3 OS REFLEXOS DA MORAL SOCIAL NAS TRATATIVAS DA SEXUALIDADE FEMININA
3.1 Sexualidade e dominação
A repressão ao crime de estupro encontra amparo desde os primórdios com as mais variadas formas de conter o crime já empregadas. Nesse sentido, foi apresentado o papel de inferioridade que era dado às mulheres para justificar, através de uma análise lógica, que elas eram e ainda são consideradas as principais vítimas de estupros.
Por outro lado, não se pode limitar esse raciocínio aos contextos históricos que as mulheres foram inseridas. As discussões envolvendo gênero também devem ser trazidas à baila para reforçar que o sentimento de domínio masculino representa um gravame para a sociedade e que essas influências devem ser rebatidas, como objetivou o Movimento Feminista.
A análise dos discursos legais de combate ao crime de estupro, portanto, não necessita ser voltada somente para o aspecto de tipificação da lei penal, pois suas construções partem de variados cenários que não podem ser ignorados. Isso significa que não se deve compreender que o ordenamento jurídico evolui por si, ou seja, não levando em consideração os fatos que ocorrem na sociedade, mas que as leituras normativas presentes no crime de estupro são frutos de entendimentos, descontinuidades e continuidades em relação ao crime e ao corpo, como ocorre no crime de estupro.
A justificativa para trazer à tela os aspectos religiosos envolvendo a sexualidade feminina repousa na maneira de como esses discursos eram pulverizados no seio social. Com isso em mente, poder-se-á entender as fases históricas da legislação nas tratativas do crime de estupro.
Não se pode defender que a religião guie processos de evolução legal ou que esses processos partam dos entendimentos religiosos. Existe a ideia de que o Estado seja laico por disposição do art. 5°, inciso VI, da CF de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
O que se tenta colocar é que a Igreja, ao defender padrões de comportamento, atuava como agente propagador de dominação sexual e moral feminina:
A sexualidade permeia a existência do ser humano e as teorias sobre os papéis sócio sexuais de cada um, sendo a moral sexual um fato da cultura inerente a toda sociedade. A história da mulher brasileira está relacionada com a busca pelo controle dessa mulher, tanto pelo Estado, como pela Igreja, e o controle se dá, principalmente, através de limitações à sexualidade (KUBOTA, 2014, p. 22).
O sentimento de dominação da sexualidade feminina e sua relação com os discursos religiosos é também pontuado por Emanuel Araújo (2008, p. 46) como “[…] o fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era superior, e, portanto cabia a ele exercer a autoridade”. O entendimento religioso era fruto uma analogia: o homem seria a cabeça, o centro, da mulher, assim como Cristo é a cabeça da Igreja.
Com tais colocações, pode-se inferir qual seria o papel sexual da mulher: o reprodutivo, que se dava a partir do casamento:
Finalmente, com prazer ou sem prazer, com paixão ou sem paixão, a menina tornava-se mãe, e mãe honrada, criada na casa dos pais, casada na igreja. Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher. Doravante, ela se afasta de Eva e aproxima-se de Maria, a mulher que pariu virgem o salvador do mundo (ARAÚJO, 2008, p. 52).
Essa sujeição teria uma função dupla: antes do casamento, a mulher estaria sob a patria potestas (poder, cuidado) de seu pai, devendo obedecê-lo e comportar-se de acordo com a moral e os bons costumes. Após o casamento, ficava sob as determinações do marido. A “fraqueza” da mulher decorreria da impotência do feminino para se sujeitar ao masculino em todos os estágios de sua vida.
Tendo a mulher a necessidade de se submeter aos ditames do poder masculino, a legislação penal passa por regramentos que expressam esse sentimento, uma vez que era o entendimento social da época. Nesse ponto, relembram-se os comandos dados pela legislação civilista, sob a égide do Código Civil de 1916, abordada no segundo capítulo no item 2.1.
Por conta do sentimento de domínio e repressão aos desejos femininos, a lei penal passou por momentos onde há clara sobreposição das vontades masculinas, tornando mais difícil o combate ao crime.
3.2 Evoluções legislativas no crime de estupro
3.2.1 Lei 12.015/19 em busca de paridade normativa nos crimes de estupro
Conforme defendido ao longo deste trabalho, o papel de inferioridade feminina é fruto de uma construção histórica de poder e dominação masculina que se exterioriza desde muito cedo ao ter início nas relações familiares entre pai e filha e que se segue nas relações maritais.
No entanto, no que toca ao crime de estupro, não é percebido que o sentimento de dominação é justificador pleno para as transgressões legais, pois o ato não é aceitável socialmente e cada sociedade ao seu tempo e modo o reprime. É verdade que o ato sexual forçado parte do sentimento de poder, mas no cenário da repressão social e estatal não encontra salvaguarda ampla para eximir o criminoso da responsabilização legal, como nos mostrou os julgados do STJ constantes no primeiro capítulo, item 2.4.
Não se pode duvidar que o sentimento de dominação masculina e os regramentos sociais no campo da moral e da sexualidade feminina são empecilhos diretos no combate estatal do crime de estupro. Como colocado acima, os sentimentos de dominação e o estabelecimento de normas de condutas femininas, ao serem pulverizados na sociedade, constituem condutas e determinações a serem seguidas. Nesse ponto, foi retratada a maneira como a Igreja versava sobre a sexualidade feminina de modo a cristalizar que os sentimentos sociais sobre esta matéria podem ditar a forma das condutas femininas.
