"A morte me puxa a orelha.
“Vive”, diz ela, “estou chegando”.
Virgílio
“Evitai de vos observar ao microscópio.
Bons olhos, sem vidros, voltados para o que vos cerca é quanto basta."
Joaquim Nabuco
“O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.”
Fernando Pessoa
Sumário: 1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Constitucional Direito de Moradia. 2. Princípio da Solidariedade Familiar. 3. Direito Real de Habitação. Natureza Jurídica e conformação legal. 4. Entendimento Jurisprudencial. 5. Conclusões. 6. Bibliografia.
1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Constitucional Direito de Moradia.
O princípio da dignidade da pessoa humana é o mais importante princípio jurídico1 que deve ser observado e respeitado no ordenamento jurídico brasileiro; ele está encabeçado no pórtico da Constituição Federal, cuja observância é compulsória e não está a merecer temperamentos. Que fique claro: o ser humano jamais poderá ser objeto de uma relação jurídica, apenas sujeito; nunca poderá ser “coisificado” e ter sua natureza jurídica desprezada ou aviltada, negociada ou negligenciada.
Dentro dos denominados direitos sociais, encontra-se importante direito de moradia, inserido no ordenamento constitucional por intermédio da Emenda Constitucional 26/2000. Nesse viés, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o direito à moradia não se insere dentro dos direitos absolutos, merecendo temperamentos para se autorizar a penhora quando decorrente da prestação de fiança locatícia. Com efeito, o Plenário do STF no julgamento do RE 407688, Relator: Ministro Cezar Peluso, DJ de 6/10/2006, afirmou ser legítima a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no artigo 3º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no artigo 6º da Constituição Federal, com a redação da EC 26/2000. No mesmo sentido: RE 612360, com repercussão geral, Voto da Ministra Ellen Gracie, Julgamento: 13/8/2010, Plenário, DJE de 3/9/2010, Tema 295, com mérito em julgado e também o RE 605709, redatora do acórdão: Ministra Rosa Weber, Julgamento: 12/6/2018, 1ª Turma, DJE de 18/2/2019.
A realização de penhora de bem imóvel de titularidade do fiador e que decorre do cumprimento de obrigação de contrato de fiança ou de caução é legítima e não causa violação ao princípio da dignidade da pessoa humana ou na solidariedade familiar, na forma do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a temática2, como acima afirmado. Do mesmo entendimento desfruta o Superior Tribunal de Justiça.3
O princípio da dignidade humana não resta atingido com a penhorabilidade do bem imóvel do fiador pois o ato de se firmar contrato de fiança --- colocando potencialmente o próprio patrimônio à disposição do adimplemento de obrigações de terceiro --- decorre do legítimo exercício da autonomia privada da vontade, estando amparado no ordenamento jurídico.
Importante relembrar os ensinamentos de Maria Berenice Dias, para quem o “direito real de habitação assegurado ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente, apesar de dispor da mesma natureza protetiva, não se confunde com a noção de mínimo vital nem pode ser reconhecido como bem de família”. Por consequência, está o direito real de habitação fora da cláusula de impenhorabilidade de bens de família.4
2. Princípio da Solidariedade Familiar.
A Constituição Federal preceitua que a solidariedade é um dos objetivos da República Federativa do Brasil que, juntamente com a liberdade e a justiça, são pontos para a construção da sociedade brasileira5. Maria Celina Bodin de Moraes, quanto ao tema, ensina: “A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador constituinte, longe de representar um vago programa político ou algum tipo de retoricismo, estabelece um princípio jurídico inovador em nosso ordenamento, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução das políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação-aplicação do Direito por seus operadores e demais destinatários, isto é, pelos membros todos da sociedade”.6
O Código Civil brasileiro dispõe em seu artigo 265: “A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.” Desta forma, a solidariedade deve estar presente --- de maneira inquestionável --- na Lei ou na manifestação de vontade legitimamente externada, não tendo espaço para presunções ou analogias. Igualmente não pode ser perdido de vistas a inteligência do Enunciado 347 da 4ª Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal: "A solidariedade admite outras disposições de conteúdo particular além do rol previsto no artigo 266 do Código Civil".
No âmbito do Direito Familiar, a Constituição Federal é claríssima, ao dispor o princípio da solidariedade --- ao menos implicitamente --- em dispositivos constitucionais da mais alta importância social (artigos 227, 229 e 230). Veja-se:
“Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
“Art. 229: Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
“Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
Consoante ensinamentos de Paulo Lôbo, a “solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico, significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que impõe a cada pessoa deveres de cooperação, assistência, amparo, ajuda e cuidado em relação às outras. A solidariedade cresce de importância na medida em que permite a tomada de consciência da interdependência social”.7
A propósito da questão, a civilista Maria Berenice Dias ressalta: “A solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste. O princípio da solidariedade tem assento constitucional, tanto que seu preâmbulo assegura uma sociedade fraterna. Também ao ser imposto aos pais o dever de assistência aos filhos (CF 229), consagra o princípio da solidariedade. O dever de amparo às pessoas idosas (CF 230) dispõe do mesmo conteúdo solidário. [...] Uma das técnicas originárias de proteção social que até hoje se mantém é a família. Aproveita-se a lei da solidariedade no âmbito das relações familiares. Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão”8.
