RESUMO
Esta pesquisa tem como tema discutir o crime de estupro através da perspectiva moral. O objetivo é discutir este ilícito não somente pelo viés legal, mas também pelo campo da dignidade e sexualidade. A pesquisa possui natureza básica, abordagem qualitativa e fins exploratórios. Utilizou-se na análise o método indutivo e como métodos de procedimento a pesquisa bibliográfica. As discussões levantadas nesta pesquisa permearam contextos históricos para mostrar que o crime de estupro sempre esteve presente nas sociedades e quais são os aspectos que devem envolver seu estudo para que seja possível justificar a moral social nas tratativas que o circundam. O estudo sobre gênero elencou alguns fatores sobre os motivos que levam mulheres a serem as principais vítimas de estupro e porque sentimentos como dominação e poder masculino ainda são elementos presentes na sociedade. Foram levantadas particularidades históricas, jurídicas e morais contidas no crime para compreender que o ilícito sempre esteve talhado no seio social e que o desejo de combate e repressão sempre se fizeram presentes. Evidenciou-se que sua prática fere não somente os preceitos legais de combate e repressão, mas rompe com os postulados sociais que rechaçam a ocorrência deste crime por considera-lo atentatório a uma sociedade sadia. No entanto, verificou-se a dificuldade que o sistema de justiça do Brasil possui para o enfrentamento do crime de estupro. Pois, sua prática decorre de fatores cujo entendimento a lei penal não proporciona, como as relações materiais desiguais entre homens e mulheres. Ademais, também se verificou a necessidade de um diálogo aberto com a sociedade, a fim de se discutir a existência de sentimentos de poder e dominação masculina que ainda são reais e precisam ser combatidos. A pesquisa possui natureza básica, abordagem qualitativa e fins exploratórios. Utilizou-se na análise o método indutivo e como métodos de procedimento a pesquisa bibliográfica. Nesse sentido, o estudo sobre Gênero, Ciência Jurídica e Filosofia, através da discussão da moral, tratou a análise do crime de estupro para além do seu enfoque legalista, mostrando que variadas análises são necessárias para o seu enfrentamento e repressão.
ABSTRACT
This research has the theme of discussing the crime of rape through a moral perspective. The objective is to discuss this violation not only by legal bias, but also by the field of dignity and sexuality. The research has a basic, qualitative approach and exploratory purposes. The inductive method was used in the analysis and the bibliographic research was used as methods of procedure. The discussions raised in this research went through historical contexts to show that the crime of rape has always been present in societies and what are the aspects that involve this topic so that it is possible to justify social morality in the treaties surrounding it. The study on gender listed some factors about the reasons that lead women to be the main victims of rape and why feelings such as domination and male power are still elements present in society. Historical, legal and moral particularities contained in this crime were raised to understand that this violation has always been carved in the society and the desire for battle and repression have always been present. It has been evidenced that its practice not only harms the legal precepts of repression, but breaks with the social advances that reject the occurrence of this crime because it considers it attacking to a healthy society. However, it was verified the difficulty that the Brazilian justice system has in coping with the crime of rape. For its practice happens from factors whose understanding are not provided by the criminal law, such as unequal social life relations between men and women. Moreover, there was also the need for an open dialogue with society, in order to discuss the existence of power and male domination that are still real and need to be fought. As a result, the study on Gender, Legal Science and Philosophy, through the discussion of morals, treated the analysis of the crime of rape beyond its legalistic approach, showing that various analyses are necessary for its confrontation and repression.
Keywords: Society. Rape. Philosophy. Morality. Power.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Art. Artigo
CF Constituição Federal
CPB Código Penal Brasileiro
DJ Diário da Justiça
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
STJ Superior Tribunal de Justiça
REsp. Recurso Especial
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 GÊNERO: HISTÓRIA E EVOLUÇÃO