Ainda que tardiamente, a lei penal tenta dar tratamento paritário a homens e mulheres, como desejado pela CF de 1988 em seu Art. 5º caput (princípio da igualdade), onde suas nuances e barreiras foram discutidas a respeito da possibilidade, ou não, de verificação material do postulado.
O CPB, instituído em 1940, é, obviamente, anterior a nossa Carta Magna e as tratativas do crime de estupro se seguiram inalteradas até o ano de 2009. A mudança foi tardia, mas não insignificante, pois as modificações realizadas representam um avanço no pensamento legislativo e social.
É oportuno esclarecer que a lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) incluiu o crime de estupro em seu rol normativo (art. 1º I, inciso V) que poderia ser prenúncio de uma ressignificação voluntária do pensamento do legislador em dar tratamento mais severo a crimes altamente lesivos. Porém, a verdade legal deste dispositivo normativo é que a sua formulação atende ao comando constitucional constante no Art. 5°, inciso XLIII. Ainda assim, a lei é benéfica em muitos aspectos e no tocante ao crime de estupro é imprescindível para que o Estado atue de modo mais enérgico e eficiente no combate a tal ilícito.
No que toca a Lei 12.015/09, defende-se o legislador que finalmente rompeu com conceitos distantes dos crimes de estupro. Com o advento da lei, alterou-se o nome do Título VI de "Dos crimes contra os costumes" para "Dos crimes contra a dignidade sexual”, representando uma mudança do objeto jurídico tutelado. Enquanto antes se tutelava a moral e os bons costumes, hoje tutela-se a dignidade sexual que, formalmente, não abriga em seu bojo julgamentos subjetivo de cunho moral e conservador.
Dentre as diversas mudanças inseridas, cabe dar ênfase à nova redação:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (BRASIL. Código Penal de 1940).
Ampliou-se a conduta típica ao serem incorporados elementos do crime de atentado violento ao pudor, (revogado pela Lei 12.015/09), sendo que a violência pode ser dirigida e praticada tanto a mulheres quanto homens. A nova redação legal do crime de estupro acaba aumentando a criminalização dos crimes sexuais, uma vez que abriga uma gama de condutas que se amoldem à expressão "violência libidinosa".
No tocante aos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, nota-se uma particular preocupação legislativa em estabelecer tipos penais específicos, com penas mais graves, justamente pela posição vulnerável desses sujeitos de direito. Com isso, ganham um capítulo especial "Dos crimes sexuais contra vulnerável" (Capítulo II do CPB), no qual o estupro de vulnerável é a resposta punitiva estatal aos atendados ao corpo infantil.
3.2.2 Lei 13.718/18, alterações na ação penal
A Lei 13.718/18 foi criada e promulgada após episódios ocorridos em transportes públicos de cunho nacional nos quais homens se valiam da aglomeração de pessoas no interior de ônibus e metrôs para “encoxar”, “apalpar” e até “ejacular” em mulheres.
Um desses casos teve repercussão nacional e ocorreu no dia 13 de julho de 2017. Na ocasião, uma mulher que estava utilizando um transporte público na cidade de São Paulo começou a ser assediada por um homem que se encontrava ao seu lado. Durante o trajeto, ela veio a adormecer e, quando acordou, percebeu sua roupa estava suja de sêmen e notou que o homem que outrora estava importunando-a descia do vagão também com a roupa suja3.
Na época dos fatos, tais condutas poderiam ser enquadradas na modalidade do crime de estupro (em decorrência do ato libidinoso) ou na contravenção de Importunação Ofensiva ao Pudor (infração de menor potencial ofensivo), o que gerou grande discussão legal e social.
O magistrado que apreciou o caso entendeu que não houve crime de estupro, mas sim uma contravenção penal. Esse entendimento começou a gerar grande desconforto social por conta do aumento exponencial de ocorrências delitivas ocorridas no país divulgados pela mídia, como ocorreu com o autor do caso brevemente narrado.
A decisão proferida pelo magistrado abriu discussões se o fato poderia ser enquadrado no crime de estupro ou se fora mera contravenção penal. Após um ano de sua ocorrência, restou comprovado que o juiz agiu corretamente dentro da estrita legalidade, tendo em vista que a lei vigente época dos fatos não tipificava o ato do homem como estupro.
Em meio a esse cenário adveio ao Estado que as pessoas, em especial mulheres, estavam sendo vítimas constantes de atos atentatórios contra a honra. Tornava-se urgente, então, agravar a pena ou alterar o procedimento formal para trazer uma sensação punitiva à sociedade em decorrência dos atos praticados. Diante disso, restou aos legisladores optarem pela alteração legislativa desses dispositivos, culminando na Lei 13.718/18.
A Senadora Vanessa Grazziotin do PCdoB/AM havia apresentado no ano de 2016 o Projeto de Lei Nº 5452/2016 que tinha como escopo incluir ao texto do CPB os artigos 218-C e 225-A para tipificar como o crime a conduta de divulgar cenas de estupros. Além disso, o projeto aumentaria a pena para o crime de estupro cometido por duas ou mais pessoas, visto que naquela época essas condutas tiveram grande repercussão.