Como pontuado pela ilustre Ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.184.492/SE, julgado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 1º/4/2014, a causa do direito real de habitação é tão somente “a solidariedade interna do grupo familiar que prevê recíprocas relações de ajuda”, o que apenas confirma que o princípio da solidariedade9 familiar é importantíssimo para uma sociedade que se intitula fraterna, nela encontrando reflexo no direito real à habitação. Giselda Gondim Ramos traz as seguintes considerações sobre a etimologia, caracteres e benefícios de sua observância: “Etimologicamente, solidariedade é uma desfiguração da palavra solidum que, entre os jurisconsultos romanos servia para designar a obrigação que pesava sobre os devedores quando cada um deles era considerado como o todo (in solidum). Em determinado ponto, todavia, o vocábulo parece ter evoluído para a ideia de solidité (solidez), e é com este sentido, de fato, que a empregam os jurisconsultos franceses do antigo regime (ancien régime). Significa, nesta perspectiva, inseparabilidade do todo, do conjunto, gerando a partir daí a ideia de coesão e estabilidade. Por derivação metafórica, passa a ser compreendida como estabilidade, firmeza de ânimo, segurança. A noção etimológica demonstra de maneira muito apropriada que a ideia de solidariedade, antes de se impor como um dever começa pela constatação de que representa um estado de fato, o que possibilitaria, no máximo, afirmá-la como o fundamento de um dever”10, como igualmente ensina que: “falar em dever de solidariedade, não corresponde a afirmar que a solidariedade seja um dever em si mesma, mas apenas que ela é dotada de um valor prático ao qual correspondem determinados deveres e obrigações. Pertinente, pois, com a noção de solidez, que significa qualidade ou condição daquilo que é sólido, ou seja, que se torna firme e resistente pela ação de cada uma das partes que sustentam o corpo, de tal sorte que a ação imprimida a qualquer uma destas partes encontra repercussão no todo”11. Remata a ilustre advogada: “De fato, descobrir que a união faz a força, que é mais vantajoso reunir-se em grupos para defender interesses comuns e lutar por direitos específicos, reconhecer que o individualismo enfraquece, e que a associação fortalece, são circunstâncias que criam e desenvolvem vínculos efetivos de solidariedade. Mas isto representa apenas uma pequena partícula do vasto universo em que se desenvolve o conceito, e não chega nem perto da noção de solidariedade enquanto princípio jurídico, pelo menos nos termos em que é concebida atualmente, onde já não mais se admite seja reduzida aos estreitos limites de conceitos como esforço simultâneo, trabalho cooperado, ação conjunta, coesão em prol de objetivos comuns, ou potencialização de desejos individuais”.12
3. Direito Real de Habitação. Natureza Jurídica e Conformação Legal.
No direito romano, a habitatio era considerado como o direito de utilizar uma casa alheia para fins de moradia, motivo pelo qual era concebida como uma subespécie de usus que, no direito clássico, era estritamente pessoal e intransmissível, porém se torna transferível a terceiros no direito justinianeu, sendo as relações entre o habitante e o seu inquilino reguladas pelas regras da locatio conductio. O reconhecimento da habitação como direito real autônomo e distinto do uso e do usufruto ocorreu somente na época justinianeia.
Tratava-se do direito de morar em casa alheia ou de a alugar, sendo-lhe aplicáveis as regras concernentes ao usufruto, com exceção daquelas referentes à extinção por capitis diminutio ou pelo não uso, conforme disposto no Digesto.
Também era necessário o oferecimento de caução, quando da sua constituição, a fim de garantir a devolução do bem em bom estado.
A habitação é considerada um direito de uso ainda mais limitado, caracterizando-se por ser um direito real temporário sobre coisa alheia, pelo qual o habitador apenas poderá ocupar, com sua família e de forma gratuita, uma casa pertencente a outrem, sem direito à fruição.
