2. O ADVENTO E HISTÓRICO DO JUIZ DAS GARANTIAS
Conforme Gloeckner e Lopes Jr. (2015, p. 750), as primeiras ideias sobre o Instituto do Juiz das Garantias surgiram na França, com o Code de Procédure Pénale de 1958, onde a instrução preliminar (instruction préparatoire) era conduzida pelo juiz instrutor, encarregado de descobrir a "verdade dos fatos" e comprovar a participação do investigado no crime.
Na Alemanha, em meados dos anos 1970, apareceu o Ermittlungsrichter ou juiz de investigação, responsável pela investigação preliminar. Gloeckner e Lopes Jr. (2015, p. 780-783) mencionam que, após uma reforma, o juiz passou a atuar na fase pré-processual em parceria com a polícia e o Ministério Público, mantendo uma postura de juiz garantidor, e não mais de juiz instrutor, assumindo o controle judicial das etapas da persecução penal.
Eles destacam o papel do juiz garantidor na Alemanha:
Além de realizar o juízo de pré-admissibilidade da acusação – na fase intermediária –cumpre ao juiz analisar a legalidade da medida adotada pelo fiscal, sempre recordando que é adotado o princípio da obrigatoriedade relativizado severamente pelo princípio da oportunidade, de modo que não lhe assiste o poder de verificar a conveniência da posição adotada pelo promotor. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 782-783)
Na Itália, segundo Gloeckner e Lopes Jr. (2015, p. 759), o Codice de Procedura Penale de 1987/1988, que entrou em vigor em 1989 substituindo o Codice Rocco (1930), foi bastante influenciado pelo modelo alemão. Apesar de a investigação preliminar ser conduzida pelo Ministério Público, ela ocorre sob o controle garantista do giudice per le indagini preliminar. Sobre o papel desse juiz, Gloeckner e Lopes Jr. observam:
Esse juiz da instrução e não de instrução não realiza tarefas investigatórias ou instrutoras, senão de garantia, como um verdadeiro garante, atuando no controle da adoção e realização das medidas restritivas de direitos fundamentais do sujeito passivo. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 764)
Na Espanha, o processo penal é dividido também em duas fases, sendo conhecidas como “instrução preliminar ou fase pré-processual e a juicio oral ou fase processual”, nesta ordem. É importante frisar que há uma preocupação quanto a imparcialidade do magistrado espanhol, que é vista através da jurisprudência e da doutrina sobre a figura do “juez” não prevenido, destacando-se, entre elas, a STC 145/88, que originou a LO nº 7/88.
Nesse contexto:
A prevenção do Direito espanhol é uma causa de exclusão da competência, pois o juiz prevenido é juiz parcial. Existe uma presunção iure et iure de comprometimento do juiz instrutor, de modo que ele está absolutamente impedido de atuar na fase processual. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 723)
Ainda na Espanha, o LECrim (código de processo penal espanhol), no art. 303, descreve que a formação do sumário cabe aos juízes de instrução do local onde ocorreu o delito. Gloeckner e Lopes Jr. (2015, p. 731) ressaltam que, nesse país, o juiz instrutor é o protagonista da instrução preliminar e "detém todos os poderes necessários para levar a cabo toda a investigação que buscará aportar os elementos necessários para o processo ou o não processo".
Em Portugal, apesar de o sistema de investigação preliminar ser conduzido pelo Ministério Público, com o promotor sendo o principal investigador do inquérito policial, o juiz da instrução atua como garantidor e realiza atos específicos em conjunto com o Ministério Público. Gloeckner e Lopes Jr. (2015, p. 796-797) explicam que esses atos podem ser praticados pessoalmente pelo juiz da instrução, mas estão condicionados à prévia petição do Ministério Público, da polícia, do sujeito passivo ou do assistente da acusação. O juiz assume uma posição garantista, "verificando a legalidade e determinando os limites de restrição dos direitos fundamentais do sujeito passivo", embora geralmente não pratique pessoalmente esses atos, que dependem de requisição prévia das partes mencionadas.
