MUDANÇA DE PARADIGMA NA RELAÇÃO DE SUJEIÇÃO ESPECIAL:
Avaliação dos Impactos nos Direitos Humanos na Execução Penal Brasileira
Nilson Dias de Assis Neto1
RESUMO
Esta pesquisa, pretendemos estudar o desenvolvimento histórico que levou à atual configuração da teoria das relações de sujeições especiais desde sua origem na doutrina jurídica da Alemanha do século XIX até sua reformulação no século XX com o Tribunal Federal alemão em 1972. Na investigação, verificamos que, após permitir uma atuação da Administração sem respeito à legalidade e, com efeito, sem efetivo controle judicial, a teoria foi alterada, com base na influência de doutrinas constitucionalistas, para respeitar os direitos fundamentais e humanos de todos os cidadãos. A partir disso, analisamos a aplicação e a influência da relação de sujeição especial na execução penal no Brasil, na qual encontramos forte resistência para realizar a mudança de paradigma que permitiu à teoria respeitar os direitos das pessoas privadas de liberdade.
Palavras-chave: Teoria da Relação Especial de Sujeição, Administração, Direitos fundamentais, Direitos Humanos, Limites, Execução Penal, e Brasil.
ABSTRACT
We aim, in the present investigation, to study the historical development that reached the current configuration of the theory of the relations of special restraints from its origin in the legal doctrine of 19th century Germany to its reformulation in the 20th century with the Court of Justice German Federal in 1972. In the search, we verified that, after allowing the Administration to act without respect for legality and, in effect, without effective judicial control, the theory was changed, based on the influence of constitutionalist doctrines, to respect the fundamental and human rights of all citizens. From this, we analyze the application and influence of the special subjection relationship in criminal execution in Brazil, in which we find a strong resistance in making the change of paradigm that allowed the theory to respect the rights of prisoners.
Keywords: Theory of the Special Subjection Relationship, Administration, Fundamental Rights, Human Rights, Limits; Criminal Execution; and Brazil.
INTRODUÇÃO
No Brasil, não são incomuns as limitações aos direitos das pessoas privadas de liberdade realizadas pela Administração Penitenciária, como, por exemplo, as restrições ao consumo de determinados alimentos e a obrigação de os homens removerem todo o cabelo e a barba. Às vezes, as limitações impostas pela administração penitenciária aparecem até na imprensa quando envolvem direitos mais sensíveis, como os do preso de comparecer ao funeral de parentes e receber visitas.2
É exatamente esse o tema desta pesquisa: a teoria da relação de sujeição especial como base para limitações aos direitos fundamentais e humanos dos presos. Mais especificamente, estudaremos como nasceu a relação especial de sujeição e como ela passou por uma verdadeira mudança de paradigma sem a qual a teoria deixa de ser compatível com os sistemas jurídicos dos países democráticos, principalmente pela sua aplicação no campo da execução penal.
O mote da investigação encontra justificação como objeto de pesquisa no Eixo 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes) dos OSDs das Nações Unidas, em conformidade com o qual é objetivo de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis”3.
Perguntemo-nos: o que é a doutrina da relação especial de sujeição e como ela se desenvolveu?; por quais mudanças passou a relação especial de sujeição que produziu seu arquétipo atual?; como a teoria da relação especial de sujeição influencia a execução penal, mais especificamente no sistema prisional brasileiro?; e como o Judiciário brasileiro atualmente compatibiliza o princípio da legalidade com essa relação em sua jurisprudência majoritária?
Portanto, nosso objetivo geral é investigar como surgiu a doutrina da relação especial de sujeição, com quais características e com que configuração, bem como quais mudanças ocorreram que resultaram no atual paradigma daquela doutrina. Partindo do geral, nosso objetivo específico é verificar como essa teoria influencia a execução penal e principalmente como a jurisprudência dominante do Brasil sofre maior influência de sua versão mais antiga ou de sua concepção mais moderna.
