4 A INCIDÊNCIA DO FATOR MORAL NAS ANÁLISES DO CRIME DE ESTUPRO
4.1 Aspectos morais no sistema de justiça penal do Brasil, quando do julgamento do crime de estupro
O direito de acesso à justiça pode ser entendido como a capacidade dada aos cidadãos de buscar atuação jurisdicional estatal quando houver a violação de direitos que lhe são intrínsecos. A própria CF rege esse direito desde a sua promulgação através do artigo 5°, inciso XXXV, onde é garantida a inafastabilidade do crivo do judiciário quando alguém se achar em ameaça ou lesão no seu direito.
Para tanto, é necessário que os órgãos estatais atuem em consonância ao que rege o texto maior para que essa busca seja efetiva. O Poder Legislativo, quando da elaboração das leis, já deve estar atento aos meios pelos quais esse direito pode ser buscado em sede do Poder Judiciário para que, quando apreciar um caso concreto, detenha de condições para propiciar o alcance ao que rege o texto da Constituição.
No crime de estupro o direito de acesso à justiça é almejado quando se procede a sua denunciação e essa busca, além de representar a execução de um direito constitucionalmente previsto, atua como mecanismo de resposta estatal à transgressão sofrida. No entanto, o sistema de justiça penal no Brasil não é célere no tocante aos avanços normativos envolvendo o crime de estupro. Vimos que as evoluções legais não ocorreram de modo a acompanhar as variantes do crime e que essa modificação lenta importou em desafios que ainda precisam ser resolvidos.
O Poder Judiciário, quando julga um caso envolvendo o crime de estupro, precisar estar atento para que em suas fundamentações haja a aplicação da Lei. Não se defende uma análise positivista e extremamente legalista, mas sim que em suas decisões ocorra a efetiva “justiça”.
A moral feminina e os julgamentos de cunho subjetivo a respeito do que pode ser certo ou errado não devem ocupar espaço nos cenários jurídicos. Desde cedo, as mulheres são rotuladas e o sentimento de domínio masculino é um fator presente nos casos dos crimes de estupro – como se verificou ao longo deste estudo.
Andrade (2014) defende que:
A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime (...) acaba por ver-se ela própria “julgada” (pela visão masculina da lei, da polícia e da Justiça) incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada. Tem sido reiteradamente posto de relevo como as demandas femininas são submetidas a uma intensa “hermenêutica da suspeita”, do constrangimento e da humilhação ao longo do inquérito policial e do processo penal, que vasculha a moralidade da vítima (ANDRADE 2014, p. 105).
A moralidade da vítima pode ser analisada de modo a se buscar algo que lhe confira “proteção”. Sé é considerada “honesta”, “correta”, “moral” ou “imoral” e se o que sustenta ter ocorrido realmente merece ser investigado. As análises de cunho subjetivo, onde a conduta da vítima é estudada para se chegar à conclusão da ocorrência, ou não, do crime de estupro são julgamentos eminentemente particulares e presentes em uma sociedade que ainda não conhece que o crime de estupro possui repercussões além do que dita a norma legal.
A moral feminina é analisada não para se conhecer as influências que o ato sexual forçado pode ocasionar, mas para estudar se sua conduta pessoal deu caso ao fato. O sistema de justiça penal deve estar voltado à compreensão de que a mulher não é uma simples reprodutora e sim um sujeito de direitos que, por vezes, possui direitos mitigados:
Num sentido forte, o sistema penal duplica a vitimação feminina, porque além de vitimadas pela violência sexual, as mulheres o são pela violência institucional, que reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão sexista, sendo submetidas a julgamento e dividida (ANDRADE 2014, p. 106).
Com base no disposto, é importante verificar como judiciário lida com os julgamentos envolvendo o crime de estupro e de como a fundamentação de suas decisões estão inseridas em um repertório que leva as mulheres a lidarem com situações flagrantes de lesões a seus direitos.
O sistema de justiça penal deve estar voltado a compreensões para além do que disciplina a norma legal como, por exemplo, levar em consideração que o crime de estupro não é matéria a ser resolvida utilizando somente a leitura do texto normativo. O distanciamento da redação legal não é defendido neste trabalho, mas defende-se um olhar voltado para além do que a norma disciplina. Reconhecer que às mulheres são sujeitos violados com condutas preestabelecidas desde o nascimento e que repertório social ainda é de desigualdade de gênero se faz necessário nas esferas legais.