No processo penal português, o sistema é misto, com o juiz atuando tanto como garantidor quanto como investigador, apesar de a investigação preliminar ser atribuída ao Ministério Público. Entretanto, esse juiz não pode atuar na fase processual penal, conforme a doutrina do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, se tiver decidido questões do inquérito policial ou realizado atos de investigação, já que isso presumiria comprometimento de sua imparcialidade. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 797)
Nos Estados Unidos, existe uma figura semelhante ao Juiz das Garantias na segunda fase do processo penal.
Segundo Gloeckner e Lopes Jr.:
A segunda fase do procedimento penal norte-americano se encontra na fase de adjudicação (adjudicatory stage) na qual o magistrado encarregado analisa as provas, podendo descartá-las ou admiti-las. Essa análise se dá após o ato de prosecution, que o ato formal de acusação contra o suspeito. Se o promotor decide acusar, ele elabora um documento formal – equivalente à nossa denúncia (complaint) – e submete o caso à apreciação judicial. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 808)
Embora a investigação criminal nos EUA seja conduzida pela polícia, há uma semelhança com o instituto no controle da legalidade das provas feito pelo juiz, garantindo, assim, os direitos fundamentais do acusado.
Ainda segundo Gloeckner e Lopes, nos Estados Unidos, o juiz de garantias tem o papel de supervisionar as atividades investigativas durante a fase preliminar do processo penal. Sua função é assegurar que medidas restritivas de direitos fundamentais, como prisões ou buscas domiciliares, sejam autorizadas com base em uma justificativa de "causa provável", conforme previsto pela Quarta Emenda. Além disso, o juiz age como intermediário, decidindo sobre a admissibilidade de provas e monitorando a atuação das autoridades policiais e do Ministério Público ao longo das investigações. (GLOECKNER; LOPES JR., 2015, p. 811)
Uma diferença significativa entre os sistemas dos Estados Unidos e de Portugal está no papel desempenhado pelo Ministério Público. Enquanto nos EUA a investigação criminal é majoritariamente conduzida pela polícia, com pouca interferência direta do Ministério Público, em Portugal este órgão tem uma atuação mais ativa na investigação preliminar, controlando a polícia. Ademais, em Portugal, existe a fase de "instrução", na qual o juiz de garantias pode revisar as decisões do Ministério Público — algo que não acontece no sistema norte-americano.
Outra distinção importante é a fragmentação do sistema de justiça nos Estados Unidos, onde há uma grande quantidade de agências policiais estaduais e municipais, cada uma com autonomia. Isso torna a coordenação entre elas mais complicada. Já em Portugal, o sistema é mais centralizado, com maior coesão no controle judicial das investigações preliminares. Nos Estados Unidos, essa descentralização pode dificultar a uniformidade das decisões e o controle das garantias processuais.
Em resumo, o instituto do Juiz das Garantias no processo penal brasileiro é uma mistura de várias ideias e precedentes históricos, que defendem que o mesmo juiz não pode atuar como garantidor e julgador no mesmo caso, assegurando assim a imparcialidade e evitando a contaminação das decisões, garantindo que o acusado tenha todos os seus direitos fundamentais protegidos.
3. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E SISTEMAS PROCESSUAIS
3.1. Investigação Criminal
A investigação criminal exerce um papel essencial na elucidação de infrações penais e na identificação dos responsáveis por sua prática. Ela consiste em um conjunto de medidas iniciais, devidamente formalizadas, que respeitam os limites impostos pela legislação vigente. O objetivo primordial é apurar a ocorrência de um crime, identificar os fatos, as circunstâncias e, sobretudo, os indivíduos envolvidos. No decorrer dessa fase, são coletadas provas e demais elementos que poderão ser utilizados na perseguição penal.