Daí afirmar-se que esse direito real se restringe à moradia, motivo que (diferentemente do que ocorria no Direito Romano) deslegitima o titular a alugar ou emprestar o bem, mas lhe confere o direito somente de ocupar o imóvel com a sua família. Qualquer outra interpretação redundará em violação e em fraude à lei, o que é inadmissível.13
O civilista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda conceitua o direito real de habitação como sendo a “servidão pessoal limitada, que recai sobre todo ou parte do imóvel. O proprietário pode, ao constituí-lo, reservar-se o direito de também habitar no prédio, ou em parte dele. Só há gravame de todo o prédio, no primeiro caso; no segundo, só parte real é gravada. O proprietário tem a faculdade de reservar a outra pessoa, ou a futuro proprietário, o direito de também habitar, ou estabelecer que, à sua morte, ou a outro acontecimento, o direito de habitação passe a ser só de parte. O direito real de habitação (arts. 746-748) é outra coisa que o direito obrigacional de habitação. A eficácia daquela relação jurídica é real; a dessa, somente obrigacional”.14
Dentre os direitos reais de fruição, o direito real de habilitação apresenta-se como o de “menor amplitude quantitativa concerne ao direito real de habitação. É uma espécie do gênero direito de uso. Como se extrai da própria nomenclatura, cuida-se de direito real de uso limitado à habitação, pois, além de incessível, não admite qualquer forma de fruição. Constitui-se intervivos com o registro no ofício imobiliário (art. 167, I, n. 7, Lei 6.015/73), causa mortis (pelo testamento), por usucapião ou pela via legal. Circunscreve-se este direito real à faculdade de seu titular residir gratuita e temporariamente em um prédio, com sua família (art. 1.414. do CC). O imóvel só se destina à ocupação direta do beneficiário, posto insuscetível de locação ou, ao menos, comodato, sob pena de resolução contratual. Vale dizer, o proprietário reserva consigo todos os poderes dominiais, exceto a possibilidade do exercício de moradia, pois a habitação foi destacada em favor do beneficiário. Daí a impossibilidade de se permitir o registro de bem gravado com habitação com inserção de cláusula reservando a moradia ao proprietário. Seria negar a própria essência deste modelo jurídico”.15
Hodiernamente o direito real de habitação tem previsão expressa nos artigos 1414 a 1416 do Código Civil, que preceituam:
“TÍTULO VIII
Da Habitação
Art. 1.414. Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família.
Art. 1.415. Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa, qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes compete, de habitá-la.
Art. 1.416. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto.”
O direito real de habitação é o direito no qual o cônjuge sobrevivente/supérstite possui de continuar a morar na residência do casal após o falecimento de seu companheiro conjugal. Não há espaço para se falar em exigência de pagamento de aluguel ou qualquer outro valor do cônjuge supérstite pela utilização imobiliária, além das próprias despesas que envolvam o uso do imóvel, como pagamento de IPTU/TLP, contribuições condominiais e demais obrigações e deveres que digam respeito ao próprio imóvel. Pontes de Miranda ressalta: “O habitador tem os deveres que teria se usuário ou usufrutuário fosse; mas havemos de distinguir o que é pertinente à habitação sem o ser aos demais usos, o que só diz respeito aos frutos e o que, recaindo sobre o necessário à fruição ou sobre essa, não se refere a frutos-uso, que toquem ao habitador. Os frutos usos que tocam ao habitador usos-habitação são inclusos no exercício do direito de habitação. Tem o habitador o dever de guarda e de conservação daquilo em que habita. Na distribuição das despesas, incide o art. 734. do Código Civil”.16 O inadimplemento de tais obrigações --- em especial os tributos incidentes sobre o imóvel --- pode levar à perda do direito real de habitação.
O tema --- direito real de habitação --- também se encontra abordado nos enunciados 117 e 271 editado pelas I e III Jornadas de Direito Civil realizadas pelo Conselho da Justiça Federal, com a seguinte redação: “O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88” e que “O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança”. Tal interpretação confere máxima efetividade ao princípio da igualdade conjugal, seja homo, seja heterossexual.
Não pode ser esquecido que a origem do instituto nos moldes em que conhecemos no ordenamento jurídico decorre do denominado Estatuto da Mulher Casada --- Lei 4121/1962 --- que inseriu no artigo 1.611 do Código Civil de 1916, o direito real de habitação para o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de comunhão universal, com a condição de que o imóvel habitado fosse o único bem daquela natureza a se inventariar e o outro, criando o chamado usufruto vidual, isto é, o usufruto que duraria até a ocorrência da morte do beneficiário.
Conquanto a alteração legislativa procedida incluísse indistintamente o cônjuge supérstite, independentemente do seu gênero (homem ou mulher), teve como finalidade social a melhoria da situação de fragilidade econômica e social da mulher à época, garantindo-lhe, em caso de óbito de seu cônjuge, a perenização do condomínio que seria instituído com os demais herdeiros, não precisando mais contar com o beneplácito dos demais interessados --- em especial os herdeiros --- para continuar habitando no imóvel adquirido na constância do casamento.