Em tal estudo teremos uma metodologia de análise histórica daquela doutrina com uma comparação entre sua consistência em diferentes períodos de uma mesma teoria, bem como uma análise por indução de exemplos de entendimentos considerados dominantes no Brasil sobre aquela doutrina com base no qual buscamos verificar que aplicação o Judiciário brasileiro faz dela. Para tanto, teremos como referencial teórico pesquisas similares como as de RIVERA, ADAMY, ROIG, MELO e NOVAIS.4
Assim, nossa pesquisa está dividida em dois capítulos em um estudo contínuo: I) um primeiro capítulo em relação à origem da teoria da relação especial de sujeição, bem como seu desenvolvimento histórico que levou à sua configuração atual nos sistemas jurídicos de Civil Law; e II) um segundo capítulo relativo à aplicação da doutrina da relação de sujeição especial no campo da execução penal, especialmente na aplicação da jurisprudência do Poder Judiciário brasileiro.
I – A TEORIA DA RELAÇÃO ESPECIAL DE SUJEIÇÃO OU DE SUJEIÇÃO ESPECIAL
De acordo com a doutrina jurídica tradicional, não há dúvida de que o confinamento num centro penitenciário dá origem a uma relação jurídica especial entre o Estado e a pessoa. Porém, qual é a teoria que fundamenta tal entendimento jurídico? Essa teoria é a teoria da sujeição especial desenvolvida desde o final do século XIX, para justificar a distinção de algumas relações entre algumas pessoas e o Estado da relação comum Estado-cidadão.
Desde 1885, o jurista alemão Otto Mayer já utilizava as expressões “relações especiais de poder (Besonderes Gewaltverhältnis no original)”5 para fazer a oposição com “relações gerais de poder (groβes Gewaltverhältnis no original)”6. Com essa diferenciação, MAYER conceituou relações especiais de poder como um espaço jurídico no qual a Administração teria amplo poder de atuação, podendo restringir mais fortemente os direitos dos súditos.
Na mesma linha, o professor Ernest Forsthoff caracterizou a relação especial de sujeição como uma verdadeira “lacuna do direito”7, consistindo na possibilidade de determinação de assuntos especiais pelos poderes estatais que os influenciaram a partir de uma relativização da legalidade. Conquanto seja uma criação no campo do Direito Administrativo, os principais direitos envolvidos são os fundamentais, os direitos humanos e a sua proteção jurisdicional.
Na verdade, segundo o professor MONCADA, tais relações especiais de sujeição designam “um setor da atividade estatal marcado por um enfraquecimento da norma jurídica com todas as características que daí resultam”8. Essa teoria, para alguns, representava uma diminuição da efetividade dos direitos das pessoas sob sujeição especial, mas, para outros, representava a própria ausência de legalidade das normas que regulamentavam a relação entre o sujeito e o Estado, que quase tudo poderia.
A teoria da sujeição especial, criada antes da Constituição de Weimar, manteve a sua aplicação mesmo antes da Carta Magna de Bonn e, a partir da Alemanha, influenciou quase toda a Europa, como, por exemplo, Itália e Espanha. Não obstante na sua origem histórica a doutrina jurídica alemã utilizasse o termo “relações de poder especial”, a expressão consolidada para o mesmo objeto era diferente: relações de sujeição especial, que é também a utilizada pelo Tribunal Constitucional da Espanha.9
Segundo o professor RAMÍREZ, devido à teoria da sujeição especial ou doutrina do poder especial, “diferenciaram-se dois tipos de relações que se teciam entre os cidadãos e a administração. Assim, a primeira das ligações mencionadas refere-se ao vínculo entre o Estado e o cidadão comum: enquanto a segunda relação foi a gerada entre o Estado e determinados grupos que detinham um status especial”10.
Exatamente no segundo grupo de relações, estaria o que hoje se consolidou sob o nome de relações especiais de sujeição, ou seja, um grupo de pessoas (coletivo) que, pelo seu diferente tipo de relação com o Estado, tem uma regulamentação diferente da dos demais cidadãos. Nestes grupos, embora tenham surgido originalmente em relação ao Direito Administrativo, incluíam-se estudantes, funcionários públicos, militares e presos, entre outros11.
Esta teoria teve assim aplicação até 1972 no ordenamento jurídico alemão, a partir de quando foi modificada por uma importante decisão do Tribunal Constitucional Federal sobre a questão dos direitos fundamentais e das pessoas sob sujeição especial, como os presos. A nova abordagem jurídica, baseada no debate em torno do direito constitucional ao sigilo da correspondência, produziu uma reformulação da relação entre o Estado e as pessoas no âmbito dos direitos fundamentais.