Assim, trata-se da etapa preliminar do processo penal, na qual se busca reunir elementos suficientes para embasar uma denúncia ou queixa-crime contra o possível autor da infração. É relevante observar que a investigação possui natureza administrativa e ocorre antes da instauração do processo judicial, configurando-se, portanto, como uma fase pré-processual. Pode ser iniciado de ofício pela autoridade policial, mediante requisição do Ministério Público ou do magistrado, ou ainda por meio de uma comunicação formal feita pela vítima, seu representante legal ou qualquer cidadão que relate a ocorrência de um delito.
A investigação é conduzida pela Polícia Judiciária, seja a Polícia Civil ou Federal, em conformidade com a competência territorial ou material do crime, cabendo a essa autoridade a execução de todas as diligências permitidas para esclarecer os fatos e suas circunstâncias. Entre essas diligências, incluem-se a oitiva da vítima, o indiciado e as testemunhas, a realização de perícias, a solicitação de documentos, a execução de buscas e apreensões e, quando autorizada, a interceptação de comunicações.
O produto desta investigação é formalizado no inquérito policial, um procedimento escrito e sigiloso que compila todas as informações e provas obtidas. O inquérito possui prazo para conclusão, o que varia conforme a natureza do crime e a situação do investigado. Ao final do inquérito, a autoridade policial elabora um relatório final, no qual descreve as diligências realizadas, as provas obtidas e sua opinião sobre a autoria e materialidade do crime.
3.2. Sistema Inquisitorial
O sistema inquisitorial, adotado pelo Direito Canônico a partir do século XIII, foi mantido pela Europa e foi utilizado também pelos tribunais civis até o século XVIII. Esse sistema, característico de regimes ditatoriais, tem como principal característica a concentração das funções de acusar, defender e julgar em uma única pessoa. Esse papel central era desempenhado pelo chamado “juiz inquisidor”, que acumulava a responsabilidade de ser tanto o acusado quanto o julgador.
As principais características do sistema inquisitório, segundo Aury Lopes Jr. são:
Gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz; ausência de separação das funções de acusar e julgar; violação do principio ne procedat iudex ex officio (juiz não pode dar início ao processo de oficio sem a provocação da parte interessada); juiz parcial; inexistência de contraditório pleno; e desigualdade de armas e oportunidades. (LOPES JR., 2019, p. 46-47)
Em alguns países do centro europeu, como Espanha, Alemanha e França, houve a implementação concreta do processo inquisitivo na mão do magistrado como forma de lapidar a sociedade frente a uma ideologia controladora de atos e julgamentos. Como exemplo, a Espanha, o processo inquisitorial foi previsto com a revogação formal da legislação visigótica (Fuero Juzgo), por meio da promulgação da Lei das Sete Partidas, no século XIII, e se expandiu com o Ordenamento de Alcalá (coleção de 58 leis promulgadas pelos tribunais de Alfonso XI em Alcalá de Henares em 1348), até que, durante o reinado dos Reis Católicos, atingiu plena vigência. (PRADO, 2005, p. 144)
Importante notar que na Espanha a instituição católica, junto com a justiça comum, criou o tribunal religioso chamado Santo Ofício, Indiscutivelmente o mais cruel e violento período da Inquisição, destacou-se como cenário de inúmeras atrocidades.
Geraldo Prado (2005) diz:
De se notar que na Espanha católica instaurou-se, ao lado da justiça comum, o tribunal religioso denominado Santo Ofício, tido indiscutivelmente como o mais cruel e violento da época da Inquisição, com a qual muitas vezes é confundido como se fosse seu exemplo mais perfeito e difundido. O Santo Ofício alcançou a América Espanhola e só foi abolido definitivamente, enquanto tribunal de inquisição, em 1834. (PRADO, 2005, p. 144)
A Espanha foi o país onde a Inquisição foi mais sentida pela população. Foi lá que o Tribunal do Santo Ofício se consolidou como um dos mais temidos de toda a Europa.