2.1 O conceito de gênero e o direito à igualdade
2.2 Desafios para o direito à igualdade
2.3 O estupro como crime de poder
2.4 A vítima sob a influência do sentimento de culpa e o posicionamento jurídico
3 OS REFLEXOS DA MORAL SOCIAL NAS TRATATIVAS DA SEXUALIDADE FEMININA
3.1 Sexualidade e dominação
3.2 Evoluções legislativas no crime de estupro
3.2.1 Lei 12.015/19 em busca de paridade normativa nos crimes de estupro
3.2.2 Lei 13.718/18, alterações na ação penal
3.3 A Filosofia Jurídica em comento para o entendimento do crime de estupro
3.4 Rechaço social ao crime de estupro: implicações
3.5 Estupradores: “dupla” punição?
4 A INCIDÊNCIA DO FATOR MORAL NAS ANÁLISES DO CRIME DE ESTUPRO
4.1 Aspectos morais no sistema de justiça penal do Brasil, quando do julgamento do crime de estupro
4.2 A palavra da vítima como meio de prova
4.3 Constatações médicas – o exame de corpo de delito é necessário?
4.4 O entendimento crítico filosófico como propulsor de um novo pensamento social a respeito do crime de estupro
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
O CPB foi instituído pelo decreto-lei n°. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e traz em seu Título VI o referencial normativo referente aos crimes contra a Dignidade Sexual dispostos no capítulo I - Dos Crimes contra a Liberdade Sexual. Logo, o estupro é um ato ilícito tipificado em nosso ordenamento jurídico que normatiza o seu conceito legal no Art. 213 do CPB com o verbo constranger como núcleo do tipo penal, em que prevê pena de 6 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão ao indivíduo que constranger outrem mediante violência ou grave ameaça a manter conjunção carnal ou algum outro ato libidinoso.
Salienta-se que o crime em questão não se trata somente sobre a prática de ato sexual, pois, no conceito de ato libidinoso, inclui-se toda a ação dedicada a atender desejos lúbricos de outrem. O mesmo entendimento é o do STJ que em 2013, no julgamento do REsp.1359608/MG, de relatoria da Ministra Assusete Magalhães, entendeu que o ato libidinoso compreende aqueles: "[…] praticados de diversas formas, onde se inserem os toques, contatos voluptuosos, beijos lascivos, consumando-se o crime com o contato físico entre o agressor e a vítima”.
Tal entendimento foi fruto da Lei nº 12.015/09 que possibilitou a ampliação da conceituação legal do crime de estupro ao reger que ele também consiste da prática forçada de alguma ação lúbrica, não passando mais a exigir o sujeito passivo específico feminino, como anteriormente previa. O estupro é ainda considerado crime hediondo em sua modalidade tentada ou consumada pelo art. 1º, inciso V, da Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos).
Desde os primórdios, o estupro já era tratado como um atentado pela sociedade. O Código de Hamurabi, criado em 1.780 a.C, previa em seu capítulo X, Art. 130, que se alguém violasse uma mulher que ainda não havia conhecido um homem (i.e., virgem), teria como consequência a morte do transgressor.
Outro modelo de repressão é dado por Detiene Claude (2009) que estuda o crime de estupro a partir de análises do texto Bíblico. Para a autora, o livro cristão é um produto de uma civilização patriarcal e, por isso, o leva a conter casos de violência contra mulheres. Nesse sentido, cita o livro bíblico de Deuteronômio que no capítulo 22:22-29 trata sobre as punições envolvendo morte e pecúnia a quem atentasse contra a liberdade sexual da mulher, fazendo menção especial aos casos em que a vítima fosse virgem.
Os exemplos citados anteriormente demonstram que no decorrer da história o crime de estupro já se fazia presente no seio social. Nos modelos apresentados, apesar de haver salvaguarda diferenciada nas mulheres virgens, tem-se perceptível a conduta social, que já era de repulsa e tentativa de repressão, apesar do fato de que somente mulheres eram tidas como vítimas do crime. Essa ideia leva a análise de que o sentimento de domínio masculino há muito tempo permeia o campo social e legal, já que a seu modo e tempo os comandos de repressão funcionavam como norma.
As questões relativas ao gênero passam, então, a ser de necessária discussão. A legislação penal precisou passar por avanços para ser possível disponibilizar tratamento igual a todos e estar em consonância com o texto constitucional - que tem a igualdade como um de seus baluartes insculpida no Art. 5º caput do texto maior. A moral social recebe essas modificações e se reformula a partir do que é tido como norma, cujo exemplo notório é a pena imposta atualmente, a detenção, mas em outras épocas já foi de morte e pecúnia.
Para Vilela e Lago (2007), a violência sexual é um problema social e de saúde em decorrência dos danos psicológicos que produz. Os autores defendem que a prática envolve significações éticas, culturais e morais e, por isso, a ação pública de embate deve possuir três dimensões: o combate à naturalização e banalização do delito, alertando que o ato é sempre criminoso e que a vítima não é culpada por ele; e a organização de sistemas de combate, que devem envolver a prevenção e notificação do fato, bem como uma rede de prevenção imediata que acolha às vítimas.