Cita-se como exemplo o caso tratado Longh e Ferreira (2018) ocorrido contra uma jovem de 16 anos de idade que foi violentada sexualmente por pelo menos 30 homens na Zona Leste do estado do Rio de Janeiro, onde houve a divulgação de fotos e vídeos dos atos. Para os autores citados, o caso não teria gerado tanta repercussão se a vítima tivesse sido violentada por um e não por 33 homens. Ademais, expõe a ideia da factualidade, ou seja, que os estupros no Brasil realmente ocorrem: “O estupro em questão deixa clara a ideia da factualidade, ao ter gerado visibilidade na mídia nacional, por meio de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão e portais de notícias”. Longh e Ferreira (2018 p. 87)
Não somente pela mídia houve repercussão ao crime. A OAB Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ), por intermédio da Comissão Permanente OAB Mulher, divulgaram nota de repúdio ao estupro coletivo cometido contra a adolescente. A nota sustenta que os criminosos perpetuaram a humilhação da vítima ao expor as cenas nas redes sociais:
A Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Comissão Permanente OAB Mulher, vem a público expressar seu mais profundo repúdio ao ato de barbárie cometido contra a adolescente moradora de Santa Cruz. Um estupro coletivo, com requintes de crueldade, no qual vários indivíduos perpetuaram a humilhação expondo, nas redes sociais, a dor da vítima. Os atos repulsivos demonstram, lamentavelmente, a cultura machista que ainda existe, em pleno Século 21. Importante ressaltar que cada frase machista, cada piada sexista, cada propaganda que torna a mulher um objeto sexual devem ser combatidas diariamente, sob o risco de se tornarem potenciais incentivadoras de comportamentos perversos. E, igualmente, lembrar que, se esse crime chegou ao conhecimento público, tantos outros permanecem ocultos, sem repercussão. Precisamos lutar contra a violência em cada lar, em cada comunidade, em cada bairro. A revolta e a mobilização são claros indícios de que a indignação social se faz fortemente presente. A OAB/RJ crê na participação de todos, independentemente do gênero, nesta luta. A Seccional vem oferecer assistência jurídica e se une à população no apoio incondicional à família, na expectativa de ampla recuperação da vítima, na fiscalização da ação policial, e, sobretudo, na confiança de que a lei – base constitucional balizadora das ações da sociedade – irá prevalecer na punição aos responsáveis (OAB-RJ, grifo nosso).
Apesar de o objetivo inicial da legisladora e Senadora Federal Vanessa Grazziotin, autora do projeto citado, ter sido o de ampliar o conceito de estupro para as condutas realizadas sem o consentimento da vítima, mesmo que não seja empregado para tal violência física ou grave ameaça (que é do tipo penal do artigo 213 do CPB) para os casos em que houvesse a divulgação das cenas do crime, tornou-se imprescindível manter a ideia de que o abuso do corpo da mulher não depende somente de violência ou grave ameaça, mas que ocorre sempre que não há o consentimento para a prática do ato libidinoso que a envolva.
O Projeto de Lei da legisladora foi transformado na Lei 13.718/18 e alterou o CPB com o intuito de tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cenas de estupro (Arts. 215-A e 216-B do CPB, respectivamente). A lei ora citada possui a finalidade de diminuir tais crimes contra a moral, o psicológico e o corpo mulher, tipificando crimes que antes eram somente contravenções penais em tipificações mais severas. Ocorreu também a alteração da ação penal pública dos crimes sexuais, de ação penal pública condicionada à representação, para a ação penal pública incondicionada a partir da data de sua promulgação, que ocorreu no dia 24 de setembro de 2018.
No que toca à alteração da natureza da ação penal, passando a ser pública incondicionada à representação, ou seja, não mais somente a vítima pode dar início à persecução penal, defende-se que essa alteração é extremamente válida, pois muitas vezes a vítima não tem coragem de denunciar seu agressor.
Partindo disto, é necessário trazer à luz considerações a respeito da modificação da ação penal do crime de estupro. No entanto, serão considerações breves, pois não constituem objetivo basilar deste trabalho. Mas suas tratativas se fazem necessárias.
Nesse ponto, é necessário relembrar o aspecto de direito material, dos fatos, da lei em comento, já que ao se exigir ou deixar de exigir a representação para o início da ação penal pública, se sabe que de todo modo ocorrerá à contagem de extinção do prazo de punibilidade como se estabelece as hipóteses do art. 107, inciso IV do CPB, por exemplo.
Logo, apesar de a inovação ser benéfica, não se deve entender que a denúncia ao crime de estupro pode ser realizada tardiamente. É um crime grave, com várias linhas de análise e deve ser denunciado. Não defendemos que a vítima seja compelida a denunciar o quanto antes, o que seria o certo, mas não o humanamente exigido sempre. Já foi defendido que o crime de estupro altera o psicológico da vítima, o sentimento de culpa, além da luta contra a ideia do poder masculino. Enfim, não se exige isso, mas frisa-se que a lesada precisa de meios para denunciar, bem como quem tiver qualidade para sustentar os fatos diante da natureza pública da ação.
Respeitosamente, cita-se o brocardo jurídico latino “Dormientibus non sucurrit ius”, que em tradução livre seria “O Direito não socorre aos que dormem”. A colocação é para que se tenha fixo o ideal de combate ao crime de estupro. Mulheres são violadas, vidas são mudadas, as consequências são, portanto, nefastas. O legislador tenta atuar para reprimir o crime, mas essa não é uma luta do legislador, somente, é uma luta coletiva.
O STF, como órgão supremo da CF e “guardião” da nossa Carta Magna, já possuía entendimento consagrado pela Súmula 608 a respeito da competência penal ser incondicionada à representação nos crimes de estupro com o emprego de violência real.