Rolf Madaleno entende ser “compreensível a extinção do usufruto vidual do cônjuge sobrevivente, haja vista a vigente codificação havê-lo substituído pela concorrência hereditária do cônjuge supérstite (CC, arts. 1.829, inc. I, e 1.832). Sempre houve preocupação com o usufruto vidual da união estável e até mesmo em relação ao casamento, especialmente em novas núpcias, diante do inaceitável locupletamento sem causa que o companheiro ou cônjuge sobrevivente poderia ser favorecido ao usufruir de um quarto até a metade dos bens deixados pelo autor da herança, com quem conviveu em período diverso ao do amealhamento dos bens. Ora, o intento do usufruto vidual era o de assistir a esposa e também a companheira desamparada, assegurando-lhes o desfrute dos bens que ajudaram a constituir durante anos, mesmo apenas com a sua presença no recesso da habitação comum. Contudo, estes preceitos instituidores do usufruto ex lege não podem privilegiar aqueles cônjuges ou companheiros sobreviventes que não contribuíram na formação do patrimônio sobre o qual recai o usufruto. O usufruto não pode incidir sobre os bens aprestos, porque sobre eles não há qualquer comunhão de esforços com o companheiro sobrevivente, mesmo sob a forma de aquisição presumida, sob pena de incidir o enriquecimento sem causa”.17 Especificamente à fixação ope legis do direito real de habitação, Sérgio Iglesias Nunes de Souza, consigna quanto ao princípio da consensualidade: “O referido princípio se diz aplicável apenas no sentido de que a concessão de um direito real a outro poderá dar-se por meio de efeitos por contrato, ou seja, não só por lei, mas também por convenção. É o caso, no primeiro, dos arts. 1.414. e 1.416 do CC brasileiro e do 1.831 do referido Codex, pois o direito real de habitação ali discriminado decorre de lei, e não por convenção das partes. Assim, o cônjuge sobrevivente, desde que casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e estiver na condição de viúvo(a), terá garantido o direito real de habitação em relação ao imóvel que está destinado à residência da família”18. Mas também existe a possibilidade de instituição do direito real de habitação por manifestação de vontade, como ocorre no testamento, contrato e decorrente de transação judicial.
O direito real de habitação é feito mediante negócio jurídico bilateral (contrato), o qual se sujeita às regras formais incidentes nos atos e negócios jurídicos de constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre bens imóveis de valor superior a 30 (trinta) salários-mínimos. Daí que a escritura pública seja requisito intransponível de validade do contrato de habitação convencional. O direito real, por sua vez, constitui-se pelo registro imobiliário stricto sensu. O direito real de habitação --- convencional --- pode ser formalizado nos processos judiciais, sempre que houver manifestação volitiva consensual das partes legítimas e interessadas, devidamente apreciada e homologada pelo juízo competente, fazendo expressa referência à instituição convencional de direito real de habitação.
Assim, a sentença judicial transitada em julgado que acolher o pedido das partes assume o condão do instrumento público exigido no artigo 108 do Código Civil de 2002.
Opera-se o direito real de habitação também ocorre por testamento, cuja natureza é de negócio jurídico unilateral de vontade. Tal como ocorre com o usufruto, o direito real de habitação será adquirido com a abertura da sucessão, por força do princípio da saisine.
Em tal caso, o registro público, apesar de obrigatório, terá natureza declaratória. O título hábil a ser apresentado no Registro de Imóveis é o formal de partilha judicial, no qual conste o trânsito em julgado da sentença proferida.
Como visto, o direito real de habitação pode ser concedido por intermédio de ato de última vontade, isto é, por testamento19, conforme ensinamentos de Carlos Maximiliano.20 Ademais, havendo previsão no testamento de que o beneficiário será agraciado com usufruto ou uso, tais expressões podem ser perfeitamente interpretadas como habitação. Recorre-se às ensinanças de Carlos Maximiliano sobre o ponto: “Almeida e Sousa, de Lobão — Casas, § 338, pondera: "Judiciosamente dizem os sábios Heinecio e Thomasio que o comum das pessoas ignora hoje estas sutilezas; nem será fácil achar um testador que saiba distinguir o usufruto, o uso e a habitação, e os seus diversos efeitos e que só pode ser praticável este Direito Romano, tratando-se do testamento de um sábio. O Cardeal de Luca não se farta de advertir que os testadores e escritores dos testamentos quase sempre são idiotas, que ignoram a acepção jurídica das palavras; e, por isso, assenta que, quando se trata da disposição feita ou ditada por um jurisperito, se devem as palavras entender na própria acepção jurídica, quando o testador ou escritor são idiotas se devem entender conforme o uso comum e verossímil vontade. Assim declamou também o nosso Melo”.21
Nesse sentido, “a única condição que o legislador impôs para garantia do cônjuge sobrevivente ao direito real de habitação é que o imóvel destinado à residência do casal fosse o único daquela natureza a inventariar”22. O direito de habitação é uma espécie de garantia reconhecida à pessoa viúva de continuar morando gratuitamente no imóvel que servia de lar para o casal durante a união ou relacionamento, desde que seja o único bem de natureza residencial a ser deixado como herança de propriedade.