Cavalcanti, Gomes e Mynaio (2006) expõem que o combate à violência sexual é de difícil execução, pois na maioria dos casos a denúncia não é realizada. O motivo para tal, segundo os autores, é que por medo de represálias e do julgamento social que tende à culpabilização, a vítima se silencia. Por essa análise, vergonha, medo, abalo psicológico e físico constituem outros entraves no combate do crime, o que reforça a presença do tema nos mais variados campos de estudo, corroborando a necessidade em debatê-lo e de trazer à discussão ponderações externas que possam disciplinar a norma legal.
Apesar das transformações existentes, o sentimento de repúdio permanece, o que impele o legislador de promover avanços nessa seara. Por conseguinte, a Lei 13.718/18 modificou a competência dos Crimes contra a Dignidade Sexual, que passaram a ser, a partir de então, de ação penal pública incondicionada à representação, o que significa que não mais a vítima tem o direito exclusivo de intentar a ação penal pela denúncia ao crime.
A constatação médica, como meio de provar a ocorrência do crime de estupro, é defendida por Drezett Jefferson (2011) como de grande valia tanto para a caracterização do crime, quanto para futura responsabilização do autor da violência. Nesse sentido, a existência de lesões físicas, sinais de resistência e evidências de contato sexual recente, além da condição himenal da vítima, são tidos como elementos fundamentais para comprovação do fato.
Por outro lado, a ocorrência do crime não ser condicionada essencialmente à detecção médica, pois, ainda de acordo com Drezett Jefferson (2011), boa parte dos crimes sexuais não envolve uso de força física, prevalecendo a intimidação psicológica como fator de coação para o seu cometimento. Ademais, o literato coloca que, diante da ausência de violência física, adolescentes e mulheres adultas que sofrem crimes com penetração anal poucas vezes apresentam danos físicos clinicamente evidentes, tornando a constatação médica deficiente. Outro gravame está no fato de que a vítima, além do abalo psicológico que sofre em decorrência do crime, ainda precisa permitir a realização do exame, o que pode retardar a apuração do fato.
As situações que o acusado enfrenta também devem ser analisadas, pois é oportuno demonstrar que as condições de preconceito e exclusão que sofrem tendem a tratá-las como agentes com o mais alto nível de reprovação coletiva, podendo sofrer no cárcere o mesmo crime sexual outrora cometido. Afinal, conforme Marques Júnior (2007) declaram, o abuso sexual de estupradores no cárcere é uma prática de conhecimento generalizado.
Diante dos fatos, elenca-se que o Capítulo I deste trabalho visou analisar os aspectos relevantes que estão contidos no crime de estupro, apesar de não se ater somente a base legal, pois utiliza o gênero como elemento essencial de análise. Doravante, o direito à igualdade é apresentado como um elemento que formalmente garante a todos um tratamento paritário, mas que por si só não é capaz de exercer em nossa sociedade a execução do postulado constitucional.
No Capítulo II a moral passou a ser discutida como elemento capaz de propulsionar a tomada de decisões em âmbito legislativo e serão apresentadas as disposições legais que o ilícito já teve. Ademais, a Filosofia foi discutida para comprovar a influência e contribuição do seu estudo no entendimento do crime de estupro, tendo ainda como função comprovar que, apesar das constantes reformulações que o tema sofre, o sentimento coletivo é de desprezo para com a sua ocorrência.
No terceiro e último momento, já de posse das mais variadas compreensões do fato, foi possível travar discussões que visaram explicar a ocorrência do crime na nossa sociedade e de que forma o judiciário atua em seu combate e repressão. Apresentou-se entendimentos jurisprudências acerca de um julgamento do crime de estupro e quais os meios probatórios usados para a condenação ou absolvição do réu, além de discutir as situações que a vítima perpassa para comprovar a existência do fato como, por exemplo, o exame médico de corpo de delito.
Quanto à metodologia, o tipo de pesquisa deste trabalho se refere a uma pesquisa exploratória do tipo revisão narrativa, que possui caráter abrangente e se dedica a descrever o desenvolvimento de determinado assunto, sob a óptica teórica ou contextual a partir de materiais científicos já existentes. A junção destes elementos torna possível demonstrar, nesta pesquisa, que o estudo do crime de estupro compreende áreas que o texto penal não se mostra apto a sozinho explicar, mas que devem ser analisadas para a melhor compreensão dos aspectos inerentes ao ilícito mediante o estudo das variantes que o envolvem.