Nesse sentido, vejamos uma decisão do STJ a esse respeito:
Ementa: Habeas corpus. Penal. Estupro com lesões corporais leves. Ação Penal Pública Incondicionada. Súmula nº 608/STF. Delito considerado hediondo. Impossibilidade de progressão de regime. “O estupro absorve as lesões corporais leves decorrentes do constrangimento, ou da conjunção carnal, não havendo, pois, como separar estas daquele, para se exigir a representação prevista no art. 88, da Lei nº 9.099/1995.”2 Vigência da Súmula nº 608, do STF. Consoante entendimento recentemente adotado pelo Col. STF, secundado por julgados desta Corte, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando cometidos em sua forma simples ou com violência presumida, enquadram-se na definição legal de crimes hediondos (art. 1º da Lei nº 8.072/1990), recebendo essa qualificação ainda quando deles não resulte lesão corporal de natureza grave ou morte da vítima. Hipótese dos autos em que incide a regra proibitiva da progressão de regime inserta no § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/1990. Ordem denegada. (BRASIL. STJ- HC:21423 SP 2002/0036067-0, Relator Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Data de Julgamento: 25/06/2002, T5 – QUINTA TURMA , Publicado no DJ em 26/08/2002 p.279).
Tal entendimento encontrava amparo no disposto no Art. 101. do CPB, segundo o qual, em caso de crime complexo, se uma das elementares ou circunstâncias do tipo penal constituir crime que por si só, seja de ação penal pública, todo o delito complexo também o será.
Considerando que o delito de lesões corporais é de ação penal pública, caso o crime estupro seja praticado com violência física, deveria ser procedido mediante denúncia do Ministério Público.
Também se confrontava o entendimento pelo fato de o art. 101. ser uma norma geral e o art. 225, ambos do CPB, uma norma especial, de modo que, pelo princípio geral de hermenêutica, a regra especial afastaria a aplicação da regra geral. Todavia, considerando que se tratava de uma decisão do STF, tal entendimento sempre foi respeitado pelos demais órgãos judiciais, como fez o STJ. Considerando que se tratava de uma decisão do STF, tal entendimento sempre foi respeitado pelos demais órgãos judiciais, como fez o STJ.
É importante colocar que o estudo a respeito da ação penal pública incondicionada à representação nos crimes de estupro não se resume nas breves análises tecidas. Há muitos fatores legais a serem arguidos para melhor compreensão da matéria. No entanto, o aprofundamento de tais fatores não constitui finalidade precípua deste trabalho e discorrer pormenorizadamente sobre ela fugiria ao tema.
Mas por conta de tantas nuances, é fundamental analisar o crime de estupro a partir de vários aspectos, como já foi feito. Análises legais são extremamente úteis, porém é preciso entender como a ciência do Direito pode se valer de outras áreas para se chegar a um entendimento concatenado da noção social e moral envolvendo o crime de estupro.
3.3 A Filosofia Jurídica em comento para o entendimento do crime de estupro
Unir o entendimento a respeito do crime de estupro a partir de uma análise moral e filosófica pode se apresentar, de intrépido, como algo distante. Este crime não é somente um texto tipificado normativamente, ele envolve vários aspectos de entendimento que somente a lei penal não proporcionaria – como comprovado ao longo deste trabalho.
No entanto, há de se colocar que o conhecimento científico envolve desde sua essência a junção de várias classes do saber. A ciência do Direito, por ser uma ciência social, não poderia se furtar de conhecer e entender as variantes que levam um crime a serem considerados como tal, isto é, o Direito não tipifica normas por mera oportunidade e cada crime, cada norma, cada enunciado partem de um fato social:
A ciência do Direito está nas ciências sociais e assim ocupa enorme espaço. Não se deve desconhecer a sua importância e o seu alcance nas relações sociais que se sucedem a todo instante. No fato social estão muitos elementos, que são objetos de estudo, de exame, de várias ciências e entre eles está o de repercussão jurídica, sob análise da Ciência do Direito, na sua avaliação completa. No fato social sob exame da Ciência do Direito poderão ser encontrados muitos elementos. Para isso, precisam ser esclarecidos: onde aconteceu, sob o comando do comportamento humano positivo ou negativo, sob que influência de conteúdo sociológico, psicológico, biológico, histórico, econômico e político (Silva, 2012, p. 43).
Nesse sentido, é oportuno esclarecer o que seria “ciência”. Qual o significado dessa palavra que imprime na discussão teórica fatos de relevância social, mas que consegue unir em meio a tal debate um caráter teórico? Um único termo explica a formação de estudos a respeito de variadas áreas, a partir de fatos sociais?
Não se deseja fechar tais indagações a um simples conceito, mas é interessante explicar tal acepção, já que este trabalho une “várias ciências” em sua confecção. Para tanto, coloca-se o entendimento clássico que é nos dado por Theobaldo Miranda Santos (1958 apud José Carlos Sousa Silva, 2012, p. 13): “A ciência nasceu da curiosidade natural do homem, isto é, da sua necessidade de compreender e explicar as coisas”. Nessa linha, o autor relembra também a afirmação do filósofo Aristóteles: “O espanto é o começo da ciência”.
O espanto com o que acontece, e por qual motivo acontece, é empírico da racionalidade humana. Tal racionalidade voltada à compreensão de um fato geraria, portanto, o início de uma ciência. Para ilustrar, imaginemos um mundo. Daremos a este mundo o nome de “Mundo X”.
No Mundo X, as relações sociais ocorrem tranquilamente, sem o cometimento de nenhuma conduta considerada desviante. Neste mundo, o ato sexual é usado como meio para obtenção de prazer e da reprodução biológica. Um dia, um habitante do mundo X compele uma pessoa a manter relações sexuais e, utilizando de sua força, consegue. Por ser algo nunca antes visto, os demais habitantes do nosso mundo imaginário se perguntam por qual motivo aquilo aconteceu.