Na Alemanha, dentro da jurisdição do Sacro Império Romano-Germânico, após a adoção do Direito Romano e a criação do Tribunal de Câmara Imperial em 1495, surgiu a necessidade de um direito imperial unificado. Como resultado, foram promulgadas a Constitutio Criminalis Bambergensis em 1507 e, posteriormente, a Constitutio Criminalis Carolina em 1532, que conseguiu abranger praticamente todos os territórios do Império. (PRADO, 2005, p. 144)
A França também atualizou o sistema inquisitório, especialmente a partir da Ordenação de 1254, promulgada por Luís IX, que foi fortemente influenciada pelo Direito Romano-Canônico. Essa ordenação prévia à investigação de crimes de ofício e à imposição da jurisdição real em todo o território. Outras ordenações desenvolveram-se para a sistematização da Inquisição na França, como a Ordenação Prévia de 1535 e a Ordenação Criminal de 1670, destacando-se nesse sistema a investigação automática de infrações penais e a aplicação da jurisdição real em todo o país.
Foucault, ao analisar esse sistema processual, revela que:
Todo processo criminal, até a sentença permanecia secreto: ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo se desenrola sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. (FOUCAULT, 2021, p. 38)
No modelo inquisitivo, o processo criminal pode ser iniciado pelo próprio juiz, sem a necessidade de uma acusação formal por parte de um órgão público ou da vítima. O juiz inquisidor, nesse contexto, possuía amplos poderes para conduzir a colheita de provas, tanto durante a investigação quanto no decorrer do processo penal, independentemente de comissões da defesa ou da acusação. Toda a gestão das provas foram feitas, portanto, sob o controle desse magistrado, que, com base nas evidências e não que a lei determinava, poderia chegar à conclusão que julgasse correta.
Essa concentração de poderes nas mãos de um único indivíduo certamente compromete sua imparcialidade. Quando o juiz atua também como acusador, ele se vê psicologicamente envolvido com o desfecho da causa, o que afeta sua objetividade e neutralidade no julgamento. Nesse sistema, o contraditório não tem espaço, já que a ausência de uma clara separação entre acusação e defesa inviabiliza qualquer forma de oposição entre as partes. Além disso, o acusado poderia ficar preso preventivamente e incomunicável.
O sistema inquisitorial operava com a finalidade de que a busca por provas fosse específica para a observação completa dos fatos, descobrindo a verdade plena. Acreditava-se que seria possível alcançar uma verdade real e absoluta, o que justificava uma atividade probatória extensa, tanto em relação ao objeto do processo quanto aos métodos utilizados para desvendá-la. Com seus amplos poderes de instrução, o juiz tinha autonomia para conduzir uma investigação minuciosa sobre o fato criminoso.
Aury Lopes Jr. ensina:
da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu. (LOPES JR., 2019, p. 46)
3.3. Sistema Acusatório
Diferente do sistema inquisitório, no sistema acusatório que também inicia a jurisdição na fase investigativa e sob a autoridade de um magistrado, a acusação fica a cargo de outro orgão (Ministério Público), não do juiz, como acontece no outro sistema. E é essa uma caracteristida fundamentalmente essencial para o processo.
Segundo Aury Lopes Jr., o sistema processual acusatório possui as seguintes características:
Clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; A iniciativa probatória deve ser das partes; Mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; tratamento igualitário das partes; procesimento é em regra oral; plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); contraditório e possibilidade de resistência; ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; e Possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição. (LOPES JR., 2019, p. 47)
Percebe-se aqui diferenças consideráveis quanto a maneira de atuação do magistrado frente a fase pré-processual vista no modelo inquisitivo. Entre as principais, se destaca a imparcialidade do juiz, reflexo da iniciativa probatória, que no modelo inquisitivo pesa na mão do juiz inquisidor, enquanto no modelo acusatório permanece na mão do órgão acusador; A inexistência de contraditório, que no acusatório é preceito fundamental de garantia ao investigado; e a desigualdade de armas.