A decisão em questão tratava da possibilidade ou não de leitura de correspondência de um preso, na qual este tecia considerações ofensivas ao diretor da instituição penitenciária. Em seguida, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha decidiu que o preso, apesar de sujeito a uma relação especial, ainda deveria ter garantidos os seus direitos fundamentais, especialmente o direito à livre expressão do seu pensamento.
Além disso, consideramos que a expressão sujeição é preferível ao poder, contrariando a doutrina mais antiga do instituto, porque entendemos que o poder do Estado é uno e permanece sempre o mesmo num caso ou noutro. Na verdade, segundo o professor NOVAIS12, o que muda é a sujeição ou não das pessoas, por algum motivo pessoal ou institucional, imposta por um regime jurídico diferenciado ou pelo regime jurídico geral.
Assim, a partir de 1972, o Tribunal Constitucional Federal alemão impôs uma releitura da teoria da sujeição especial com uma nova abordagem às relações de especial proximidade entre Estado e cidadão, na perspectiva dos direitos fundamentais. A partir de agora, o Estado (a Administração) perde o poder de estabelecer uma área fora dos limites legais, ou seja, um espaço que estava fora do controlo judicial (não direito).
Desde a decisão de 1972, temos uma nova concepção da relação entre Estado e cidadão, em que os direitos fundamentais das pessoas ganham especial valor, porque, embora eventualmente estejam sujeitos ao poder estatal, relações especiais de sujeição não estão mais isentas de conformidade às normas constitucionais e legais. Esta nova concepção assenta-se numa relação de proximidade que passa a ter “previsão constitucional e condições”13.
Com a decisão do Tribunal Federal da Alemanha, leis com limitações baseadas na necessidade e adequação são novos parâmetros para a interpretação da relação especial de sujeição. Além disso, para configurar uma relação especial de sujeição, seria necessário o pertencimento14 da pessoa a algum ente estatal numa relação de proximidade entre cidadão e Estado, na qual se estabeleça uma relação jurídica sempre diferente daquela determinada com outros em geral.
Por sua vez, essas relações de proximidade podem ser relações de: I) pertencimento, em que a pessoa assume uma posição que lhe permite atuar como agente estatal, como, por exemplo, servidores públicos e membros do Poder Judiciário; ou II) submissão, em que a legislação prevê a proximidade em consequência de alguma conduta da pessoa, como, por exemplo, pessoas privadas de liberdade e serviço militar obrigatório.
Com isso, a partir de 1972, conquanto para alguns se possa falar de uma morte da teoria da sujeição especial, é mais apropriado considerar que houve uma forte reformulação da teoria que mudou sua interpretação com a imposição de limites de aplicação, o que levou a professor RIVERA BEIRAS a afirmar, em conclusão, que, “pela primeira vez, os propósitos da punição não foram desenhados contra o condenado, mas sim tentando envolvê-lo num programa positivo para a sua própria biografia”15.
Assim, a relação especial de sujeição caracteriza-se por uma autorização ao Estado para interferir nos direitos fundamentais de alguém, respeitando sempre os limites constitucionais e legais. Da mesma forma, fora o grande respeito ao princípio da legalidade (obrigação de fazer ou não apenas o que a lei impõe)16 e da reserva legal (as limitações só podem ser impostas por norma com categoria de lei)17, a partir de 1972, a teoria da sujeição especial deve obedecer alguns outros limites.
Os demais limites, para RIVERA BEIRAS18, seriam os seguintes: I) deve haver sempre justificativa da teoria pela necessidade essencial de prestação de serviço público; II) que as limitações não sejam estabelecidas de forma geral, mas como resultado de um conflito individualizado; e III) que os núcleos centrais dos direitos fundamentais e humanos sejam respeitados pela limitação imposta pelo Estado em especial sujeição.
Portanto, no campo das relações públicas entre o Estado e os particulares, segundo o professor CANOTILHO19, a compreensão da teoria das relações especiais de sujeição mudou de uma concepção, em que a teoria seria um impedimento para toda e qualquer efetividade dos direitos fundamentais, para um entendimento em que a teoria não afasta a aplicação desses direitos, mas pode acrescentar novos limites com fundamentos às restrições ao seu exercício.