Dessa reflexão surgem importantes conclusões: qualquer um poderia ter tido o ânimo de praticar tal conduta, e isso seria socialmente reprovável e esta ação passa a ser entendida como uma forma de violência; o Mundo X não é imune à ocorrência de transgressões e é necessário criar meios para que isso não ocorra novamente. De posse disso, cria-se um código com força normativa e se insere como crime o ato de forçar alguém a manter relações sexuais.
A esse crime, é dado o nome de “estupro”. O crime de estupro no mundo X é resultado de um fato social, do pensar coletivo a seu respeito, do entendimento de que sua ocorrência deve ser repelida e o código normativo é fruto desses pensamentos. O código seria a ciência, a explicação normativa para a transgressão ocorrida.
Por intermédio da ciência é possível conhecer nossa realidade. Theobaldo Miranda Santos (1958 apud José Carlos Sousa Silva, 2012, p.17) informa: “Podemos dizer que a ciência nos permite: a)- compreender e explicar as coisas; b)- prever os fenômenos; c)- agir sobre a natureza”.
O “pensar” é, portanto, a origem de uma ciência. O pensar racional é fruto de uma indagação que se inicia a partir da verificação de um fato, mas que se torna científico e com isso se reveste de relevância. Não à toa que Sócrates é considerado “o patrono da filosofia”. O filósofo era um inquieto questionador dos fenômenos do mundo, como coloca Marilena Chauí (2012):
Sócrates andava pelas ruas de Atenas fazendo perguntas aos atenienses: “O que é isso em que você acredita?”, “O que é isso que você está dizendo?”, “O que é isso que você está fazendo?”. (...). A pergunta “O que é?” era o questionamento sobre a realidade essencial e profunda de uma coisa para além das aparências e contra as aparências. Com essa pergunta Sócrates levava os atenienses a descobrirem a diferença entre parecer e ser, entre mera crença ou opinião e verdade (CHAUÍ 2012, p. 09).
Por outro lado, nem todo pensamento é científico, apesar de o pensamento em busca da verdade, como o almejado por Sócrates, o é. Nesse contexto, a ciência é matéria de destaque na formação e entendimento de fatos que se revestem de relevância social e nos permite compreender a origem, o meio e prever resultados de fatos para se chegar à realidade das coisas.
O espanto diante de um fato e o questionamento a seu respeito são atitudes de cunho filosófico. Nos primórdios, ao se entender necessário tutelar a dignidade sexual das mulheres, como no livro bíblico de Deuteronômio, fez-se filosofia. Nosso legislador, ao introduzir a mudança no texto legal do crime de estupro, na formulação da Lei 12.015/09, ao não mais conceber a ideia de um sujeito passivo específico para o crime, também estava imbuído de pensamento filosófico. Mas como? Simples: esses pensamentos são frutos da racionalidade e de uma atitude crítica diante do que já era existente.
Ao longo deste trabalho vimos que o papel de inferioridade, subordinação, dominação e exclusão praticados contra mulheres funcionam como pulverizadores de ações que tendem a reforçar tais pensamentos. Então, por qual motivo salvaguardar suas honras? A resposta é dada pelo abandono de crenças do cotidiano. O abandono a crenças marca o surgimento da filosofia:
A filosofia inicia sua investigação num momento muito preciso: naquele instante em que abandonamos nossas certezas cotidianas e não dispomos de nada para substituí-las ou para preencher a lacuna deixada por elas. Em outras palavras, a filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a realidade histórico social (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando as opiniões estabelecidas disponíveis já não nos podem satisfazer. Ou seja, a filosofia se volta preferencialmente para os momentos de crise no pensamento, na linguagem e na ação, pois é nesses momentos críticos que se manifesta mais claramente a exigência de fundamentação das ideias, dos discursos e das práticas. (...) A filosófica tem especial interesse pelos momentos de crise ou momentos críticos, quando sistemas religiosos, éticos, políticos, científicos e artísticos estabelecidos apresentam contradições internas ou contradizem-se uns aos outros e buscam transformações e mudanças cujo sentido ainda não está claro e precisa de compreensão (Chauí, 2012, p. 19, grifo nosso).
A compreensão das variantes envolvendo o crime de estupro é uma atitude filosófica na medida em que se questiona como o fato acontece, com quem acontece e por quem é cometido – dentre outros fatores. A Filosofia do Direito, enquanto ramo da Filosofia, torna-se basilar para a compreensão completa dos elementos jurídicos. É o que defende o clássico posicionamento de A. Machado Paupério (1980 apud José Carlos do Nascimento, 2012, p.40): “A Filosofia do Direito é o saber supremo e total do Direito, conseguido à luz natural da razão, sobre a ordem dos atos humanos, nas suas relações com o bem comum, fim por excelência da sociedade em que se insere o homem”.
Com isso, é possível reafirmar a aplicação da Filosofia do Direito, ou Jurídica, permite aos estudiosos do Direito encontrar esclarecimentos sobre a realidade vivida e como essa realidade chegou a ser enfrentada pela sociedade. Facilitando o encontro de resultados seguros por se buscar a verdade das coisas, sem a aplicação da Filosofia do Direito, no Direito, não é possível conhecer a essência do próprio elemento jurídico em análise, como defende José Carlos Sousa Silva (2012):
Por intermédio do que lhe oferece a Filosofia, a Ciência do Direito se torna mais abrangente e realística na elaboração do seu próprio conteúdo para a efetivação dos seus sistemas, a que recorrem os seus estudiosos, intérpretes, diante das necessidades impostas pelos fatos sociais complexos ou não. O raciocínio humano fundado no que a Filosofia lhe oferece se torna assim universal e de conteúdo permanente para o que a Ciência do Direito se propõe a melhor conhecer e indicar valores que sempre orientarão na concretização da legítima justiça, objetivando a paz social (SILVA, p. 40).