4.2 A palavra da vítima como meio de prova
Ementa: APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ARTIGO 217-A, §1º, DO CÓDIGO PENAL. RECURSO DEFENSIVO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDENAÇÃO REFORMADA. Falecendo os autos de provas seguras e suficientes de que a vítima não tenha consentido com a relação sexual ou de que não tenha podido oferecer resistência, a absolvição é medida que se impõe na esteira do princípio humanitário do in dubio pro reo e amparo legal no artigo 386, inciso VII, do CPP. APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA ABSOLVER O ACUSADO. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Crime n. 70080574668. Quinta Câmara Criminal. Relator: Cristina Pereira Gonzales. Julgado em: 17 jul. 2019. Publicado em 29. jul. 2019, grifo nosso).
O trecho da ementa processual destacada acima se refere a um caso de estupro praticado em fevereiro de 2017 no estado do Rio Grande do Sul. Na ocasião, uma mulher que estava embriaga havia acionado um aplicativo de viagens para voltar de uma festa. Ébria, a vítima provou através de provas testemunhais que não detinha condições de reingressar sozinha para a sua residência por conta do seu alto estado de embriaguez alcoólica.
Testemunhas relataram, inclusive, que ela precisou da ajuda de amigos até mesmo para desbloquear seu celular e solicitar a viagem. Ao desembarcar, o motorista do aplicativo Cabify teria entrado na residência da passageira e com ela mantido conjunção carnal sem seu consentimento, se aproveitando de seu estado de embriaguez, conforme laudo de DNA juntado no inquérito policial, causando também lesões descritas em exame de corpo de delito (SILVA, 2019, p. 364).
O motorista, após sair da residência, levou consigo o aparelho celular da vítima e finalizou a viagem pelo aplicativo da passageira. No dia seguinte, ao acordar, a vítima, percebendo a ausência do seu telefone, teria relatado o fato aos seus amigos que teriam feito uma ligação ao seu respectivo número de celular. O motorista, que havia levado a mulher para casa, atendeu a ligação e disse que somente entregaria o aparelho caso falasse diretamente com ela. Diante da insistência, a mulher aceitou falar com ele. Na ocasião, ele teria perguntando se ela seria portadora de alguma doença sexualmente transmissível e teria se recusado a entregar o aparelho caso ela não lhe pagasse R$50,00 (cinquenta reais) (DA SILVA 2019 p.364).
O órgão ministerial promoveu a denúncia pelo crime de estupro e testemunhas confirmaram o elevado grau de embriaguez da vítima e no juízo a quo, na decisão de primeiro grau, a Magistrada da 11ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre se manifestou no sentido de que restou comprovado pelas provas apresentadas durante a instrução do processo que a vítima estava em estado de embriaguez completa.
O réu foi condenado pela prática do crime de estupro de vulnerável, tendo em vista que a vítima não tinha a menor possibilidade em consentir com a conjunção carnal (o que fora alegado pelo réu) ou oferecer resistência em decorrência de seu estado de embriaguez. Por conta disso, teve sua pena fixada em 10 anos de reclusão em regime inicial fechado.
Inicialmente, o judiciário agiu em consonância com o que seria “fazer justiça”, ou seja, agiu de modo a reprimir a ocorrência de uma transgressão legal. No entanto, o direito a recorrer de decisões judiciais é garantia legal e o réu interpôs recurso. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformou a decisão por entender que não havia provas suficientes que validassem sua condenação. O órgão colegiado decidiu pela absolvição do réu de forma unânime, baseando a decisão na insuficiência de provas, apontando a ausência de exame toxicológico que comprovasse o nível de álcool no sangue da vítima e afirmando que a prova testemunhal foi inconclusiva para demonstrar a ausência do consentimento da vítima (DA SILVA, 2019 p.365).
Nesse caso, mesmo a vítima tendo apresentado exames periciais que comprovaram a conjunção carnal e o Ministério Público arrolado testemunhas que relataram seu estado de embriaguez, o judiciário entendeu pela inocorrência do crime.