Segundo Geraldo Prado, o sistema acusatório moderno assegura a imparcialidade do juiz sem prejuízo do caráter publicístico do processo penal. Essa imparcialidade é fundamental, pois garante que o juiz não se envolva diretamente na coleta de provas, preservando sua posição de julgado neutro. Além disso, Prado aponta que o sistema acusatório é uma escolha constitucional, ou seja, está alinhado com os princípios democráticos de um Estado de Direito, onde os direitos fundamentais dos acusados são respeitados e as funções processuais são bem definidas. (PRADO, 2005, p. 249).
Outro aspecto relevante no sistema acusatório é a presunção de inocência.. No modelo acusatório, o réu é considerado inocente até que se prove o contrário, reforçando assim a imparcialidade do juiz no momento do julgamento, uma vez que cabe ao acusador o ônus da prova. Esse princípio é um reflexo dos direitos fundamentais e da proteção ao indivíduo contra o abuso do poder estatal. Como observa Lopes Jr., “a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória.” (LOPES JR., 2019, p. 71)
A atuação do juiz no sistema acusatório também é limitada em termos de iniciativa probatória. Diferentemente do sistema inquisitorial, onde o juiz pode ordenar diligências e busca de provas, no acusatório, ele age somente com base nas provas apresentadas pelas partes. Esse modelo é defendido por Prado ao afirmar que:
“a legitimidade da condenação e a validade jurídica da sentença dependem da correspondência entre aquilo que afirma o juiz e as provas lícitas produzidas no curso do processo.” (PRADO, 2005, p. 73)
Conforme ensina Luigi Ferrajoli, o sistema de acusação é caracterizado pela posição imparcial do juiz, que se mantém rigorosamente separado das partes, enquanto o processo se configura como um confronto entre acusação e defesa em condições de igualdade. Nesse sistema, a responsabilidade pela prova cabe à acusação, e o desenvolvimento do procedimento ocorre por meio de um debate contraditório, oral e público, no qual o magistrado decide conforme sua verdade livre. (FERRAJOLI, 2002, p. 589)
No sistema acusatório, a divisão entre as funções de acusar e julgar visa impedir que o juiz participe diretamente da formulação ou sustentação da acusação. Dessa forma, cabe ao órgão investigador, e não ao magistrado, a tarefa de averiguar a materialidade do crime e identificar o possível autor, orientando a acusação sem a intervenção do juiz. Essa separação permite que a investigação se desenvolva de forma autônoma, sendo o investigador que se compromete com os termos da acusação, com objetividade e sem influências externas.
É importante acentuar que, “uma das consequências diretas do modelo acusatório, manifestada na fase investigativa é o destaque das funções do Ministério Público e sua participação na fase preparatória, na medida em que o coloca como destinatário das investigações e controlador externo da atividade policial, impossibilitando a construção de uma estrutura próxima aos “juizados de instrução”.” (MAIER, AMBOS e WOISCHNIK, 2000, p. 146)
Durante a fase inicial da perseguição penal, o sistema acusatório estabelece que a investigação deve ser conduzida por uma autoridade separada do juiz, o que permanece neutro e apenas garante a legalidade das etapas investigativas quando necessário. Esse papel contido do juiz, que só é chamado a decidir sobre questões específicas quando solicitado, é uma maneira de preservar sua imparcialidade para o julgamento propriamente dito aqui.
Além disso, há situações em que o juiz é acionado para autorizar certas medidas que envolvem a restrição de direitos, como prisões cautelares, bloqueios de bens, interceptações telefônicas e mandatos de busca. Nesses casos, o juiz atua como garantidor dos direitos processuais, protegendo o investigado de eventuais abusos que possam ocorrer durante uma investigação.
Assim, o sistema acusatório promove um modelo em que o juiz garante justiça e imparcialidade ao longo de todo o processo penal, intervindo apenas quando necessário para que a investigação e a perseguição penal respeitem as garantias e direitos fundamentais de todos os envolvidos.
