bem teria sido restituído à vitima, pois ocorreu em circunstâncias alheias à vontade do paciente. Segundo o inquérito policial o paciente foi abordado por policiais militares em via pública na posse do objeto furtado, o que ensejou a sua apreensão e, consequentemente, a sua restituição. 4. Impossibilidade de acatar a tese de irrelevância material da conduta praticada pelo paciente, especialmente porque a folha de antecedentes criminais que instrui a impetração demonstra a presença de outros delitos contra o patrimônio por ele praticados. Com efeito, esses aspectos dão claras demonstrações de ser ele um infrator contumaz e com personalidade voltada à prática delitiva. 5. Conforme a jurisprudência desta Corte, o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente serviria muito mais como um deletério incentivo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário

(HC nº 96.202/RS, DJe de 28/5/10). 6. Ordem denegada.(STF, HC: 107615 MG, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 06/09/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-192 DIVULG 05-10-2011 PUBLIC 06-10-2011, 2011). Grifei.

Fica evidente, diante desse quadro, que para que seja aplicado o princípio da insignificância deve-se levar em consideração inúmeras variáveis, as quais, em primeiro lugar, não incidem de forma abstrata, pois necessitam de um caso concreto para produzir ou não efeitos jurídicos. Nesse sentido se posiciona a doutrina:

Uma coisa é certa: não nos parece possível operar abstratamente com o conceito de insignificância. Do contrário, estar-se-ia cometendo o mesmo erro ou submetendo o tratamento da matéria às mesmas limitações do legislador. Apenas o exame de cada caso concreto é que poderá justificar a não aplicação do Direito Penal, com fundamento na insignificância da lesão (na perspectiva da vítima), do proveito (na perspectiva do agente) e dos riscos de reiteração das ações no cotidiano dos envolvidos. (PACELLI & CALLEGARI, 2018, p. 97).

Assim, na tentativa de diminuir um pouco a subjetividade da aplicação do princípio ora em estudo, o STF elencou requisitos ou vetores objetivos para identificar a ausência de tipicidade material: mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica. Todavia, como demonstrado, tais requisitos se referem somente ao fato criminoso praticado, o que demonstra a necessidade de cumulação de tais requisitos com questões atinentes ao autor do fato, como seus antecedentes criminais, ou se é reincidente ou criminoso habitual.

E, por fim, deve-se levar em consideração a vítima da conduta criminosa, considerando, dentre outras variáveis, o valor sentimental que esta atribuía ao bem jurídico afetado. Dessa forma, entende-se que não existe nenhuma regra ou instrumento taxativo que indique de que forma se dará a aplicação do princípio da insignificância, devendo tal análise se dar caso a caso.

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Sobre o autor
Davi Afonso Coimbra de Melo

Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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