O que percebemos nessa decisão é reflexo de que no sistema de justiça criminal a palavra da vítima perde a sua credibilidade diante da averiguação de um crime de estupro. No caso em comento, essa análise é ainda mais grave ao se verificar que mesmo as provas testemunhais podem ser insuficientes ao se averiguar a ocorrência desses fatos. Por fim, a relatora do recurso coloca que:
Ementa: […] Ora, a meu sentir, o relato da vítima não se reveste de suficiente segurança ou verossimilhança para autorizar a condenação do acusado, não podendo ser descartada a possibilidade de algum arrependimento ou descontentamento posterior daquela com relação ao ocorrido, decorrente do fato de o acusado ter perguntado se ela tinha alguma doença sexualmente transmissível, haja vista que foi justamente o que ficou assentado que teria “chocado” a ofendida (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime n. 70080574668. Quinta Câmara Criminal. Relator: Cristina Pereira Gonzales. Julgado em: 17 jul. 2019. Publicado em 29. jul. 2019).
No Brasil, constatamos que o sistema de justiça penal ainda se mostra distante de um real amparo legal às vítimas. Afinal, como se provar um crime de estupro se esse ato não é praticado, em tese, em público? A palavra da vítima, o exame pericial, provas testemunhais, deveriam ter seu valor probatório. Mas possuem?
Vimos no capítulo 2, item 2.4, que o STJ entende pela relevância probatória da palavra da vítima durante a apreciação e futuro julgamento de crimes de estupros, porém, esse entendimento não é suficiente quando um caso é posto sob o crivo do judiciário. Constatação que reforça o fato de que o sistema penal ainda se alia a entendimentos morais em suas decisões.
4.3 Constatações médicas – o exame de corpo de delito é necessário?
O crime de estupro, por ser um crime de material, não poderia se furtar de receber as influências médicas em sua comprovação. Embora a palavra da vítima deva ser importante, o exame médico é um meio relevante de provar a ocorrência do fato e de responsabilizar o(s) culpado(s) quando o crime envolver conjunção carnal.
Para ratificar a ocorrência do crime, o exame de rotura himenal seria elemento necessário na apuração dos fatos. No Brasil, o Instituto Médico Legal (IML), que é subordinado às Secretarias de Segurança Pública dos estados, é oficialmente o órgão autorizado a repassar para a Justiça os laudos técnicos, realizados por peritos habilitados, sobre os crimes sexuais denominados de “Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal”.
No entanto, Drezett Jefferson (2011, p. 191) coloca que nem todos os crimes de estupro que envolve penetração apresentam exame médico-legal concordante que atestam a ocorrência do crime com valores significativos – quando há penetração anal em mulheres adultas e adolescentes. Isso mostra nem sempre o exame de corpo de delito pode, de fato, atestar a ocorrência do crime. Por isso, é importante que a palavra da vítima seja levada a sério na apuração do crime de estupro.
Porém, SCHRITZMEYER (1998) defende que as provas médico-legais são fortemente valoradas pelo sistema de justiça e, na sua ausência destas provas médicas, muitas vítimas são desacreditadas. O que torna suas denúncias irrelevantes e acaba por prejudicar a garantia do acesso à justiça. (SCHRITZMEYER, 1998 apud DREZETT, 2011)
Mais grave ainda é o fato de que a culpabilização dos criminosos muitas vezes não acontece, o que gera um sentimento de impunidade perante a um crime grave como o estupro. A realização do exame permitiria a coleta de material genético do criminoso, o que facilitaria sua condenação, mas há de se defender que o estupro se prova por outros meios e que o exame de corpo de delito não pode ser “endeusado” pelo nosso sistema de justiça e que, mais uma vez, a palavra da vítima precisa receber atenção.
A dificuldade técnica e robusta em comprovar o contato sexual recente pode ser justificada pela demora de a vítima buscar a realização do exame, uma vez que o crime afeta o psicológico das vítimas pelo sentimento de culpa do ocorrido. Não se questiona a importância do exame de corpo de delito para a constatação do crime de estupro, mas se defende que ele não pode ser o único meio ou o mais importante modo de se comprovar a ocorrência do crime.