2 GÊNERO: HISTÓRIA E EVOLUÇÃO
2.1 O conceito de gênero e o direito à igualdade
Segundo Andrade (2004 p.01), gênero é um signo que, a partir da década de 70, no auge dos movimentos feministas, se tornou uma acepção teórica e politicamente relevante. A pujança desses movimentos significou um grande ponto de interferências e evoluções e importou na ruptura que o atrelava a uma classe de algo ou seres, por ser um movimento genuinamente feminino, para ligá-lo a uma classe de seres humanos.
Enquanto aquela passou a ser determinada pelo campo biológico, em sexo masculino e feminino, essa passou a ser conceituada a partir dos aspectos sociais e culturais que não mais eram restritos a esfera biológica. Esse novo significado abriu caminho para a configuração de papéis e espaços na sociedade moderna e importou especialmente na distinção entre sexo e gênero.
Como explica Beavouir (1980 apud Kennya Passos, 2017): “Não se nasce mulher, ou homem, torna-se”. Nesse sentido, é possível compreender que os estudos sobre gênero envolvem significações culturais e movimentos que se destinavam a lutar por direitos femininos marcados, em especial, pelo desejo de conquistar espaços sociais e operar mudanças.
Nesse mesmo sentido, Louro (1997 p.19) coloca que o determinismo das lutas feministas estava em assumir “[...] com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinham (e têm) pretensões de mudança”.
O estudo sobre as questões de gênero parte, portanto, dos movimentos femininos que buscavam romper barreiras com o que a sociedade possuía como regra social e desvincular o determinismo biológico como parâmetro para designar funções baseadas no sexo. Isso mostra que homens e mulheres podem assumir posições iguais, pois os papéis de cada um na sociedade são frutos de pensamentos culturais:
É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental. (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 38).
Esse novo entendimento repercutiria no Brasil em questões que ainda não estavam sendo enfrentadas, como a existência maciça do patriarcado nas relações sociais. Nesta época, a seara civilista estava sob a vigência do extinto Código Civil de 1916 onde as relações sociais eram regidas pelo pátrio poder ou pátria potesta como um modo de apontar a quem cabia o poder de autoridade no seio familiar.
Pertencia ao pai, figura biologicamente masculina, esse direito e a ele cabia educar os filhos. No diploma legal em comento eram estabelecidas em seu Art. 380 as disposições relativas ao pátrio poder, cuja redação era a seguinte: “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores passará o outro a exercê-lo com exclusividade” (Brasil. Código Civil de 1916).
A mulher era tida como agente colaborativo, que não possuía o direito de educar seus descendentes como quisesse. Era necessário atender aos comandos do marido e somente contribuir para a execução dos seus desígnios. Somente com o advento da Lei n° 4.121/62, o Estatuto da Mulher Casada, a situação passou por uma pequena mudança ao ser concedido o pátrio poder aos pais.
No entanto, para que isso ocorresse, foi necessário alterar o Art. 380 de modo a possibilitar que a mãe recorresse a algum juiz quando não concordasse com decisões do marido. Era esse o modo legal de a mulher ter poder de decisão ao tentar educar seus filhos. O referido artigo passou a ter a seguinte redação:
Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz, para solução da divergência (BRASIL. Código Civil de 1916).
Apesar de a mudança parecer benéfica, é válido ressaltar dois aspectos: o primeiro diz respeito ao nome pelo qual a Lei n° 4.121/62 passou a ser reconhecida, “Estatuto da Mulher Casada”. Isso mostra que, naquela época, somente mulheres casadas estavam legitimadas a terem sob os filhos o exercício de alguma autoridade.
Felizmente, a CF de 1988 surgiu com o intento de tutelar, ou tentar garantir, a maior gama de direitos possíveis e abriu espaço para o direito à igualdade que passou a ser um dos pilares do seu texto. Os direitos fundamentais previstos logo no início de nossa Carta Magna funcionariam a partir de então como baliza para as regulamentações legais posteriores e, formalmente, colocaria fim a distinção entre homens e mulheres. Quis o legislador dar tratamento legal e igual a todos, além de permitir que os direitos fossem distribuídos de forma coincidente. Nesse sentido, a CF prevê em seu artigo 5º, caput:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988).
