Capa da publicação Juiz das garantias: imparcialidade e igualdade processual
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O juiz das garantias à luz dos princípios da imparcialidade e da igualdade processual como salvaguarda dos direitos fundamentais

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O Juiz das Garantias, criado pela Lei nº 13.964/2019, fortalece a imparcialidade no processo penal brasileiro, separando investigação e julgamento. Como superar resistências e desafios logísticos?

Resumo: O trabalho aborda o instituto do Juiz das Garantias, introduzido no Brasil pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), com o objetivo de fortalecer os princípios da imparcialidade e da igualdade processual. Inicialmente, discute-se a influência de sistemas jurídicos estrangeiros, como o italiano e o espanhol, e a evolução histórica do sistema processual penal brasileiro, destacando os desafios da transição de um modelo inquisitório para um acusatório. O Juiz das Garantias é apresentado como um agente de supervisão da legalidade da investigação criminal, impedindo que o mesmo magistrado atue nas fases investigativa e de julgamento, garantindo maior neutralidade. O estudo analisa os fundamentos teóricos e práticos do instituto, enfatizando sua relevância para a proteção dos direitos fundamentais, especialmente no controle de medidas cautelares e na fiscalização de procedimentos investigativos. Também são abordados os entraves estruturais e culturais para sua implementação no Brasil, como a resistência de setores do Judiciário e as limitações logísticas em regiões menos desenvolvidas. Por fim, destaca-se o impacto do Juiz das Garantias na confiança social no sistema de justiça, promovendo maior equilíbrio entre acusação e defesa e assegurando a transparência e a legitimidade do processo penal. O trabalho conclui que o instituto representa um marco no direito processual penal brasileiro, mas sua efetividade depende de ajustes estruturais e culturais no sistema jurídico nacional.

Palavras-chave: Lei 13.964/2019. Pacote Anticrime. Juiz das Garantias. Processo Penal. Sistema jurídico brasileiro. Princípio da imparcialidade. Principio da igualdade processual.

Sumário: Introdução. 1. Fundamento teórico do juiz das garantias. 1.1. Conceitos iniciais. 1.2. Princípios da imparcialidade e da igualdade processual. 1.3. Código de processo penal e a lei nº 13.964/19. 2. Advento e histórico do juiz das garantias. 3. Investigação criminal e sistemas processuais. 3.1. Investigação criminal. 3.2. Sistema inquisitorial. 3.3. Sistema acusatório. 3.4. Sistema misto. 4. Juiz de garantias: equilíbrio entre imparcialidade e igualdade na justiça penal. 5. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

O processo penal brasileiro tem como parte tradicional de sua estrutura o rito processual orquestrado por um único juiz, o qual participa da fase investigativa, e, posteriormente, por se tornar juiz prevento, também da fase de decisão do mérito. Os prejuízos de se ter um magistrado orquestrando a fase investigativa e, posteriormente, julgando a fase de mérito são claros e vêm sendo objeto de debates, criticas e decisões no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, além de ser objeto de deliberações e mudanças legislativas em vários países, como Espanha, Itália, Portugal, Alemanha, entre outros. (LOPES JR e RITTER, 2016, p. 2).

Faz-se necessário frisar que o modelo processual penal vigente no Brasil, ainda que considerado por parte dos doutrinadores como misto, contendo a primeira fase inquisitória (inquérito policial) e a segunda fase acusatória (processual + decisão do caso penal), é constantemente vista como essencialmente inquisitória, sendo que apenas no aspecto técnico é que podemos “falar na existência de um sistema misto, mormente porque na atualidade o processo penal é informado por elementos de ambos os sistemas, contudo, nunca se deve perder de vista que o princípio fundante da engrenagem sempre será ou o inquisitivo ou o dispositivo.” (TAPOROSKY FILHO; ARNOLD, 2019 apud SALMEN, 2022, p. 09).

Conforme Lopes Jr (2016), no modelo em que um juiz preside as duas fases do rito processual, o magistrado atua como verdadeiro investigador, decidindo sobre a necessidade das diligências e podendo rejeitar as que considerar desnecessárias, sem estar subordinado ou vinculado às petições do Ministério Público ou da defesa. Em crimes públicos, ele pode adotar medidas cautelares de ofício, mesmo contra a vontade do Parquet. Dessa maneira, o juiz de instrução tem a autoridade para conduzir a investigação, mesmo que o titular da futura ação penal considere que não há motivos razoáveis para tal.

