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Vítima, Direito Penal e cidadania

01/05/1999 às 00:00
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Um ponto que chama a atenção no sistema criminal brasileiro, de forma negativa, é o desamparo que as vítimas recebem da máquina estatal e da sociedade civil quando da ocorrência de fatos delituosos. Uma vítima criminal é um indivíduo, família ou amigo que sofre ou foi agredida de alguma forma por uma infração criminal praticada por um agente.

Ao contrário do racional, que seria o fim do sofrimento ou amenização da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em consequência da reação formal e informal derivada do fato. Não são poucos os autores que afirmam que essa reação traz mais danos efetivos à vítima do que o prejuízo derivado do crime praticado anteriormente.

Raúl Cervini, in "Os Processos de Descriminalização", Editora RT, São Paulo, 1995, p. 232, chama esse fenômeno de "sobrevitimização do processo penal" ou "vitimização secundária", quer dizer o dano adicional que causa a própria mecânica da justiça penal formal em seu funcionamento.

Se de um lado a vítima não recebe atenção nenhuma do sistema penal ora vigente, com a única exceção do Juizado Especial Criminal, por outro, a própria sociedade não se preocupa em ampará-la, chegando muitas vezes a incentivá-la a manter-se no anonimato, contribuindo dessa forma para o aparecimento da malsinada "cifra negra", o grupo formado pela quantidade considerável de crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal.

Luiz Flávio Gomes, in "Criminologia – Introdução a seus Fundamentos Teóricos", 2ª Edição, São Paulo, RT, 1997, p. 468, dá a lição cristalina: "No modelo clássico de Justiça Criminal a vítima foi neutralizada; seu marco de expectativas é muito pobre; a reparação dos danos não é prioridade, senão a imposição do "castigo"".

Agravando essa situação, o nosso sistema penal não traz ainda nenhuma forma de amenizar o seu transtorno durante qualquer fase do processo punitivo. A situação desumana das vítimas é uma verdadeira "via crucis" criminal que a aflige.

Ela sofre com o crime, é destratada com o atendimento, muitas vezes em péssimas condições realizado nas Delegacias de Polícia. Submete-se ao constrangedor comparecimento ao Poder Judiciário na fase processual, na quase totalidade das vezes, desacompanhada de um advogado ou de qualquer pessoa. Encontra, ainda, pelos corredores do fórum, o acusado, temerosa de uma futura represália que possa lhe acontecer, caso preste corretamente o seu depoimento.

Somamos a essa situação a aflição e as dúvidas por não ter conhecimento do andamento do processo criminal em que está envolvida, se existe uma possibilidade efetiva ou não de ter seu dano reparado algum dia.

Iniciativa de grande importância foi o "Ato Vítimas de Crime" (VOCA), de 1984 que instituiu um Fundo para as vítimas de crimes, no Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, além da criação, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América, da agência OVC (Office for Victms of Crime) para supervisionar diversos programas que beneficiam as vítimas de crimes.

A OVC fornece fundos para a assistência da vitima , programas de compensação e também dá suporte no treinamentos para educação na justiça criminal à outros profissionais. Todo ano, milhões de dólares são depositados no Fundo de Assistência das Vítimas (VOCA), oriundos de diversas rendas ligadas, inclusive, aos diversos programas da justiça criminal

Ainda existem programas de compensação às vítimas dos crimes administrados por todos os Estados da Federação norte americana. Esses programas proporcionam assistência financeira às vítimas de crimes de ordem federal e estadual. O típico programa de compensação estadual requer que as vítimas se reportem dos crimes em 3 dias e reivindiquem indenização dentro de um período fixo de tempo, normalmente dois anos. A maior parte dos estados da Federação pode estender esses limites para casos necessários.

A assistência às vítimas inclui, mas não de forma limitada, os seguintes serviços: intervenção nas situações de crises, consultas, abrigos de emergência, advocacia na justiça criminal, transporte de emergência. Por toda a nação existem aproximadamente 10.000 organizações que proporcionam auxílios desses e de outros tipos para as vítimas de crimes. Cerca de 2.800 dessas instituições recebem alguma contribuição dos fundos VOCA.

Esse tipo de iniciativa demonstra , claramente, que os Estados Unidos se conscientizaram que a vítima, como cidadã, deve ser, da mesma forma, assistida pelo Estado que possui o seu aparato para a defesa do Direito (Ministério Público, Polícia etc ) quando da ocorrência de um crime.

Iniciativas de menor tamanho, mas em número razoável, existem ainda em outros países, demonstrando uma crescente conscientização global a favor da vítima dos crimes. Vale lembrar que a proteção da vítima encontra raízes no Código de Hammurabi (2000-1750 AC).

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Infelizmente, no Brasil, não existe uma cultura própria de estudo da justiça criminal e tampouco da vítima criminal. O problema é deixado sempre para o Estado. Não existe uma discussão séria pela sociedade civil. As medidas criminais, muitas vezes, vão de encontro aos reais interesses da sociedade. Medidas de necessidade social não são sequer estudadas. Existe um certo sentimento de fuga da população quanto a isso. Não se discuti o problema. Supõe-se que o mesmo não exista.

Dentro desses acontecimentos fica uma advertência de extrema importância: em termos de Direito Brasileiro, temos de equacionar nossos problemas respeitando sempre a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Brasileira, na forma do artigo 1º, III, da Constituição Federal.

Podemos comprovar a situação de desprestígio da vítima, como cidadã, numa interpretação sistemática da Constituição Federal, pois se sobre o acusado temos várias referências à direitos e garantias fundamentais ( art. 5º, CF ), por outro lado, não encontramos proteções à vítima nesse terreno.

Muito, uma referência à uma hipotética lei no Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, art. 245, que disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.

A norma programática acima ( de aplicação futura duvidosa ) traz séria injustiça por não proteger as vítimas de crimes culposos, deixando-as desamparadas pelo Poder Público. A fim de se coibir tal injustiça material deve ser incluída a proteção das vítimas de crimes culposos nas mesmas condições acima referidas.

Não existe cidadania se não é proporcionada à vítima o mesmo "tratamento assistencial" que o Estado recebe quando da prática de um crime, pois a vítima, como cidadã, é o elemento estrutural do Estado Democrático de Direito.

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Sobre o autor
Lélio Braga Calhau

promotor de Justiça em Minas Gerais, pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), conselheiro do Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais (ICP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALHAU, Lélio Braga. Vítima, Direito Penal e cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1124. Acesso em: 16 abr. 2024.

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