No caso, há impeditivo aos demais herdeiros quanto ao direito à indenização pela ocupação do bem, consistente no direito real do cônjuge supérstite à habitação do imóvel utilizado para a sua residência, como reconhecido pelo artigo 1.831 do Código Civil, que dispõe: “Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.
Comentando o artigo 1.831 do Código Civil, Mauro Antonini ao fazer referência à lição de José Luiz Gavião de Almeida, dispara a seguinte lição: “[...] a parte final do artigo não pode ser aplicada literalmente. Estabelece que haverá o direito real de habitação no imóvel residencial se for o único dessa natureza a inventariar. A limitação ao único imóvel a inventariar é resquício do Código anterior, pois o direito real de habitação era conferido exclusivamente ao casado pela comunhão universal. Casado por esse regime, o viúvo tem meação sobre todos os bens. Havendo mais de um imóvel, é praticamente certo que ficará com um deles, em pagamento de sua meação, o que lhe assegura moradia. Nessa hipótese, não tem necessidade do direito real de habitação. No atual Código, porém, estendido esse direito a todos os regimes, não há sentido, por exemplo, em negar o direito real de habitação ao casado pela separação de bens, se houver mais de um imóvel residencial a inventariar. Com mais razão deve lhe ser assegurada tal proteção se houver mais de um imóvel.”23
Situação bem diferente ocorre no caso de condomínio, isto é, o instituidor do direito de habitação ter apenas parte da titularidade do imóvel, hipótese na qual os demais proprietários devem ser devidamente remunerados pela ocupação imobiliária, pois o direito de um (cônjuge supérstite) não pode sobrepor ao direito dos demais titulares. Entendimento diverso seria implicar a ocorrência de enriquecimento sem causa, por subtrair dos demais titulares o direito a obter frutos civis do imóvel habitado.
Nesse contexto, deve ser lembrado o voto do Ministro Luís Felipe Salomão, ao analisar questão similar no REsp 1.212.121/RJ, julgado em 3/12/2013, valendo-se sua excelência das sábias lições de Carlos Maximiliano para destacar a importância de afastar interpretações não razoáveis: “4.2. No ponto, embora lacônica a Lei n. 9.278/1996 - circunstância a exigir a integração hermenêutica do juiz - o fato é que o dispositivo contido na Lei n. 9.278/1996 (art. 7º, parágrafo único), ao utilizar os termos "relativamente ao imóvel destinado à residência da família", não teve o condão de conceder à companheira direito real de habitação em bens de terceiros. De fato, parece razoável interpretar a norma tomando como base o instituto do direito real de habitação existente à época, de acordo com a redação do Código Civil de 1916. Carlos Maximiliano leciona: “Prefere-se o sentido conducente ao resultado mais razoável 2, que melhor corresponda à necessidades da prática 3, e seja mais humano, benigno, suave 4. É antes de crer que o legislador haja querido exprimir o consequente e adequado à espécie do que o evidentemente injusto, descabido, inaplicável, sem efeito. Portanto, dentro da letra expressa, procure-se a interpretação que conduza a melhor consequência para a coletividade 5. Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconscientes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que tome aquela sem efeito, inócua, ou este juridicamente nulo”. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 135-136.) Por isso que o art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/1996, deve ser interpretado em conjunto com o conteúdo do direito real de habitação existente quando de sua criação, leia-se, o previsto no art. 1.611. e parágrafos do Código Civil de 1916. Assim, não é crível presumir que o silêncio da lei poderia levar o reconhecimento de direito real de habitação sob imóvel do locador, por exemplo, um terceiro absolutamente estranho à relação jurídica subjacente. Desse modo, o direito real à habitação limita os direitos de propriedade, porém, quem deve suportar tal limitação são os herdeiros do de cujus, e não quem já era proprietário o imóvel antes do óbito, como é o caso dos recorridos, que haviam permitido a utilização do imóvel pelo casal a título de comodato . O companheiro falecido da recorrente era proprietário tão somente de 1/13 do apartamento, assim, não pode a companheira sobrevivente limitar o direito de propriedade dos demais irmãos”.
Na hipótese em comento, o direito de propriedade condominial deve ser respeitada, de forma que se mostram acertadas as decisões do Superior Tribunal de Justiça que vão em tal sentido, uma vez que "a copropriedade anterior à abertura da sucessão impede o reconhecimento do direito real de habitação, visto que de titularidade comum a terceiros estranhos à relação sucessória que ampararia o pretendido direito"24 e que “o coproprietário que ocupa o imóvel, de forma integral e exclusiva, deve pagar aluguel aos demais condôminos, na proporção de sua quota. Assim, se apenas um dos condôminos reside no imóvel, abre-se a via da indenização, mediante o pagamento dos alugueres, àquele que se encontra privado da fruição da coisa”25. Entendimento contrário seria possibilitar que os demais titulares da propriedade venham a ser excluídos da fruição ou uso do bem de maneira a proporcionar enriquecimento sem causa pelo ocupante que alija os demais do bem, como já asseverado.