O sistema de justiça precisa estar alinhado as variantes do crime de estupro. É preciso entender que as regras positivadas são importantes, mas que em certas situações não são passíveis de realização. A justiça deve continuar com a sua investigação e a palavra da vítima ser valorizada.
4.4 O entendimento crítico filosófico como propulsor de um novo pensamento social a respeito do crime de estupro
Ao longo deste trabalho, as discussões envolvendo o crime de estupro estiveram ligadas aos mais variados tipos de análises e todas essas áreas se mostraram úteis para a compressão a respeito do ato e de como sua prática é vista pela sociedade.
Tais constatações puderam ser usadas para reforçar que tal ilícito não é apenas tipo penal, mas um fato social que deve ser discutido com o aporte de ciências que propiciam melhor entendimento a respeito dos fatos, assim como proporciona a Filosofia. Pensar criticamente a respeito de um crime se mostrou extremamente importante e confere ao Direito possibilidades de se tornar mais próximo a realidade dos fatos e ao pleno entendimento das variantes a respeito de um tema.
A liberdade de pensar e agir a respeito dos fenômenos que acometem uma sociedade é atividade genuinamente filosófica. Nessa linha, coloca-se uma tese altamente inteligente da Filosofia concebida pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, que defendia que o homem está condenado a ser livre. Entendemos essa liberdade de ser livre para pensar, sair da “caverna mental” (em uma referência ao “Mito da caverna” de Platão), agir e falar livremente... Enfim, viver a liberdade que é concebida aos homens. Contudo, será que realmente somos condenados a ser livres em nossa sociedade?
Augusto Cury (2015, p. 27) nos explica que não: “Claro que hoje, como adultos, fazemos escolhas, tomamos atitudes, mas nossas escolhas são pautadas pela base de dados que já temos, e, portanto, nossa liberdade não é plena como Sartre pensava”.
Há a possibilidade de gerenciar nossos pensamentos e o crime de estupro precisa desse gerenciamento de pensamentos, pois é preciso romper as ideais misóginas que tiram das mulheres seus direitos e garantias; romper com a concepção de poder e domínio masculino e aceitar o fato de que discursos de dominação precisam ser debatidos em nossa sociedade para que tenhamos, de fato, a devida “justiça”.
Nesse ponto, Augusto Cury (2015, p.33) cita: “Pensar o pensamento sistematicamente nos leva a romper o cárcere de nossas verdades e abre um universo de possibilidades para compreender quem somos”. Portanto, pensar criticamente, considerada uma atividade filosófica, pode nos levar ao rompimento de barreiras ainda existentes e a compreender a necessidade urgente de encarar o crime de estupro não somente como tipificação normativa, mas como um fato que está embasado a pensamentos que tendem a tirar das pessoas, especialmente mulheres, seus direitos e garantias.
A Filosofia não é somente uma ciência que ajuda a pensar, ela é capaz de ensinar a pensar a respeito dos fatos. Nessa linha, o crime de estupro pode ser mais bem compreendido com o emprego de análises de cunho filosófico e moral a partir da maneira como os nossos pensamentos tendem a reforçar as problemáticas incutidas nesse cenário.
Ao pensarmos de modo crítico a partir das lições da Filosofia, agiremos de modo a buscar a realidade racional das coisas e de nos desenvolvermos enquanto pessoas. Esses avanços podem ser alcançados com o trabalho da Filosofia, como nos fala Appel e Foohs (2017):
A filosofia, do ponto de vista do desenvolvimento integral das pessoas, trabalha temas como o estudo do pensamento e das diversas formas de pensar, a importância da racionalização para entender a vida, a sociedade e a participação política, o desenvolvimento da produção de conhecimentos ao longo da história, e a lógica (APPEL, FOOHS, 2017, p. 41).
Conclui-se como o pensamento crítico filosófico, ao trabalhar com diversas formas de pensar, pode ajudar a moldar nossas concepções e a construirmos uma sociedade que, de fato, luta contra o crime de estupro e suas dimensões. Assim, poderemos evoluir para uma sociedade mais aberta ao diálogo e com pensamentos voltados à compreensão real dos fatos.