Buscar entender os fatos é algo tão importante que essa busca imprime no Direito à ocorrência, ou não, de segurança jurídica. É o que nos diz Pontes de Miranda (2000 apud José Carlos Sousa Silva, 2012, p. 64): “Segurança Jurídica: O que é preciso é que vigore determinado sistema jurídico, e haja a convicção de que será aplicado nos casos particulares, pois é isto o que dá a segurança jurídica”. Entender que a aplicação de uma norma se dará em um caso particular compele ao examinador o dever de atentar aos fatos e dessa atenção surgiria a desejada “segurança jurídica”.
Ao se examinar a ocorrência e repercussões existentes no crime de estupro, é oportuno verificar como a norma se moldará ao fato. Estudar o crime de estupro deve envolver a verificação de fatores não contidos no texto legal como as questões de gênero, inexistência material do direito à igualdade, reflexos do patriarcado, o sentimento de culpa das vítimas, o estupro enquanto crime de poder, como o Poder Judiciário tem se portado nos julgamentos deste crime, os aspectos morais e religiosos, avanços legais e demais variantes.
Somente o texto positivado não responde in loco o motivo da presença de tais questões nas tratativas do crime de estupro. Então, a Filosofia Jurídica surge como um meio eficaz, teórico e científico importante nessas análises. Podemos perceber com isso que os ensinamentos filosóficos sempre estiveram presentes neste trabalho, ainda que sutilmente e neste capítulo de forma mais direta. O crime de estupro para seu entendimento interessasse-se em muito pela compreensão voltada a um pensamento filosófico. Não há distanciamento em unir o estudo do crime de estupro a partir de uma análise filosófica, há ciência.
3.4 Rechaço social ao crime de estupro: implicações
Repudiar socialmente o crime de estupro é percebido quando a sociedade, mesmo tendo em seu arcabouço discursos de dominação feminina, entende que a transgressão ao corpo não deve ser tida como “normal”. É importante mencionar que a naturalização a esse tipo de violência é uma problemática real, onde os estereótipos das vítimas ainda são pontuados quando a ocorrência, ou não, do crime é posto para análise.
A ciência do Direito ainda não atua, de maneira geral, nas causas que levam ao cometimento de um crime. Por exemplo, no julgamento do crime de estupro, o órgão julgador pode se furtar de verificar a existência do sentimento de dominação masculina. Nessa linha, defende Pimentel (1998):
É assim, a nosso ver que os operadores do Direito, na sua maioria, captam a realidade, negligenciando a percepção de sua complexa problemática. Protegem-se, dessa maneira, dos riscos do confronto com profundas contradições sociais que permeiam as lides nas quais lhes competem atuar. Priorizam o burocrático em detrimento do existencial. Não há dúvida que encaminhar manifestações e decisões conforme os clichês e lugares comum sociais é muito mais comido e menos arriscado do que ousar criativamente, a partir da elaboração do pensamento sobre percepções agudas da realidade (PIMENTEL, 1998, p. 32)
A explicação para tal fenômeno, como pontualmente assevera Andrade (2006), ocorre pelo fato de o sistema jurídico criminal se tratar de um subsistema de comando social seletivo e desigual, onde o mesmo sistema que julga exerceria seu poder e seu impacto sobre as vítimas:
[…] E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, (...) ao invés de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas ( estupro, atentado violento ao pudor, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual (ANDRADE, 2006, p. 5-6).
Nessa esteira, o rechaço social ao crime de estupro encontra barreiras de melhor atendimento às vítimas, ou seja, ao passo em que a sociedade o repele ao mesmo tempo não aceita lidar diretamente com as causas que o envolvem, como as relações desiguais entre homens e mulheres. As problemáticas existentes no estupro podem ser conceituadas como espécies de tabus sociais por não serem discutidas abertamente. Porém, para que se combata o crime de estupro, é preciso refletir criticamente acerca dos fatos; fugir das temáticas intrínsecas nessa seara não seria a forma correta de combater o crime.
O rechaço, o repúdio e o desejo de ver o ilícito combatido quando não está aliados a discussões que envolvam sua ocorrência não surte efeito. Para além dos discursos de repressão a tal transgressão, é necessário diálogo a respeito de sua prática. Nesse ponto, por qual motivo estupros são cometidos se o rechaço social e desejo de repressão são existentes?
O rechaço social não implica a diminuição de crimes. De acordo com o Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), em 2018 81,8% das vítimas do crime de estupro foram do sexo feminino. Houve ainda um aumento de 4,1% das ocorrências do crime, o que representou o maior patamar já registrado. Na maioria dos casos, as vítimas de estupro tinham menos de 13 anos e 85,5 % dos casos foram cometidos por homens.
Os dados do documento podem ainda não serem conclusivos, diante do baixo índice de notificações:
É de se destacar que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vítima milhares de pessoas anualmente (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 115).