Essa figura processual desempenha um papel central no controle da legalidade das investigações, garantindo que os atos praticados durante essa fase respeitem os limites fiscais pela legislação e pelos direitos fundamentais. Ao supervisionar a coleta de provas, autorizar medidas cautelares e zelar pela observância das garantias legais, o juiz das garantias contribui para o equilíbrio entre a eficácia investigativa e a proteção dos indivíduos contra eventuais abusos de poder.

O debate sobre a implementação desse instituto no Brasil revela a complexidade de transformar um sistema processual historicamente marcado por características inquisitoriais em um modelo acusatório. O juiz das garantias, ao atuar exclusivamente na fase investigativa, previne a contaminação da decisão de mérito por pré-julgamentos ou integrações formadas durante a coleta de provas, assegurando maior neutralidade ao julgamento.

Inspirado em modelos processuais de países europeus, como Itália, Alemanha e Espanha, o juiz das garantias alinha-se a uma tradição jurídica que valoriza a separação de funções como elemento essencial para a construção de um sistema penal mais justo e equilibrado. Essa referência internacional contribui para legitimar o instituto, ao mesmo tempo em que traz desafios importantes para sua adequação à realidade brasileira, especialmente em termos de infraestrutura e recursos humanos.

As discussões sobre o impacto prático desse instituto envolvem não apenas questões logísticas e estruturais, mas também reflexões sobre a cultura jurídica e a resistência às mudanças no sistema de justiça. Os críticos apontam a sobrecarga do Poder Judiciário e as dificuldades de aplicação em comarcas de pequeno porte como entraves à implementação, enquanto os defensores argumentam que o instituto fortalece a proteção do sistema judicial e promove maior proteção aos investigados.

Outro aspecto relevante é a relação entre o juiz das garantias e a proteção dos direitos fundamentais durante a investigação criminal. Medidas como prisões provisórias, interceptações telefônicas e buscas domiciliares, embora essenciais em muitos casos, carregam o potencial de violar garantias constitucionais caso não sejam rigorosamente controladas. Nesse contexto, o juiz das garantias assume a função de salvaguardar esses direitos, garantindo que todas as decisões sejam fundamentadas e respeitem os limites legais.

Ademais, a criação do instituto traz consigo um impacto significativo sobre o papel das instituições envolvidas na persecução penal, especialmente o Ministério Público e a polícia judiciária. Ao delimitar competências e introduzir uma figura responsável exclusivamente pelo controle da legalidade na investigação, o instituto redefine as relações entre acusação, defesa e Judiciário, contribuindo para um equilíbrio mais saudável entre essas partes.

Não menos importante é o reflexo social da implementação do juiz das garantias. Ao garantir maior transparência e equilíbrio no processo penal, o instituto fortalece a confiança da sociedade no sistema de justiça. Em um contexto em que o clamor por justiça muitas vezes pressiona o Judiciário a agir de forma célere, o juiz das garantias atua como um contrapeso, assegurando que os direitos individuais não sejam negligenciados em prol de resultados imediatistas. Essa função reforça o papel do Judiciário como guardião dos princípios democráticos e das garantias constitucionais.

O instituto também redefine as relações entre as instituições da perseguição penal, como o Ministério Público e a polícia judiciária, delimitando competências e assegurando maior equilíbrio entre as partes. Com isso, promove-se uma relação mais saudável e transparente entre acusação, defesa e Judiciário, fortalecendo a confiança pública no sistema de justiça.

Embora enfrente críticas quanto à sua previsão em regiões com recursos limitados e à possibilidade de sobrecarga do Poder Judiciário, o juiz das garantias é defendido por muitos como uma inovação indispensável para modernizar o sistema processual penal brasileiro. Sua implementação não apenas reforça o papel do Judiciário como guarda dos direitos constitucionais, mas também contribui para a promoção de um processo penal mais democrático e equilibrado.

A proposta do juiz das garantias simboliza, portanto, um avanço importante na busca por um Judiciário mais transparente e eficaz, alinhado aos valores democráticos e aos princípios de imparcialidade e igualdade processual. Ao longo deste trabalho, serão analisados os fundamentos, desafios e implicações desse instituto, que representam um marco na evolução do direito processual penal brasileiro.