Assim, para a manutenção do instituto da teoria da sujeição especial criada antes da teoria constitucional moderna e dos importantes desenvolvimentos dos direitos fundamentais após a Segunda Guerra Mundial, segundo ADAMY20, é condição sine qua non para a sua manutenção nos sistemas jurídicos democráticos a sua ressignificação, que impõe não tanto uma relação com o Direito Administrativo Sancionador, em que nasceu, mas agora com o Direito Constitucional.
Com efeito, as Constituições modernas ainda mantêm relações jurídicas que se estabelecem especialmente entre o Estado e o povo, reduzindo a distância entre eles. Por exemplo, na Constituição da República Federativa do Brasil de 198821, há casos de especial proximidade entre o Estado e os cidadãos previstos constitucionalmente: I) limitação dos direitos políticos dos militares (art. 14, § 2o, do CF); II) limitação do direito de greve dos militares (art. 14, § 3o, da CF).
Da mesma forma, são também: III) limitação dos direitos trabalhistas dos magistrados (art. 95 da CF); IV) limitação do direito de circulação dos juízes (art. 93, VII, da CF); V) limitação dos direitos políticos do Poder Judiciário (art. 95 da CF); VI) limitação dos direitos trabalhistas dos membros do Ministério Público (art. 129, § 5o, da CF); VII) limitação do direito de transporte dos membros do Ministério Público (art. 129, § 2o, da CF); entre outros exemplos.
Portanto, corroborando o pensamento do jurista ADAMY22, parece-nos que é mais proveitoso não negar a existência da teoria da sujeição especial nos sistemas jurídicos modernos, como propõem alguns que falam da morte da teoria. Na verdade, se o instituto morreu, não faz sentido estudar a sua conformação aos direitos fundamentais e humanos para verificar os seus pontos em que deveria sofrer limitações.
Assim, para um maior respeito pelos direitos das pessoas (súditos, cidadãos...), é necessária uma reformulação da teoria, o que, claro, pressupõe a sua existência. No próximo capítulo, investigaremos a necessidade de aplicar aquela reformulação da teoria da sujeição especial num campo específico, a execução penal: como pode uma perspectiva ou outra da mesma teoria ter consequências diferentes para os direitos dos presos?
II – A TEORIA DA SUJEIÇÃO ESPECIAL NA EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL
As teorias das relações especiais de sujeição exerceram e exercem enorme influência no campo do direito, principalmente na área da execução penal de condenações de presos. A influência, claro, não se restringiu à Alemanha, país onde foi inicialmente desenvolvida, porque, na verdade, houve a sua aplicação a partir de uma exportação germânica para diversos países da Europa e, das diferentes metrópoles europeias, a transferência foi feita para suas colônias.
Neste ponto, é importante perceber a relação entre a teoria da relação de sujeição especial e a teoria da less eligibility. Conhecendo a origem da primeira, a segunda tem sua gênese na regulamentação das casas de trabalho, como antecedente histórico da prisão, a partir da qual se procurou mostrar à classe trabalhadora que a opção pelas casas correcionais seria menos vantajosa do que viver livremente, ou seja, o sofrimento dentro dos muros era maior do que na fábrica.
Segundo o professor PAVARINI23, a doutrina less eligibility estaria inerentemente relacionada à necessidade correcional da prisão através do sofrimento dos condenados.24 Nesse contexto, a primeira e a segunda teorias são, na verdade, meios e fins para o mesmo objetivo, ou seja: é a partir das relações especiais de sujeição que o Estado, como Administração penitenciária, ganha a liberdade normativa para regular a prisão de uma forma que produza aquela menor elegibilidade.25
A ideologia de superioridade do Estado, que gerou a inferioridade do preso, chegou ao Brasil, onde foi e é o arcabouço teórico para a possibilidade de produção de menor elegibilidade por meio da relativização e distanciamento dos direitos fundamentais e humanos das pessoas privadas de liberdade, porque “permitiriam a inobservância dos direitos fundamentais e flexibilizariam o princípio da legalidade, com permissão de trânsito em domínio inteiramente estranho ao direito, não valorado juridicamente”26.
