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Dignidade da pessoa humana na filosofia moral de Kant

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11/05/2008 às 00:00
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O término desta investigação é o momento mais oportuno para se reforçar a escolha de uma análise moral do princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto já se têm em mente os pressupostos conceituais e uma idéia geral desse princípio na visão de Kant. Como foi dito anteriormente, o respeito à humanidade origina-se na própria razão, sendo somente por motivos de efetivação prática positivado juridicamente. Dessa maneira, considera-se adequada a busca de Kant, nos mais profundos compartimentos da razão pura, pelos fundamentos da moralidade, a qual, conquanto se mantenha sempre diante dos olhos e sirva como padrão dos juízos de todos os seres racionais, conserva-se, em grande parte, desconhecida. O filósofo alemão procurou entender o que seria aquela lei moral dentro de todos os seres racionais que, a todo momento, diz "isso é correto" ou "isso é incorreto", servindo como uma bússola no julgamento de todas as ações. Para a modernidade, o avanço promovido pela concepção universalista da filosofia prática kantiana é bastante impressivo, sobretudo quando se preconiza fielmente a unidade e a dignidade de todos os seres humanos, independentemente da cor da sua pele ou do tipo e do grau civilizacional das suas sociedades.

É preciso ressaltar que a presente exposição não teve qualquer intuito de exaurir as conseqüências da filosofia moral de Kant no que se refere ao valor pessoal do homem. A finalidade foi tão-somente buscar esclarecer, a partir desse autor, o conteúdo e o valor do princípio da dignidade da pessoa humana, para evitar, com isso, a sua utilização incoerente, em particular pelos operadores do Direito. No âmbito jurídico, é certo afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana é tão importante quanto ignoto para aqueles que mais necessitam dominá-lo. Se esta pesquisa pôde, de algum modo, iluminar o significado e o conteúdo desse princípio, a sua validade e o seu objetivo estarão firmados.

Reitera-se, com Kant, que se alguma coisa pode ter, em sua existência, ou seja, em si mesma, um valor absoluto, tal coisa é o homem ou, de maneira mais geral, todo o ser racional. Esse existe não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, mas, pelo contrário: em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo quanto nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim.


5 REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. Tradução de Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: UNISINOS, 2000.

COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4 ed. São Paulo: RCS, 2005.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 ed. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Porto: Porto, 1995.

______. Crítica da razão prática. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001.

______. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola, 1993a.

______. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993b.

SOROMENHO-MARQUES, Viriato. As tarefas da universalidade. In: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Porto: Porto, 1995, p. 9-19.


Notas

01 "A era moderna não coincide com o mundo moderno. Cientificamente, a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar do século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas" (ARENDT, 2005:13-14).

02 "O mais relevante é que elas [as leituras de Kant] nos dão uma pálida imagem do poder e da vitalidade inspiradora do pensamento de Kant, e em particular das teses éticas apresentadas na Fundamentação, seja no plano institucional, como foi o caso da fundação da Sociedade das Nações Unidas, respectivamente após cada um dos dois conflitos mundiais deste século, seja na renovação do debate político contemporâneo – como poderemos confirmar através das obras de J. Rawls, K-O-Apel, J. Habermas, ou, numa outra direção de pensamento, Hans Jonas" (SOROMENHO-MARQUES, 1995:18-19).

03 O trecho a seguir bem revela a preocupação de Kant com a pureza da moralidade: "Tudo, portanto, o que é empírico é, como acrescento ao princípio da moralidade, não só inútil, mas também altamente prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer. Todas as prevenções serão poucas contra este desleixo ou mesmo esta vil maneira de pensar, que leva a buscar o princípio da conduta em motivos e leis empíricas; pois a razão humana é propensa a descansar das suas fadigas neste travesseiro e, no sonho de doces ilusões (que lhe fazem abraçar uma nuvem em vez de Juno), a pôr em lugar do filho legítimo da moralidade um bastardo composto de membros da mais variada proveniência, que se parece com tudo o que nele se queira ver, só não se parece com a virtude aos olhos de quem um dia a tenha visto na sua verdadeira figura" (KANT, 1995:63).

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04 Chama-se inclinação à dependência em que a faculdade de desejar humana está em face do mundo sensível.