1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO JUIZ DAS GARANTIAS

1.1. Conceitos iniciais

O instituto do Juiz das Garantias surge no ordenamento jurídico brasileiro com objetivo de aumentar a eficácia da imparcialidade do magistrado, frente a processos, que impliquem conhecimento de provas não legais durante a fase investigativa. Introduzido nos artigos 3º-B a 3º-F do Código de Processo Penal, a partir da aprovação da Lei 13.964/2019 (LGL/2019/12790), oriunda do Projeto de Lei 882 de 2019, torna-se responsável por atuar exclusivamente na fase de investigação criminal, assegurando as garantias fundamentais dos indivíduos durante a coleta de provas, buscas e apreensões, e outras medidas cautelares, sem ter envolvimento direto no julgamento do mérito do caso.

Essa divisão de funções entre o juiz que atua na fase de investigação e o juiz que julga o mérito, tem como finalidade evitar que o mesmo magistrado, que autorizou medidas cautelares ou participou da coleta de provas, seja responsável pela decisão final. O objetivo central é manter a imparcialidade do julgamento, uma vez que o juiz que decidirá o mérito processual não tem contato direto com as provas produzidas, evitando contaminação de decisões prévias. Essa prática visa garantir que as medidas cautelares e as decisões durante a investigação sejam submetidas a um controle rigoroso, sem que o juiz responsável tenha seu julgamento comprometido por sua atuação anterior (GLOECKNER; LOPES JR., 2020, p. 839, 840).

O rol onde constam as atribuições que dizem respeito ao Juiz das Garantias está previsto no art. 3º-B, nos incisos I a III, da Lei nº 13.964/2019:

Art. 3º-B. O Juiz das Garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;

II- receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310. deste Código;

III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI - decidir sobre os requerimentos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;

XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399. deste Código;

XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.

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Apesar de ter sua implantação somente após a mencionada lei, a ideia de separar as funções de investigação e julgamento no Brasil é antiga e suas raízes podem ser encontradas em discussões jurídicas que remontam ao século XX. A proposta de introduzir uma figura que assegurasse imparcialidade e garantias processuais durante a fase de investigação criminal surge como resposta a um sistema considerado pela maioria dos doutrinadores como inquisitorial, advindo de governos autoritários. O juiz das garantias torna-se assim, uma tentativa de separar as funções de quem investiga e quem julga, minimizando o risco de parcialidade

O Código de Processo Penal Brasileiro, elaborado durante o regime autoritário que se seguiu à Revolução de 1930, reflete a influência da liderança do então presidente Getúlio Vargas. No período em que esteve a frente do Estado Novo, surge, para Vargas, a necessidade de unificar a legislação processual como forma de reforçar o poder estatal. Essa busca pela consolidação do poder estatal foi inspirada em modelos adotados por outros países, e isso se manifesta claramente na adoção do sistema inquisitório, que permeia a essência do Código de Processo Penal.

Quanto a isso, Silveira diz:

O resultado foi um código que representava os ideais políticos vigentes ao Estado Novo, declaradamente autoritário e fundado num pretenso pensamento "popular-democrático". A base foi o Código Rocco de processo penal (1930), da Itália fascista de Mussolini, da qual Alfredo Rocco era Ministro da Justiça. Diante da incumbência de reformar a legislação penal e processual penal segundo os princípios autoritários, Rocco concede a Vincenzo Manzini, principalmente, a missão de redigir o codice di procedura penale, que só fez agravar a natureza inquisitória dos códigos processuais anteriores, já inseridos na lógica "mista" napoleônica. (SILVEIRA, 2015, p. 270)

Conforme já mencionado, a proposta de separar as funções de investigação e julgamento no Brasil não é recente, porém, ganhou destaque no Congresso Nacional a partir dos primeiros anos do século XXI. O debate sobre o tema se aprofundou com a sugestão de reformulação do Código de Processo Penal (CPP), que culminou na Lei 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”. Essa legislação, ao instituir a figura do Juiz das Garantias, representou um avanço significativo na consolidação do modelo acusatório em nosso sistema processual penal.

Ao atribuir, ao Juiz das Garantias, a função de fiscalizar a legalidade da investigação criminal, a Lei 13.964/2019 reafirma a necessidade de uma clara separação entre as fases investigativa e judicial. Essa medida, como destaca Fernando Capez, visa reforçar a imparcialidade judicial, evitando a contaminação da convicção do magistrado que irá julgar o caso. Com a implementação do Pacote Anticrime o Brasil deu um passo importante em direção superação do modelo inquisitorial, caracterizado pela concentração de poderes nas mãos de um único juiz, e consolidou o modelo acusatório, que garante maior equilíbrio entre as partes e a proteção dos direitos fundamentais. (CAPEZ, 2020, p. 75).