Nessa esteira, não basta à sociedade rechaçar o crime, é preciso meios de controle e de diminuição das taxas, além de uma mobilização institucional de enfrentamento. Isso só se alcançará com a existência de políticas públicas e de diálogos abertos com a sociedade, como pontua outro trecho levantamento:
Os estupros e as demais violências sexuais precisam passar a constituir efetivamente um tema central nas agendas estaduais e nacional de políticas de segurança pública. É preciso atingir um patamar de produção de informações confiáveis para que futuramente possamos almejar discutir a redução dos estupros, como fazemos com outros crimes como roubos e mesmo homicídios. Apesar das alterações legislativas fundamentais, o estupro ainda é cercado por um profundo silêncio institucional. A amplitude inédita das informações publicadas nesta edição do Anuário reflete um esforço de provocar reflexões e de subsidiar políticas capazes de romper com os silêncios (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 119).
O mais difícil em combater o crime de estupro talvez esteja no fato de a maioria dos crimes serem cometidos por quem às vítimas possuem relação próxima, seja com grau parentesco ou de afinidade: “Em relação ao vínculo com o abusador, 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor, entre parentes, companheiros, amigos e outros.” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 119).
Por conseguinte, apesar da baixa notificação dos casos e da dificuldade de enfrentamento, o crime de estupro é um fato social e envolve em sua temática vários aspectos que não devem ser ignorados. O rechaço não é suficiente para que ocorra o seu combate, mas não se pode deixar de reconhecer que a maneira como a sociedade o observa é um dos elementos hábeis para mudanças positivas.
O rechaço social implicaria num distanciamento do que supostamente é tido como inaceitável, do que realmente se pratica. A sociedade clama por mudanças legais, mulheres lutam pelo alcance de direitos, discursos de dominação masculina são debatidos teoricamente, mas nada será suficiente enquanto não houver o enfrentamento institucional do problema.
É preciso refletir criticamente a respeito dos fatos envoltos neste assunto a fim de dar atenção às vítimas e analisar de qual maneira o repúdio ao ilícito é enfrentado por quem o pratica. Receber todo o “peso” dos olhares de repúdio social é uma forma de discutir a temática e de combater a ocorrência de estupros? O estuprador receberia, com isso, uma espécie de bis in idem (dupla punição), ao ser condenado e ao cumprir a pena?
Apesar de não ser função precípua desde trabalho, não analisar a maneira como o crime de estupro é encarado no cárcere não nos permitira analisar a amplitude deste tema. O desejo por refletir a respeito das temáticas envolvendo o crime de estupro para além das tratativas legais é uma análise filosófica. O questionamento e a busca pela verdade são empíricos da Filosofia e não adentrar nos reflexos deste crime na vida do criminoso resultaria em uma violação aos primados da ciência filosófica, razão pela qual, ainda que de maneira breve, verificar seus reflexos na vida do criminoso é importante.
3.5 Estupradores: “dupla” punição?
É firme a necessidade em dar maior sentimento protetivo ao público feminino, comprovadamente as maiores vítimas em potenciais do crime de estupro. Ao passo em que o cometimento de tal delito encontra guarida para o repúdio social e legal, a partir de tipificações de normas que preveem penas aos transgressores, é verificado que o estuprador recebe uma espécie de sanção moral além da pena legal.
O desejo de construirmos uma sociedade sadia e de reeducar os transgressores precisa ser entendido como condicionante da eficácia da ressocialização penal e não há como um criminoso deixar de delinquir sem mecanismos que o eduquem.
Defendemos que o estupro parte de um sentimento de poder e esse sentimento é reflexo de construções sociais que dão às mulheres papéis de inferiorização e exclusão. Partindo desse pressuposto, somente refletindo a respeito dos fatos que ainda levam esses discursos de estigmas sociais a serem pulverizados será possível combater o crime de estupro, pois leis não possuem eficácia de sozinhas conterem o crime e rechaçar, repudiar o estupro, não é o meio de igualmente contê-lo.
Os estupradores recebem as influências do rechaço. Eles entendem que o crime é grave ao receberem a pena de reclusão, cumprem a pena nos sistemas prisionais, mas se não são expostos a um ambiente que dissemina em suas vidas reflexões a respeito do crime que cometeram, não terão condições de entender a gravidade do seu ato.
Como apontado, nas maiores ocorrências de estupros a vítima possuía alguma relação com o agressor, o que é preocupante na media em que os discursos de domínio passam a serem ainda mais difíceis de serem combatidos. Como uma mulher, principal vítima, pode discutir poder masculino, domínio e repressão em casa, se seu pai é o agressor?
Posteriormente, como esse pai pode refletir sobre sua conduta se ele se torna vítima do mesmo fato que o levou a ser preso? O estupro de estupradores é uma realidade. “O estupro masculino ocorre em todos os lugares, como o feminino, mas é no cárcere onde assume um caráter excepcional e recorrente. Os próprios apenados condenados por estupro são vítimas do crime que cometeram”. (DO NASCIMENTO, 2013, p. 201).
Não se pode entender que seja natural estuprar um estuprador. Vimos que desde 2009, com a Lei 12.015/09, os homens passaram a ser tidos como possíveis vítimas do crime de estupro, na medida em que a Lei deixou de exigir sujeito passivo específico. Então além de uma violação moral, o estupro de estupradores é uma violação legal.
Mais grave ainda é reconhecer a propagação de doenças sexualmente transmissíveis, danos psicológicos e sentimento de ódio, ódio que um dia pode ser propagado ao mundo externo, fora do sistema penitenciário. Portanto, não racional banalizar existência de estupros nos presídios do nosso país.