05 Quando não especificadas, entendam-se as palavras "lei" e "dever" respectivamente como "lei moral" e "dever moral".

06 "As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, no fundo, apenas outras tantas fórmulas dessa mesma lei, cada uma das quais reúne em si, por si mesma, as outras duas" (KANT, 1995:73).

07 Para ele, a universalidade é a mais segura das três para o juízo moral: "é melhor, no juízo moral, proceder sempre segundo o método rigoroso e basear-se sempre na fórmula universal do imperativo categórico" (KANT, 1995:73-74).

08 Conforme Kant, nunca se poderá provar que uma ação foi movida unicamente pelo respeito à lei, ou seja, por dever. No máximo pode-se afirmar que ela foi conforme ao dever. Nesse sentido, diz ele que "acontece, por vezes, na verdade, que, apesar do mais agudo exame de consciência, não possamos encontrar nada, fora do motivo moral do dever, que pudesse ser suficientemente forte para nos impelir a tal ou tal boa ação ou a tal grande sacrifício. Mas daqui não se pode concluir com segurança que não tenha sido um impulso secreto do amor-próprio, oculto sob a simples capa daquela idéia, a verdadeira causa determinante da vontade. Gostamos de lisonjear-nos então com um móbil mais nobre, que falsamente nos arrogamos; mas, em realidade, mesmo pelo exame mais esforçado, nunca poderemos penetrar completamente até aos móbiles secretos dos nossos ato, porque, quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que se não vêem" (KANT, 1995:46).

09 "Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer)" (KANT, 1995:77).

10 Embora no pensamento de Kant já exista a idéia segundo a qual o Direito complementa a moral, subjaz nele a idéia platônica de que aquele é subordinado a esta. Para Habermas, tal visão é inadequada ao nosso tempo pós-metafísico, sustentando este filósofo, com prudência, a autonomia, a complementaridade e a co-originalidade de cada um desses saberes.

11 O sentimento moral, para Kant, não é o critério para o juízo moral, mas antes, o efeito subjetivo que a lei exerce sobre a vontade humana. Só a razão, como se viu, pode fornecer os princípios objetivos da ação moral (cf. KANT, 2001:92; 1995:79).

12 É importante transcrever o ensinamento de Kant (1974:13-16) a respeito desse tema: "o que nos impele necessariamente a ultrapassar os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado, que a razão nas coisas em si mesmas exige necessariamente e com todo o direito para todo o condicionado a fim de concluir a série de condições. Admitindo-se que o nosso conhecimento de experiência se regule pelos objetos como coisas em si mesmas, ver-se-á que o incondicionado não pode ser pensado sem contradição; admitindo-se, em compensação, que a nossa representação das coisas como nos são dadas se regule não por estas como coisas em si mesmas, mas antes estes objetos como fenômenos se regulem pelo nosso modo de representação, ver-se-á que a contradição desaparece; e que, conseqüentemente, o incondicionado não deve ser encontrado em coisas enquanto as conhecemos (nos são dadas), mas sim nelas enquanto não as conhecemos, como coisas em si mesmas". [...] "Na parte analítica da Critica, prova-se que espaço e tempo são apenas formas de intuição sensível, portanto, somente condições da existência das coisas como fenômenos; que nós, além disso, não possuímos nenhum conceito do entendimento e, portanto, nenhum elemento para o conhecimento das coisas, a menos que a esses conceitos possa ser dada uma intuição correspondente; que, por conseguinte, não podemos conhecer nenhum objeto como coisa em si mesma, mas somente na medida em que for objeto da intuição sensível, isto é, como fenômeno; donde se segue com certeza a limitação de todo o possível conhecimento especulativo da razão aos simples objetos da experiência. Todavia, note-se bem, será sempre preciso fazer esta ressalva, de que, se não podemos conhecer estes objetos como coisas em si mesmas, devemos pelo menos pode pensá-los. Do contrário, seguir-se-ia a absurda proposição de que haveria fenômeno sem que nele aparecesse algo".

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Sobre o autor
Bruno Cunha Weyne

Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Autor do livro "O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant" (Saraiva, 2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEYNE, Bruno Cunha. Dignidade da pessoa humana na filosofia moral de Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1775, 11 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11254. Acesso em: 19 abr. 2024.

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