Nucci diz:

O contexto da reforma levou o processo penal para o lado acusatório, mas ainda se trata de um sistema mitigado, pois os poderes instrutórios do juiz do mérito da causa ainda persistem. Se eles forem estancados, adentraremos o sistema acusatório por excelência; porém, seria isso conveniente? Trata-se de indagação que mereceria várias respostas sob diferentes ângulos. Por ora, parece-nos útil o poder de instrução do juiz, após o recebimento da denúncia, para que ele possa sanar suas dúvidas e formar o seu convencimento, desde que o faça com imparcialidade, qualidade essencial à atividade jurisdicional. (NUCCI, 2020, p. 115).

Ele continua:

Ressalte-se o relevante conteúdo do art. 3.º-A do CPP: “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Na sequência, o art. 3.º-B caput, do mesmo Código estabelece: “o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (...)”. Até mesmo a função anômala, atribuída ao magistrado, de zelar pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal, foi eliminado. A nova redação do art. 28. do CPP prevê que, em caso de arquivamento, o promotor comunique a vítima, o investigado e a autoridade policial sobre essa situação e encaminhe os autos à superior instância do próprio Ministério Público.(NUCCI, 2020, p. 116)

Importante salientar que a atualização do código de processo penal também é ideia antiga. Em 2009, o congresso nacional apresentou uma proposta com objetivo de instituir novo CPP. Proposto pelo deputado federal Alexandre Silveira, e de autoria do senador José Sarney, o projeto de lei 156/2009 tinha como eixo central a compatibilização do processo penal brasileiro com os valores democráticos da Constituição de 1988, em especial o princípio acusatório. Em 2010, esse PL passou a tramitar no congresso sob o Nº 8.045/2010, onde está aguardando a criação de comissão temporária pela MESA.

Não se pode ignorar o fato de que, por mais que o projeto de lei 8.045/2010 e a Lei 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME) tenham objetivos semelhantes, suas propostas seguem distintas. A primeira, visa uma reforma completa do código de processo penal, enquanto a segunda traz mudanças pontuais e urgentes ao código já vigente. Destaca-se ainda o fato de que a tramitação do PL 8.045/2010 continua em andamento, por sua aprovação depender de avanços no consenso político e jurídico sobre as mudanças propostas.

Outro destaque quanto a origem do instituto juiz de garantias, é a de que sua adoção possui suas raízes em sistemas estrangeiros, como o italiano, que distingue claramente as funções do juiz de instrução do juiz de julgamento. Lá, o juiz das garantias recebe o nome de “giudice per le indagini preliminari” (juiz da instrução preliminar) ou simplesmente GIP. De acordo com Renato Brasileiro de Lima, a incorporação dessa figura representa uma tentativa de garantir maior proteção aos direitos fundamentais, aumentando a imparcialidade do magistrado no processo penal brasileiro. A separação das funções visa assegurar uma decisão mais imparcial, ao evitar que o mesmo magistrado que supervisionou a investigação também seja responsável por julgar o mérito do caso. (LIMA, 2020, p. 113)

Mesmo após a promulgação da Lei nº 13.964/2019, a implementação prática do juiz da instrução no Brasil enfrenta desafios consideráveis, principalmente relacionados à infraestrutura e à cultura jurídica vigente. Um dos pontos críticos diz respeito à viabilidade operacional de implantar essa figura em todas as comarcas do país. Torna-se claro, assim, que a implantação do Juiz das Garantias requer uma reestruturação do sistema judiciário, o que pode justificar a difícil implementação em regiões menos desenvolvidas.

Alguns críticos, como Rogério Sanches Cunha, argumentam ainda que a criação dessa figura surgiu de forma repentina, não atingindo o máximo de debate acerca do tema e traz a reflexão sobre a constitucionalidade para o debate. Para Sanches, “o instituto foi aprovado sem muito debate ou discussão, surpreendendo a maioria, com texto diferente daquele constante do projeto para o Novo Código de Processo Penal”. (SANCHES, 2023, p. 54).