Sobre a temática, não há de se confundir titularidade condominial do bem imóvel objeto do direito real de habitação com a possibilidade de concessão simultânea a mais de dois titulares. Sobre o ponto, recorra-se aos ensinamentos doutrinários de Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald, para quem: “Nada impede que o direito real seja concedido simultaneamente a dois ou mais titulares, em partes determinadas ou frações ideais - habitação simultânea -, com o atributo da divisibilidade. Diferentemente do que ocorre na compropriedade e, objetivando o reforço dos vínculos de solidariedade entre os cotitulares do direito, nenhum dos favorecidos pode cobrar aluguel daquele que individualmente ocupe o imóvel (art. 1.415. do CC), mas os excluídos detêm a prerrogativa de lançar mão das medidas processuais pertinentes (petitórias e possessórias) para se valer da habitação do bem. Todavia, explica Ricardo Aronne que, quanto à habitação, "desdobrando-se o domínio, o anterior detentor não mais a possui e não pode se manter em condomínio com titular do direito real sobre coisa alheia, por não poder conviver sob o abrigo da mesma titularidade, eis que sua condição de proprietário consigna a titularidade dos direitos reais que enfeixa como sendo na coisa própria e não alheia".”26
Repita-se: a função social do direito real de habitação é possibilitar a habitação do usuário sobrevivente e de sua família no imóvel. Trata-se, pois, de um direito protetivo. O artigo 1831 do Código Civil e o artigo 7º da Lei 9272/1996 também disciplinam a questão em tal sentido e autorizam tal conclusão.
A Lei de Registros Públicos --- Lei 6.015/1075 --- expressamente dispõe no número 7 do artigo 167 que no Registro de Imóveis, além da matrícula, será feito registro do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família; no inciso III, do artigo 220 há previsão de que para fins de escrituração são considerados, credores e devedores, na habitação, o habitante e proprietário.
É vedado ao habitante a cessão do exercício de seu direito, bem como a utilização do imóvel para atividades empresariais, uma vez que a finalidade do direito de habitação é a concessão de moradia ao beneficiário, materializada pela intenção do titular do domínio esculpida em um direito oponível a todos, ou seja, o direito real de habitação.
O artigo 1.416 do Código Civil --- e isso certamente em razão das várias similitudes existentes entre os institutos --- expressamente dispõe que são aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto. Segundo Carlos Maximiliano: “Em regra, os preceitos relativos a usufruto aplicam-se ao uso e habitação; porém, no caso em apreço, tal generalização jamais se justifica: na primeira hipótese, o legado estende-se a todos os frutos, naturais; e civis; nas duas outras, restringe-se às necessidades do beneficiado e da sua família; portanto não passa além deste limite, acorde com a previsão do testador. Com a morte ou renúncia de um dos instituídos, a cota assim vaga incorpora-se à propriedade. Demais, o legislador especificou o usufruto ao enumerar os casos de direito de acrescer, e silenciou a respeito de uso e habitação; é de aplicar a parêmia — ubi lex voluit, dixit; ubi noluit, tacuit" — onde a lei quis, foi explícita; onde não quis, emudeceu”. 27
No direito comparado, sobre o direito ao usufruto, Cunha Gonçalves traz as seguintes considerações quanto aos direitos do usuário: “O usuário tem os direitos seguintes: a) pedir a entrega de cousa alheia ou da casa que é objecto do direito; b) apropriar-se dos frutos do prédio usado, mas somente os necessários para os gastos do usuário e da sua família, quer esta se torne mais numerosa, quer menos, considerando família todas as pessoas, inclusive os criados que vivem com o usuário, sob o mesmo tecto e a mesma economia, sem prejuízo do direito de receber hóspedes (v. Cód. Civil brasileiro, art. 744); c) fazer benfeitorias úteis e voluntárias no prédio ou casa de habitação. A circunstância, porém, de o art. 2.257. do Cód. Civil português se referir à família não significa que o direito de uso ou habitação também a esta pertence. Esse direito é só do usuário; perdendo-o este, ficará extinto para a sua família. Ao contrário do usufrutuário, o usuário ou morador-usuário não pode vender, alugar, nem trespassar por qualquer modo o seu direito. Claro está que o direito de uso, também, não pode ser hipotecado, nem por outra forma onerado (Cód. Civil português, art. 2.258). O direito do uso extingue-se pelas mesmas causas que põem termo ao usufruto. Terminado esse direito, reverte a cousa usada ao proprietário, livre de tal encargo”.28 Remata o doutrinador português ao confrontar o uso e a habitação: “Uso ou habitação: definição e caracteres. — Nos arts. 2.254. e seguintes do Cód. Civil português foi regulado em especial um direito real denominado uso e habitação. Esta epígrafe, porém, presta-se a confusões, pois, o direito real não tem esta denominação conjunta. O direito de uso, quando tenha por objecto alguma casa de habitação, chama-se direito de habitação, assim como o titular do direito que, em regra, se denomina usuário, quando o uso recai numa casa de habitação, é designado por morador-usuário. O direito