Na verdade, não só na Europa, mas também na América Latina e, claro, no Brasil, as relações especiais de sujeição permitiram e permitem ao Estado, como administração penitenciária, privar os presos de direitos não limitados pela lei ou pela sentença penal condenatória, com o que ficou conhecido como privações colaterais do Estado no cumprimento da pena, o que ampliou a margem punitiva do Estado brasileiro, em violação ao princípio da legalidade.
No Brasil, ainda existe uma grande tendência, especialmente entre os teóricos mais tradicionais, de valorizar mais a teoria da sujeição especial a partir de sua perspectiva original no campo da execução penal. Na verdade, muitos juristas brasileiros definem a natureza da execução penal como mista, pois a execução penal seria “a atividade complexa, que se desenvolve conjuntamente no plano jurisdicional e administrativo. Não é desconhecido que dois Poderes estatais participem nesta atividade”2728.
Essa teoria da relação especial de sujeição teve como consequência afastar pelo menos parte dos conflitos vivenciados no interior da prisão da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. Consequentemente, isolando a prisão da possibilidade de controle jurisdicional, possibilitaram a criação de regulamentos internos no sistema penitenciário, verdadeiros “códigos de conduta externos à lei”29, que colocaram o preso em uma categoria inferior com violação de seus direitos, como cidadão de segunda classe.
Alguns dos maiores reflexos de tal teoria da relação especial de sujeição na execução penal do Brasil estão nos direitos dos presos, mais especificamente no direito à convivência familiar e comunitária. De acordo com a Lei de Execução Penal brasileira (LEP), a Lei 7.210/198430, conquanto seja produto do regime militar autoritário do Brasil, estabelece que ao condenado sejam assegurados todos os direitos não abrangidos pela pena (art. 3º da LEP).
Aquele direito à convivência familiar e comunitária está previsto no artigo terceiro da lei de execução penal com direito de visita do cônjuge, companheiro, parentes e amigos em determinados dias, sendo uma das expressões desse direito. Todavia, a jurisprudência superior do Brasil considera que o direito está sob as possibilidades e discricionariedades da administração penitenciária, necessitando verificar a conveniência da administração penitenciária.
Na verdade, o Superior Tribunal de Justiça do Brasil, que normatiza a interpretação da legislação federal brasileira, já decidiu que “a transferência do preso para a unidade penitenciária mais próxima de sua família não constitui seu direito subjetivo e ultrapassa o âmbito exclusivamente judicial. Assim, na análise do afastamento, o Juiz deve orientar-se pela conveniência do processo de execução penal, seja para garantir a aplicação da lei, seja pelo poder de cautela do próprio Magistrado”31.
Da mesma forma, o mesmo STJ já decidiu que “a transferência da pena privativa de liberdade aplicada pela Justiça de um Estado (art. 86 da LEP) para execução em outra Unidade da Federação não constitui direito absoluto do condenado, ainda se for baseado na proximidade familiar. Cabe ao Juiz da Execução analisar a viabilidade da transferência, baseando a decisão não apenas nas conveniências pessoais do condenado, mas também nas da Administração Pública”32.
Ademais, a questão da transferência dos presos para locais mais próximos do seu ambiente familiar e social como direito do preso à convivência familiar e comunitária, a partir da qual a ressocialização dos presos pode inclusive ser visibilizada, não é violada apenas pela falta de respeito pela Administração Penitenciário por esse direito e pela ausência da possibilidade do Poder Judiciário realizar o controle que determine o cumprimento, mas também pela utilização de transferências como medida sancionatória.
Não obstante não haja previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro para a transferência de locais onde as penas são cumpridas como medida sancionatória na área de execução penal, não é incomum na América Latina – e, claro, no Brasil – que a transferência de presos assuma a forma de sanção encoberta, na qual, sem respeito aos direitos fundamentais e humanos e sem respeito aos princípios da legalidade e da reserva legal, será imposta uma majoração da pena com mais sofrimento.
Uma verdadeira política de emergência e de excepcionalidade penal produziu o que o professor RIVERA BEIRAS chama de política de “dispersão carcerária”33, ou seja, a transferência constante de pesos para as prisões mais afastadas do seu ambiente sociofamiliar. Tal procedimento, por vezes realizado para induzir o preso à colaboração, representa múltiplas violações dos direitos não só dos presos, mas também das pessoas do seu ambiente familiar e social.