O instituto também provocou divergências dentro da comunidade jurídica quanto aos seus impactos no processo penal. As diferentes opiniões refletem uma tensão entre a busca por garantias processuais e a necessidade de eficiência judicial. Sanches também observa que enquanto alguns consideram o juiz das garantias um avanço no sistema de justiça criminal, outros concluem não haver fundamentos científicos comportamentais ou jurídico-comparativos para estabelecer o juiz de garantias como um requisito necessário a proporcionar ou incrementar a imparcialidade judicial, no Brasil. (VITORELLI; ALMEIDA, 2021 apud SANCHES, 2023, p. 59).

Em razão disso, o STF suspendeu temporariamente a implementação do instituto, o que gerou um intenso debate sobre o papel do Judiciário nas reformas processuais penais. Essa suspensão revela a complexidade de introduzir novas figuras jurídicas em sistemas legais já consolidados, além de destacar a necessidade de uma adaptação gradual. Com isso, a efetivação das mudanças previstas no Pacote Anticrime foi postergada, sendo a constitucionalidade do pacote e suas aplicabilidades, tratadas através das ADI’s, pelo próprio Superior Tribunal Federal.

Outro aspecto discutido foi sobre a possibilidade de ampliação das funções do Juiz das Garantias para além da fase investigativa. Há a defesa de que esse juiz também poderia atuar durante o julgamento, com o objetivo de assegurar que as provas não sejam contaminadas por ilegalidades cometidas na investigação. No entanto, essa proposta demandaria uma revisão mais abrangente das funções judiciais e um consenso sobre o alcance das garantias processuais.

Em resumo, a implementação do Juiz de Garantias no Brasil está em andamento, refletindo tanto avanços quanto desafios na construção de um sistema penal mais equilibrado e justo. A experiência brasileira evidencia a complexidade de implementar reformas que exigem mudanças normativas e estruturais. Apesar dos obstáculos, como a necessidade de desenvolver novos mecanismos operacionais, garantir a disponibilidade adequada de magistrados para a função e assegurar a integração eficiente entre os diversos órgãos do sistema judicial, a introdução do Juiz de Garantias representa um marco no direito processual penal brasileiro. Sua efetividade, no entanto, dependerá de ajustes contínuos e da maturidade institucional do país.

1.2. Princípios da Imparcialidade e Igualdade Processual

A imparcialidade e a igualdade processual são princípios norteadores do processo penal moderno, fundamentais para a garantia de um julgamento justo. A imparcialidade assegura que o juiz não tenha nenhum interesse pessoal ou preconceito condicionado ao caso, mantendo-se equidistante das partes, enquanto a igualdade processual garante que todas as partes tenham as mesmas oportunidades de defesa e acusação. Esses princípios, consagrados na Constituição Federal, encontram eco em tratados internacionais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), que estabelece o direito a um julgamento justo e imparcial.

A origem do princípio da imparcialidade remonta às bases da jurisdição estatal, fundada na separação entre quem acusa e quem julga. Historicamente, a imparcialidade do juiz passou a ser vista como uma das garantias fundamentais em um sistema processual justo, especialmente no modelo acusatório. No Brasil, esse princípio é uma das premissas do processo penal democrático, sendo a imparcialidade do juiz protegida tanto por normas infraconstitucionais quanto por convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. (PACELLI, 2021, p. 574)

A imparcialidade é subdividida em objetiva e subjetiva. A objetiva está relacionada à posição do juiz como um terceiro imparcial no processo, ou seja, a sua função de estar alheio aos interesses das partes, não sendo ele mesmo afetado pelas questões do caso. Já a imparcialidade subjetiva refere-se ao estado emocional e psicológico do magistrado, que não deve ter qualquer vínculo pessoal com o processo ou as partes envolvidas. (STEFFENS, 2019, p. 8-10)

No plano jurídico internacional, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao julgar o caso Piersack vs. Bélgica, estabeleceu a importância da imparcialidade objetiva, considerando que o juiz deve não apenas ser imparcial, mas também parecer imparcial aos olhos do público. Essa decisão foi fundamental para reforçar a noção de que a imparcialidade objetiva deve ser preservada como uma garantia contra qualquer tipo de parcialidade real ou percebida. (STEFFENS, 2019, p. 10, 11)

Quanto à igualdade processual, trata-se de um desdobramento do princípio da isonomia, presente no artigo 5º da Constituição Federal. Na esfera processual, a igualdade de armas refere-se à equidade entre as partes no tocante à produção de provas, recursos e condução do processo. Isso significa que acusação e defesa devem ter as mesmas oportunidades para defender seus pontos de vista, sob pena de o processo se tornar injusto e desequilibrado. (PACELLI, 2021, p. 435)