do uso é, apenas, um usufruto mais restrito, quer quanto à extensão do direito, quer quanto à sua disponibilidade. O citado art. 2.254. define o direito de uso como faculdade concedida a alguma ou algumas pessoas de servir-se de certa cousa alheia, tão somente enquanto o exigirem as suas necessidades quotidianas. Os direitos de uso ou habitação constituem-se e se extinguem pelos mesmos modos que o usufruto, excepto por disposição da lei, visto que nenhum preceito desta o estabelece; e por isso são-lhes aplicáveis quase todas as disposições reguladoras do usufruto, atendendo-se ao respectivo objecto. Na verdade, embora o citado art. 2.254. se refira genericamente a cousa alheia, a verdade é que o direito de uso só pode ter por objecto as cousas susceptíveis de satisfazer às necessidades pessoais quotidianas e não as cousas que para tal fim seriam inúteis. É incontestável isto quanto ao direito de habitação que, evidentemente, só pode recair numa casa e não num móvel, nem numa capoeira. Pela mesma razão, não podem ser objecto de uso os direitos de autor ou os da propriedade industrial, e absolutamente impróprias para serem objecto de tal direito são as universalidades de cousas, tais como um estabelecimento ou uma herança”.29
Devido ao seu caráter personalíssimo, o direito de habitação não pode ser cedido nem alienado, em hipótese alguma. Igualmente não poderá haver exploração comercial/mercantil, pois seria desfigurar a finalidade do instituto, que deve servir de habitação e não de estabelecimento comercial. Tampouco deve o bem ser utilizado para fins ilícitos, especialmente em razão da potencialidade de sua perda, ante o confisco que poderá ser objeto de sanção penal ou administrativa.
O titular deve residir no prédio, ele sozinho ou com a sua família. Não o pode alugar nem emprestar, caracterizando-se como direito mais limitado que o direito real de uso, pois permite apenas habitar o imóvel pessoal e gratuitamente, excluída a percepção de quaisquer frutos.
A ocupação é exclusiva para moradia, coibindo-se a destinação do imóvel a atividades comerciais ou industriais. A violação desse dever constitui mau uso e implica a extinção do direito real. Nesse sentido, o direito real de uso destina-se exclusivamente à habitação familiar, exercida com gratuidade. Portanto, está limitada às necessidades do morador e da sua família.
Há os seguintes elementos a serem destacados quanto ao direito real de habitação: (a) temporariedade; (b) inalienabilidade; (c) gratuidade; (d) indivisibilidade.
No que atine à temporariedade o Código Civil de 1916 assegurava ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da comunhão universal, enquanto persistisse a viuvez. O Código Civil de 2002, embora tenha mantido esse benefício para o cônjuge, independentemente do regime de bens, não restringiu a duração do direito real de habitação vidual ao período de viuvez. Entende-se, consequentemente, que o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente é vitalício e que não depende da manutenção do estado de viuvez. Essa vitaliciedade, porém, não destoa do caráter temporário do direito real de habitação, na medida em que se extingue com a morte do beneficiado.
Por ser uma espécie de direito real temporário, a habitação se extingue nas mesmas hipóteses previstas para o usufruto, a saber: morte do habitante, renúncia, destruição da coisa e consolidação da propriedade.
Também por ser temporário e intuitu personae, é proibida a disposição da habitação enquanto direito real sobre coisa alheia, por ato inter vivos ou causa mortis. O conceito de alienação, neste caso, é amplo, abrangendo não apenas os atos onerosos, tais como a compra e venda, a permuta e a dação em pagamento, como também os de natureza gratuita, como a doação. Veda-se igualmente, a habitação sucessiva ou de segundo grau, em que o habitante institua o seu direito em favor de um terceiro, sob pena de nulidade. Tal proceder certamente tornaria o imóvel objeto de habitação eternamente sujeito à limitação real prevista na lei, o que soa irrazoável e inadmissível.
A inalienabilidade é norma cogente e de natureza pública, não permitindo flexibilização ou alteração por simples vontade das partes.
A gratuidade é outra das características mais marcantes do direito real de habitação, na medida em que o imóvel é estritamente destinado à utilização como moradia por parte do beneficiário e da sua família, não se admitindo pagamento pelo exercício temporário desse direito. O caráter gratuito do direito real de habitação é expressamente mencionado no texto legal da codificação civil (artigo 1.414), e a sua estrita vinculação à moradia deslegitima o habitante a alugar ou emprestar o prédio gravado, podendo, tão somente, ocupar o imóvel com a sua família. Aliás, a violação dessa regra legal legitima o proprietário a retomar o imóvel por desvio de função. É da essência do direito real de habitação a sua incidência exclusivamente sobre bens imóveis, sobretudo em razão da estrita destinação para fins de moradia do beneficiário e da sua família. O registro do imóvel deve atender aos requisitos da especialidade objetiva, cujo vetor normativo está na Lei dos Registros Públicos, que distingue o imóvel rural do urbano.