Com a política de dispersão carcerária, familiares e amigos perdem o direito de convivência com o preso, o que não deve ser restringido pela limitação da pena, que deve ser apenas a locomoção do preso, principalmente se não houver previsão legal. Assim, familiares e amigos também são transformados em figuras criminosas, pois lhes é aplicada pena até mesmo por ato de terceiro, o que mais uma vez caracteriza o verdadeiro direito penal do autor do crime sem qualquer ideal ressocializador.34
Aqui, é importante lembrar que a transferência ilegal de presos já foi objeto de julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), quando essa concluiu pela inconvencionalidade das medidas emergenciais e penais excepcionais aplicadas pela República Argentina com a política de dispersão carcerária no CASO LÓPEZ E OTRO VS. ARGENTINA (TRANSFERÊNCIAS) julgada por sentença de 25 de novembro de 201935, decisão a respeito de conduta muito comum no Brasil.
Com efeito, exatamente para garantir o princípio da legalidade estabelecido no Pacto de São José da Costa Rica e considerando o direito de não sofrer ingerências arbitrárias (art. 11.236 e o direito à família (art. 17.1)37, a CIDH determinou à República Argentina que “o Estado adotará todas as medidas legislativas, administrativas ou judiciais necessárias para regular as transferências de pessoas privadas de liberdade condenadas de acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos”38.
Portanto, o que se verifica a partir do estudo do estado atual da jurisprudência na execução penal no Brasil é que há uma aplicação muito forte da teoria das relações especiais de sujeição sem influência da mudança ocorrida nela a partir de 1972. Sem respeito pelos princípios da legalidade e da reserva legal, a jurisprudência brasileira dominante permite que a Administração Penitenciária limite os direitos fundamentais e humanos dos presos, criando verdadeiros espaços de não direito.
Por exemplo, criações jurisprudenciais que permitem à Administração Penitenciária transferir presos para prisões mais distantes do seu ambiente familiar e social, sob o argumento da conveniência e discricionariedade da Administração, que inclusive instrumentaliza isso como ferramenta de sanção encoberta (dispersão carcerária), constroem uma área sem controle judicial e sem lei, na qual os direitos fundamentais e humanos dos presos são violados sem cerimônia.
Por isso, o professor brasileiro Rodrigo Roig, criticando a jurisprudência brasileira, afirma que “não há mais lugar para legados de ideias de retributivismo, menor elegibilidade ou supremacia estatal especial. Tais legados devem dar lugar à posição concreta de que, salvo as restrições manifestamente inerentes à própria condição de confinamento, todos os demais direitos e garantias dos reclusos devem ser escrupulosamente preservados”39.
Os direitos fundamentais e humanos dos presos só podem ser regulamentados por lei e, nessa proteção, o Judiciário tem papel fundamental, apesar da resistência existente no Brasil. Da mesma forma, antes mesmo da decisão do Tribunal Federal da Alemanha em 1972, foi possível verificar que o sistema jurídico dos países ocidentais e democráticos continuava na direção da necessidade de respeito à legalidade no sistema penitenciário.
Um exemplo disso antes da decisão alemã de 1972 foi o caso Coffin v. Reichard, julgado em 1944 nos Estados Unidos da América pelo Tribunal de Apelações do Sexto Circuito dos Estados Unidos40, no qual foi assegurado que os prisioneiros tenham direitos substanciais, que devem ser garantidos pelo Poder Judiciário, bem como que somente a lei pode limitar os direitos individuais dos presos, o que vai na direção oposta à baixa valorização do princípio da legalidade penitenciária no Brasil.
Da mesma forma, no âmbito internacional, ainda podemos citar a necessidade de respeitar o princípio da legalidade na execução penal no caso Neira Alegría e Outros Vs. Peru41, no qual a CIDH decidiu que, não obstante exista uma relação específica entre o Estado e o preso, isso não justifica nenhuma flexibilização ou relativização das garantias concedidas a todas as pessoas. Pelo contrário, a relação específica produz garantias acentuadas, combinando garantias gerais com especiais (posição de garante).