Importante frisar que a imparcialidade do juiz é diretamente conectada à garantia da igualdade processual. Quando o magistrado atua de forma parcial, ele desequilibra a balança processual, favorecendo uma das partes em detrimento da outra. Aury Lopes Jr. destaca que a imparcialidade é o "princípio supremo do processo", sendo essencial para a justiça e para a segurança jurídica. Ele argumenta que a imparcialidade é comprometida quando o juiz assume um papel investigativo, como ocorre no sistema inquisitório, em que o magistrado é envolvido na produção de provas, tornando-se vulnerável à contaminação cognitiva. Isso, segundo o autor, inviabiliza a neutralidade necessária para que o julgamento seja conduzido de forma justa e equitativa (LOPES JR., 2022, p. 79).

Além disso, o princípio da igualdade processual, que também é destacado por Aury Lopes Jr., exige que as partes envolvidas no processo tenham as mesmas oportunidades e meios para defender suas posições. O autor defende que a igualdade de armas é um elemento essencial em um sistema acusatório, no qual a função probatória cabe às partes e não ao juiz. Nesse sentido, Lopes Jr. observa que, em um processo equilibrado, o magistrado deve limitar sua atuação à condução imparcial do procedimento, respeitando a autonomia das partes na produção de provas, o que assegura tanto a imparcialidade quanto a igualdade entre acusação e defesa (LOPES JR., 2022, p. 492).

Na prática judicial brasileira, a imparcialidade e a igualdade processual são asseguradas pelo sistema acusatório, que promove uma nítida separação entre as funções de acusação, defesa e julgamento. A imparcialidade do juiz é particularmente reforçada pelas garantias de impedimento e suspeição, previstas no Código de Processo Penal, que visam afastar o magistrado quando houver indícios de que ele possa ter interesses conflitantes com os das partes.

A importância desses princípios como norteadores da atuação dos magistrados brasileiros é inegável. Segundo Steffens, a imparcialidade não é apenas um requisito formal do processo, mas uma condição essencial para que a decisão judicial seja vista como legítima e justa, tanto pelas partes quanto pela sociedade. Um juiz que não é imparcial compromete a integridade do sistema judicial e pode gerar descrédito nas instituições. (STEFFENS, 2019, p. 13)

Válido ressaltar que, a imparcialidade funciona como um contrapeso às pressões externas que os magistrados podem sofrer, especialmente em casos de grande repercussão social. A confiança pública no sistema judicial depende da percepção de que os juízes atuam de forma independente e alheia a interesses políticos ou econômicos. Por isso, o princípio da imparcialidade é crucial para a manutenção da credibilidade do Judiciário.

1.3. Código de Processo Penal e a Lei nº 13.964/19

O Código de Processo Penal brasileiro (CPP) foi instituído pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Criado em um contexto de crescente centralização política e fortalecimento de ideais autoritários, seu principal objetivo era unificar as normas processuais penais no Brasil, que até então seguiam legislações estaduais.

Para a sua elaboração, Francisco Campos, responsável à época pela redação do CPP, teve como base influências de códigos processuais estrangeiros, especialmente o Código de Processo Penal Italiano de 1930, conhecido como Código Rocco, e o Código de Instrução Criminal Francês de 1808. Dessa forma, o modelo brasileiro acabou absorvendo características do sistema inquisitivo, o qual colocava a função de conduzir tanto a investigação quanto o julgamento, nas mãos de um só magistrado.

Válido destacar que a adoção do modelo italiano foi relevante, pois trouxe a ideia de centralidade do juiz no processo penal. No entanto, esse formato vem sendo alvo de críticas desde sua origem, dado seu caráter autoritário e inquisitorial, características que permitiam ao magistrado desempenhar um papel preponderante na condução da instrução criminal. O Código Rocco, que serviu de base ao brasileiro, era adequado ao regime fascista italiano, o que gerou incompatibilidades com os ideais democráticos que surgiriam nas décadas seguintes.

Além de organizar de forma sistemática as regras do processo penal em um único código válido para todo o Brasil, o objetivo do CPP era também o de tornar a atuação repressiva do Estado mais eficiente e rigorosa no combate aos crimes.