A função que a Justiça deve ter é a de humanização do sistema carcerário. Aceitar a ocorrência deste fato seria retroceder a um estado de barbárie onde o corpo era o objeto de punição e o sofrimento alheio era apreciado:
Esse tipo de castigo “olho por olho, dente por dente” é retornar a um estágio de barbárie. Neste sentido, é importante ressaltar a tipicidade deste comportamento do ser humano em se comprazer do sofrimento alheio e se divertir com isso, vide a política de “Pão e circo” da Roma Antiga ou mesmo as lutas livres atuais. Houve mesmo um tempo em que se utilizava, nos espetáculos das lutas livres, vidro para cortar a pele dos lutadores que caiam sobre os cacos. A atrocidade faz parte de história do ser humano, não é apenas vestígio do passado (DO NASCIMENTO, 2013, p. 5).
Portanto, estuprar um estuprador não seria puni-lo legalmente. Os textos normativos que tipificam crimes trazem em seus conceitos secundários as penas de multa, detenção e reclusão, mas não as físicas. Logicamente, o Estado não regula esse comportamento, como também nos fala Do Nascimento (2013):
Sabe-se, porém, que o aparelho penitenciário no Brasil está um tanto distante do objetivo pelo qual foi idealizado. A regra segundo a qual “quem entra por estupro deve ser estuprado” é reflexo da criação de uma espécie de “legislação penitenciária” que tem valor apenas na prisão, isto é: a partir do momento em que se está preso, seguir-se-á as regras do cárcere. Essas regras, ditadas pelos próprios presidiários, são semelhantes ao estado arcaico do ser humano. Há, pois, uma regressão em que o regimento social é deixado de lado, dando lugar a um que os presidiários consideram mais eficaz. Este subsistema o qual não segue mais as regras jurídicas e faz suas próprias leis recria o que se poderia chamar aqui de uma “justiça arcaica”, como se compreendia no Código de Hamurabi, e como se estabelecia no período pré-clássico do direito penal, em que se pune com o próprio crime.
Se a função da pena no Brasil é recuperar o indivíduo, o estupro no cárcere gera um grande paradoxo para com esse objetivo, uma vez inverso os papéis, há uma quebra no cumprimento às normas estabelecidas e, mais que isso, uma regressão no que diz respeito ao propósito penal. As condições no presídio sem uma divisão por crimes cometidos é um comprometimento com a segurança do apenado, essencial para a tentativa de reinserção na sociedade (NASCIMENTO 2013, p. 6, grifo nosso).
O rechaço social ao crime de estupro, quando não acompanhado de um diálogo frente aos problemas que o faz ser cometido, funciona nas prisões como meio de propagação da mesma violência. O combate deveria ser legal e aliado a uma percepção crítica sobre o fato, mas não ocorre. Como explicou Do Nascimento, em sua obra (2013), o fator de retaliação é amplamente difundido e até mesmo tolerado pela população brasileira e a razão disso é que há uma verdadeira construção sociocultural edificada em torno da intolerância e do repugno ao estupro e ao estuprador.
A frase “quem entra no presídio por estupro deve ser estuprado” tornou-se uma verdadeira sentença normativa junto às relações sociais que acontecem no interior dos presídios brasileiros (MARQUES JÚNIOR, 2007, p. 178). Uma amostra dessa aversão veemente é a violência imensa que a população demonstra para com os estupradores: muitos são violentados, seviciados e linchados na própria comunidade em que estão inseridos pela população indignada (PIMENTEL; SCHRITZMEYER; PANDJIARJIAN, 1998, p. 23).
Além do fator de retaliação, é discutido por Caldeira (2008) o fator sexual onde o autor explica que além do “desejo de vingança” há também a espera em satisfazer os desejos lúbricos do possível “justiceiro”, como se o estuprador fosse um “objeto” e a ele coubesse atender aos desejos libidinosos de outrem:
O fator sexual é agravado pelo acesso deficiente dos apenados ao convívio socioafetivo e à qualquer tipo de relação amorosa ou sentimental. Sabendo, então, que o fator sexual é acionado por uma das necessidades humanas, é possível divisar mais um agravante na caracterização do fator quando a própria gerência do estabelecimento prisional suspende visitas íntimas de alguns apenados como recurso de retaliação (CALDEIRA, 2008, p. 93).
Nesse sentido, o estupro de estupradores é um problema que assim como o estupro às suas vítimas, deve ser discutido. É importante refletir sobre os fatos que levam ao cometimento do crime contra seus outrora criminosos e não entender pela banalização da violência. A sociedade que luta contra o estupro de mulheres precisa aprender a lutar contra o estupro como um todo e entender que o crime é um ato ilícito, não importando sua condição de realização.
Por conta disso, é importante destacar como os Tribunais brasileiros têm se posicionado em julgamentos recentes de crimes de estupro e de qual maneira o psicológico das vítimas pode ser afetado, pois o estupro de estupradores no cárcere pode se fundar no desentendimento social acerca da necessidade de refletir sobre sua ocorrência.
O estuprador é compelido pelo sentimento de poder que julga ter e no cárcere é vítima do crime por ele cometido a partir de um mesmo sentimento de poder, que é mascarado por outros fatores como o da necessidade de punição exercido por parte dos outros apenados. Nessa linha, há um ciclo de sentimentos, mas não o de entendimento sobre esse crime. Somente com o devido entendimento a respeito do fato será possível compreender as facetas do crime de estupro e dar a ele o combate devido.
Nesse ponto, é imperioso colocar como os julgadores fundamentam suas decisões a respeito da ocorrência de um crime de estupro, a fim de perceber se os órgãos responsáveis por julgar partem de análises sociais ou somente de verificação de incidência normativa.