Assim, o professor MELO assegura que “o fato é que existe uma tradição bem estabelecida [no Brasil] no sentido de conceder menor proteção jurídica aos condenados e existe a necessidade de atuação substancial do Poder Judiciário para garantir proteção especial às pessoas presas"42. Neste objetivo, é fundamental o respeito aos princípios da legalidade estrita e da reserva legal, com base nos quais as pessoas privadas de liberdade só podem ter os seus direitos limitados pela lei e pela decisão judicial.
CONCLUSÃO
Pessoas privadas de liberdade que só podem comer alguns alimentos e outros não, que, quando homens, estão sempre sem pelos, que não podem receber visitas de familiares e amigos, ou porque há proibição em ato administrativo penitenciário ou porque foram transferidas para locais muito longe do seu meio social que não tem condições de vê-los. Essa é uma imagem relativamente comum no sistema prisional brasileiro, mas como é possível a criação desses espaços sem controle judicial, de não direito.
A teoria da relação especial de sujeição ou sujeição especial, antiga doutrina do poder especial, bem como o que se entende como sua configuração atual, está na origem da manutenção desse sistema de violação dos direitos fundamentais e humanos das pessoas privadas de liberdade. Essa teoria surgiu na Alemanha já no século XIX e, a partir do pensamento jurídico germânico, influenciou toda a Europa, principalmente Espanha e Itália, bem como países que foram colônias de metrópoles europeias, como o Brasil.
Uma relação especial de sujeição, originalmente, é uma relação em que o Estado, a Administração, pode impor um regime jurídico diferente e, em geral, mais restritivo do que o regime a que estão sujeitos outros cidadãos, sem necessidade de forte observação do princípio de legalidade e da reserva legal. Para alguns, seria uma mitigação dos direitos fundamentais e humanos e, para outros, seria a falta de legalidade dos regulamentos da Administração que, assim, tudo poderia.
Tal concepção original da doutrina foi alterada no ordenamento jurídico alemão por decisão de seu Tribunal Federal em 1972, a partir da qual a teoria ganhou nova conformação com a imposição de limites constitucionais e legais proporcionais e fundamentados nas restrições que a Administração tente impor às pessoas sujeitas a uma relação de proximidade com ela. Portanto, com os limites, a relação de sujeição especial ganha conteúdo jurídico e, com efeito, controle judicial.
Contudo, investigando a execução penal no Brasil, verifica-se uma forte influência da teoria da sujeição especial em sua concepção mais antiga. Na verdade, talvez para permitir que a Administração Penitenciária produza um ambiente prisional adequado no que diz respeito à teoria da menor elegibilidade, o sistema jurídico brasileiro permite que a Administração crie regras que restrinjam os direitos dos presos sem previsão legal e com base em sua própria conveniência e discricionariedade.
Existem muitos exemplos de precedentes da jurisprudência majoritária brasileira que legitimam a imposição de espaços de não direito para presos como verdadeiros cidadãos de segunda classe. Um dos exemplos mais importantes disso e que mais causa danos é a possibilidade de a Administração Penitenciária realizar transferências de presos para fora de seu ambiente sociofamiliar, como instrumento de sanção encoberta, que consiste na dispersão carcerária já condenada pela CIDH.43
Portanto, se a teoria da relação especial de sujeição for mantida no Brasil, é necessária e fundamental a sua adaptação às mudanças que a teoria já passou, no Civil Law, com o julgamento pelo Tribunal Federal da Alemanha em 1972 e, no Common Law, com, por exemplo, o precedente Coffin V. Reichard de 1944 nos Estados Unidos. Portanto, só assim seria possível compatibilizar a teoria que explica a maior proximidade com o Estado com os modernos direitos fundamentais e humanos.
Consequentemente, interpretada a partir da hermenêutica constitucional moderna e não mais como um mero instituto administrativo, a teoria da relação especial de sujeição não permite que a Administração penitenciária crie espaços sem lei, nos quais possa impor restrições aos direitos dos internos sem previsão legal, mas sim impõe proteção especial aos presos devido à posição especial de garante do Estado. Isso porque, como já assegurou a Suprema Corte estadunidense: “não há nenhuma cortina de ferro entre o preso e a Constituição”.44
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