O direito à igualdade assume posição relevante dentro do ordenamento jurídico brasileiro passando a ser pauta garantidora, e sinalizadora, de outros direitos que o texto maior passou a prever a partir dele, como o direito à vida e à liberdade. O direito à igualdade pode ser entendido com o grande baluarte da nossa Constituição, que teve em seu texto a preocupação de garantir uma sociedade mais justa para todos, como nos ensina Alécio e Fachin (2019):
Durante o processo de construção da democracia e de uma sociedade mais justa para todos, foram reconhecidos inúmeros direitos intrínsecos à posição do ser humano, independentemente de gênero, etnia, posição religiosa etc. Esses direitos estão centrados nos indivíduos enquanto parte de uma sociedade, sujeitos de direitos e deveres. Em suas relações sociais, os indivíduos não podem receber tratamentos distintos (ALÉCIO; FACHIN, 2019, p. 3).
Apesar das beneficies que o direito à igualdade proporciona ao se buscar um tratamento justo, não se pode entender que vivamos em um ambiente igualitário ou livre. Para Noberto Bobbio (1997 apud Alécio e Fachin, 2019 p.5) “a sociedade de livres e iguais é um estado hipotético, apenas imaginado”.
Logo, refletir sobre a questão de gênero é importante para se perceber que as lutas por direitos iguais permeiam diferentes momentos da história e que mulheres são as maiores vítimas desse estado “desigual”. Esses fatores nos levam a crer que o crime de estupro deve ser analisado sob a ótica do gênero, visto que desde sempre as mulheres tiveram suas garantias suprimidas no meio social e legal:
Não é possível compreender a busca pela igualdade de gênero assegurada pela nossa Constituição sem o recorte histórico do papel da mulher em nossa cultura, bem como da influência de uma moral sexual que por muito tempo, e até hoje, ainda determina o papel dessa mulher nas relações sociais. Somente através do estudo da tríade mulher, moral sexual e história que se poderá perceber se há, de fato, o direito à igualdade assegurado pelo nosso ordenamento jurídico (KUBOTA, 2014, p. 11).
2.2 Desafios para o direito à igualdade
Rico e fecundo é o tema da igualdade, que pode ser discutido sob diferentes aspectos e analisado em variados momentos de maneira inesgotável onde não se pode desconhecer a existência de “várias igualdades”, quais sejam: formal, material e social, como nos fala Aline Osório e Luís Roberto Barroso:
No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras (OSÓRIO; BARROSO, 2016, p. 208).
A igualdade formal, não garantiria um tratamento singular a todos por não levar em conta as particularidades de cada individuo e não garantindo que todos tenham acesso à igualdade real, vivenciada fora do âmbito normativo, como também defendem os autores ora citados:
A igualdade formal é um ponto obrigatório de passagem na construção de uma sociedade democrática e justa. Porém, notadamente em países com níveis importantes de desigualdade socioeconômica e exclusão social, como é o caso do Brasil, ela é necessária, mas insuficiente. A linguagem universal da lei formal nem sempre é sensível aos desequilíbrios verificáveis na realidade material. Tomem-se dois exemplos históricos. (OSÓRIO; BARROSO, 2016, p. 210).
Logo, apesar de o texto constitucional garantir tratamento harmonioso a todos, não se pode conceber a ideia de que vivemos em um estado de igualdade plena onde há respeito irrestrito a todos em decorrência do comando legal. A existência de direitos se mostra imprescindível, mas não garante a execução de seus primados.
Não se pode entender o texto constitucional como uma simples lei. A CF se presta a garantir a observância de direitos e deveres e funciona como órgão central, superior a todas as demais leis. Hans Kelsen, criador da Teoria Pura do Direito1 e pioneiro do positivismo jurídico2, atribuiu a Constituição um sentido jurídico, defendendo que é a lei juridicamente superior, norma pura, puro dever ser, desprendida de qualquer aspiração sociológica, valorativa ou política. O positivista atribui à Constituição dois sentidos: lógico-jurídico e jurídico-positivo.
No primeiro sentido, Kelsen diz que a Constituição tem sua validade fundamentada na norma hipotética fundamental que sustenta e dá legitimidade a todo o ordenamento jurídico. Em relação ao segundo, a Constituição seria o fundamento de validade de todo ordenamento infraconstitucional, ou seja, uma norma de hierarquia inferior buscando seu suporte de validade na norma imediatamente superior até chegar ao que regula uma Constituição. Ainda segundo o autor: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma [...] designada como norma superior” (KELSEN, 1974, p. 267).