Se o imóvel for urbano, deve ser individualizado com suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver. Se for rural, os elementos que o individualizam são: o código do imóvel, os dados constantes do Certificado Cadastral de Imóvel Rural (CCIR), a denominação e suas características, confrontações, localização e área.
Outro ponto importante: o direito real de habitação é indivisível. Porém, é possível a sua constituição em favor de mais de uma pessoa. É o que doutrinariamente se denomina “habitação simultânea”, em que há evidente compartilhamento da moradia entre duas ou mais pessoas.
Nessa situação, qualquer dos coabitantes que habite o imóvel sozinho não terá que pagar aluguel às outras, porém tampouco pode inibir que qualquer dos demais coabitantes exerçam, quando considerarem oportuno, o direito de habitar o imóvel.
Aplica-se ao direito real de uso a regra concernente ao usufruto que extingue o quinhão do cotitular falecido (com a consequente consolidação da propriedade em proporção correspondente ao quinhão extinto), salvo se o ato constitutivo dispuser diversamente. A regra de acrescer, portanto, deve ser expressa.
O texto do dispositivo legal, portanto, elenca apenas 2 (dois) requisitos para a configuração da habitação legal: (a) a existência de um único imóvel a inventariar como residência da família; (b) a vigência do casamento no momento da morte do de cujus.
A habitação incidirá sobre o imóvel destinado à residência do casal. Todavia, não será o cônjuge privado do direito de habitação caso exista mais de um imóvel com esta característica, cabendo ao viúvo, neste caso, a escolha do bem sobre o qual recairá o gravame.
O direito real de habitação concedido ao cônjuge supérstite poderá, eventualmente, colidir com a regra da legítima prevista no Código Civil de 2002, que reserva aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e o cônjuge) a metade da herança. É o que ocorre, inevitavelmente, quando o imóvel sobre o qual recai o gravame é o único bem da herança, visto que o beneficiário do direito de habitação também é herdeiro necessário do de cujus.
Havendo um único imóvel na herança, o cônjuge, se concorrer com um único descendente na sucessão legítima, receberá a metade ideal do imóvel sobre o qual terá, também, direito real de habitação, restando ao descendente apenas a nua propriedade sobrea outra metade. Haverá, neste caso, condomínio do imóvel, subordinado a direito real de habitação, que não poderá ser desfeito enquanto durar o direito de habitação do cônjuge supérstite, isto é, até que a indesejada das gentes --- a morte --- visite o cônjuge supérstite.
Todavia, poderá o cônjuge renunciar ao direito de habitação, sem prejuízo da parte que lhe caiba na herança.
Note-se, ainda, que a habitação legal, tanto em favor do cônjuge supérstite como do convivente sobrevivo, deriva de regras do direito das sucessões, não do direito de família, motivo pelo qual o registro imobiliário é obrigatório para a constituição do direito real.
Afora as situações de habitação em favor do cônjuge e do companheiro, não há outras hipóteses de habitação legal, ao que se tem conhecimento.
Apesar das opiniões doutrinárias em sentido contrário, o Enunciado 271 da III Jornada de Direito Civil admite que o cônjuge renuncie ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou mediante escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.
Inexiste qualquer regra específica que impeça a renúncia à habitação, e a aplicação subsidiária das regras que disciplinam o usufruto permite afirmar que a renúncia expressa é uma das formas de extinção do direito real de habitação.
Por isso, nada impede que o cônjuge ou companheiro, por livre arbítrio, renuncie ao direito de habitação legal e, ao mesmo tempo, receba, a título de herança, o mesmo bem ou qualquer outro que integre o monte mor.
De acordo com a doutrina majoritária, somente pessoas físicas podem ser beneficiárias do direito real de habitação, cujo objeto, dada a sua natureza, somente pode consistir em bens imóveis.
O prédio, entretanto, não se destina exclusivamente às necessidades de moradia do habitante. Com efeito, o direito real de habitação estende-se à família do titular, motivo pelo qual é vedada a estipulação de cláusula que proíba a extensão da habitação à família do beneficiário.
O direito real de habitação possui como finalidade precípua garantir o direito à moradia ao cônjuge/companheiro supérstite, preservando o imóvel que era destinado à residência da família, qualquer que seja o regime de bens adotado.
O artigo 1831 do atual Código Civil não deixa dúvidas de tratar-se de instituto intrinsecamente ligado à sucessão, razão pela qual os direitos de propriedade originados da transmissão da herança sofrem mitigação temporária em prol da manutenção da posse exercida pelos membros do casal.