3.4. Sistema Misto
O sistema processual penal misto é uma estrutura jurídica que combina elementos tanto do sistema acusatório quanto do sistema inquisitório, buscando equilibrar garantias de direitos e eficiência processual. Este sistema é caracterizado pela coexistência de fases distintas no processo penal, geralmente divididas em uma fase investigativa preliminar e uma fase de julgamento propriamente dita. Segundo Eugênio Florian, o sistema misto teve origem e sua primeira aplicação na França. (FLORIAN, 1933, p. 72)
Com o Código Napoleônico - Code d’instruction criminelle - (1808), a ideia de um sistema processual que mescle características do sistema processual acusatório com sistema processual inquisitório surge com a proposta de uma “divisão do processo em duas fases: fase pré-processual e fase processual, sendo a primeira de caráter inquisitório e a segunda acusatória.” (LOPES JR., 2019, p. 49)
Lopes Jr. continua:
lugar-comum na doutrina processual penal a classificação de “sistema misto”, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correspondência com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter “misto”. (LOPES JR., 2019, p 50)
Diferente do sistema acusatório, onde a investigação e o julgamento são separados com clareza e a figura do juiz é estritamente neutra, o sistema misto permite uma maior flexibilidade na fase investigativa. No sistema acusatório, cabe às partes a responsabilidade exclusiva de produzir as provas, enquanto no sistema misto o juiz pode autorizar ou até solicitar a produção de algumas provas. Esse modelo híbrido, portanto, procura assegurar que as provas sejam coletadas com eficácia, mas sem comprometer o princípio da imparcialidade judicial no julgamento.
Frisa-se aqui que na fase inicial, o sistema permite que as investigações sejam conduzidas de maneira semelhante ao modelo inquisitório, com uma participação ativa do juiz ou de autoridades na coleta de provas e na condução do inquérito.
Após a fase de investigação, o sistema misto transita para uma fase processual de julgamento, onde prevalecem os princípios do sistema acusatório, que busca garantir um processo público, imparcial e com contraditório. Nessa fase, o juiz assume um papel de neutralidade, enquanto a acusação e a defesa apresentam suas provas e argumentos. A divisão entre a fase investigativa e a fase judicial permite que o sistema misto alie a eficiência de uma investigação ativa à imparcialidade necessária no julgamento.
O problema aqui é que a função do juiz no sistema processual penal misto é dupla. Durante a investigação, ele atua de forma mais interventiva, autorizando medidas cautelares e garantindo a legalidade das provas. No julgamento, contudo, o juiz assume as características do sistema acusatório, devendo se abster de qualquer influência no conflito entre acusação e defesa, preservando assim, a imparcialidade. Essa mudança de postura é uma das características centrais do sistema misto, que busca a justa aplicação do direito penal e o respeito às garantias do devido processo.
Podemos observar que esse modelo busca unir a flexibilidade investigativa do sistema inquisitório à imparcialidade garantida pelo sistema acusatório na fase de julgamento. Conforme mencionado por Aury Lopes Jr., no sistema misto, a "divisão do processo em duas fases possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter “misto”.”(LOPES JR., 2019, p.50)
Na fase investigativa, o juiz exerce um papel cuidadosamente restrito às garantias processuais, atuando apenas para proteger os direitos fundamentais, sem intervir diretamente nas funções de acusação ou defesa. Esse cuidado é crucial para que, na fase de julgamento, o processo ocorra de forma pública e assegure o contraditório e a ampla defesa.
O sistema misto assim, em sua essência, tenta buscar harmonizar eficiência e justiça. Dessa forma, permite que o juiz, na fase inicial, fiscalize a legalidade da coleta de provas, e na faze processual propriamente dita, se torne o julgador, mas busque não comprometer sua imparcialidade. Esse modelo visa, em sua teoria, modernizar o processo penal, ajustando-o aos princípios de um Estado Democrático de Direito, que preza por um equilíbrio justo entre uma investigação ativa e um julgamento imparcial.