Silveira diz:

O próprio ditador, em sua “Proclamação ao Povo Brasileiro”, lida no Palácio da Guanabara e irradiada para todo o país na noite de 10 de Novembro de 1937, imediatamente após o golpe de 1937, refere-se à necessidade de um governo central forte, fundado no discurso da supremacia do “interesse público” sobre os “centros de decisão política”, desagregadores, em que se tinham transformado os chefes de governo locais, em expressa referência ao modelo oligárquico de sucessão presidencial alimentado pelo que chama de “caudilhismo provinciano. (SILVEIRA, 2015, p. 269)

Com o passar dos anos e a evolução da sociedade brasileira, o CPP foi alvo de reformas pontuais. Um dos primeiros marcos de transformação ocorreu com a Constituição Federal de 1988, que trouxe um novo paradigma de garantias fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa" (LOPES JR., 2022, p. 110-111). Esse novo texto constitucional estabeleceu uma nova visão sobre o processo penal, baseando-se em um sistema acusatório que trazia a ideia de que as funções de investigar, acusar e julgar deveriam ser independentes, diferentemente do sistema original do CPP.

Nos anos 2000, o processo penal passou por outras importantes mudanças com vistas à modernização e à adequação aos princípios constitucionais. A Lei nº 11.689/2008 reformulou o Tribunal do Júri, buscando maior clareza e eficiência nos julgamentos (NUCCI, 2020, p. 177). Outro ponto importante foi a Lei nº 12.403/2011, que alterou o regime das prisões processuais, limitando o uso indiscriminado da prisão preventiva e introduzindo medidas cautelares alternativas à prisão, em conformidade com os direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.

As reformas de 2013 também trouxeram avanços significativos, como a Lei nº 12.850/2013, que regulamentou o combate às organizações criminosas, e a Lei nº 12.694/2012, que possibilitou o julgamento colegiado de crimes cometidos por organizações criminosas. Ambas as legislações visaram aumentar a eficiência do sistema de justiça penal no combate ao crime organizado e fortalecer a proteção das garantias constitucionais. Essas mudanças refletiam a tentativa do legislador de adequar o sistema processual penal às novas demandas sociais e à proteção dos direitos fundamentais.

Outro marco importante ocorreu em 2015, através da LEI Nº 13.105, que instituiu o novo Código de Processo Civil (CPC), influenciando diretamente no CPP. A partir desse momento, a jurisprudência brasileira começou a aplicar princípios do direito processual civil ao processo penal, como a gestão compartilhada da prova e o princípio da primazia da resolução do mérito. Essa mudança trouxe maior complexidade ao sistema, mas também possibilitou a adoção de mecanismos mais eficientes e justos.

Destaca-se também que um dos maiores avanços legislativos no campo do processo penal brasileiro ocorreu em 2019, com a promulgação da Lei nº 13.964, conhecida como "Pacote Anticrime". Essa lei representou um marco no processo penal brasileiro, trazendo modificações significativas em diversas áreas, como o regime de execução penal, a colaboração premiada e a criação do juiz de garantias. O juiz de garantias, em especial, foi uma inovação introduzida para garantir a imparcialidade do processo, separando o magistrado que conduz a fase investigativa daquele que julga o mérito da causaA figura do juiz de garantias, inserida pela Lei nº 13.964/2019, foi um dos pontos mais debatidos da reforma. A sua implementação busca evitar a concentração de poderes no juiz, promovendo uma divisão entre a fase investigativa e a fase decisória, visando garantir a imparcialidade e a neutralidade do julgamento. Embora ainda esteja pendente de regulamentação completa e enfrentando resistências, essa inovação aproxima o Brasil de modelos processuais acusatórios mais modernos e justos.

Apesar de ter sido alterado por diversas leis ao longo dos anos, o código de processo penal ainda carrega muitas de suas características iniciais. No entanto, as reformas introduzidas, especialmente pela Lei nº 13.964/2019, representam um avanço importante na tentativa de modernizar o sistema processual penal brasileiro, conferindo maior proteção aos direitos fundamentais e promovendo a imparcialidade dos julgamentos. O CPP segue como uma peça em constante evolução, acompanhando as transformações sociais e jurídicas do país.

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Sobre o autor
Juan Emanuel de Moura Vasconcelos

Bacharelando em Direito na AEDAIFASP - Sertão do Pajeú Afogados da Ingazeira- PE .⚖️10/10

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