Em outra ponta, Ferdinand Lassale (2002) em um conceito sociológico de seu livro “O que é uma Constituição?” explica que a Constituição seria uma espécie de junção dos fatores reais de poder existentes em uma comunidade e que, depois de escritos, constituem um direito:
Colhem-se estes fatores reais de poder, registram-se em uma folha de papel, se lhes dá a expressão escrita e, a partir desse momento, incorporados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas que se erigiram em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado (LASSALE, 2002, p. 48).
Lassale destaca também a necessidade de a Constituição ser “o reflexo das forças sociais que estruturam e determinam o poder”. É a composição do que o povo realmente necessita e deseja, correndo o risco de se encontrar apenas uma folha de papel: "De nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder.” (LASSALE, 2002, p. 68).
Portanto, segundo o autor, faz-se necessário uma relação entre o documento escrito e as forças determinantes do poder para existir uma Constituição. É necessário buscar a efetivação dos direitos contidos na norma constitucional, visto que o fato de estarem legitimados não implica que serão cumpridos. Todavia, o artigo 5º, caput, ao estabelecer a igualdade formal de todos passa a garantir que, independentemente da discussão realizada, o primado legal deve ser observado.
Isso mostra que o estudo do conceito de gênero, muito embora envolva variados aspectos, não estaria isento de reconhecer a igualdade formal de todos, partindo-se de um enfoque positivista. Isso estende essa garantia a outros direitos, como o da liberdade e o da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, não é possível limitar as discussões que envolvam gênero e o direito à igualdade numa análise única do que a norma jurídica prevê. Pois materialmente, não vivemos em um estado que nos concede direitos de fácil aferição.
2.3 O estupro como crime de poder
O CPB em seu Art. 213 tipifica legalmente o crime de estupro e não faz menção a um sujeito passivo específico, ou seja, o crime pode ser ativamente cometido por homens e mulheres:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (BRASIL. Código Penal de 1940).
É necessário elencar que o patriarcado era elemento presente em nosso ordenamento jurídico, prevalecendo os direitos masculinos aos femininos e cabendo às mulheres a posição de subordinação e inferioridade, lesando-as de variadas formas.
Por conseguinte, não somente no Brasil a realidade vivenciada era a de exclusão feminina. Desde os primórdios, mulheres enfrentam situações de preconceito em que o tratamento é de distinção abrupta em relação aos homens. Beauvoir (1890 apud Kennya Passos 2017), em uma crítica a universalidade masculina, expõe que a mulher foi concebida como a imagem de seu marido, sendo definida a partir dele e suas diferenças apontadas como falhas:
A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo [...] A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (BEAUVOIR,1980, p.10).
O sentimento de que a mulher é um ser com características de “imperfeição e incompletudes” faz sê-la vista como um agente capaz de representar perigo senão for vigiada. O sentimento de dominação e monitoramento feminino sempre se deu através da sexualidade, como nos ensina Cláudia Fonseca (2007):
A receita para a mulher ideal envolvia uma mistura de imagens: a mãe piedosa da Igreja, a mãe-educadora do Estado positivista, a esposa companheira do aparato médico-higienista. Mas todas elas convergiam para a pureza sexual - virgindade da moça, castidade da mulher. Para a mulher ser "honesta", devia se casar; não havia alternativa. E para casar, era teoricamente preciso ser virgem (FONSECA, 2007, p. 528).
Acerca da sexualidade feminina, José de Albuquerque (1930 apud Vanessa Kubota, 2014) coloca que a sexualidade deve ser vista como o trato entre duas pessoas, mas com o fito de aliviar a necessidade sexual apenas do homem, uma vez que a mulher honesta não possuiria tais necessidades. O autor ainda destaca que em períodos onde a esposa não pode se relacionar com seu marido, ele seria livre procurar uma meretriz.
O sentimento que se tinha em relação as mulheres, seus códigos, condutas de comportamento e papéis sociais se faz necessário para entender o motivo pelo qual eram tidas como objeto sexual. A espera pela subordinação feminina na certeza que ela sirva ao homem e atenda aos seus desejos reforça que o crime de estupro é pautado em um sentimento de dominação masculina que, por ser socialmente aceita, não precisa de justificação:
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina a qual se alicerça. (BOURDIEU 2010, p. 18)
Sendo a mulher rotulada como inferior, perigosa e incompleta, a garantia de quaisquer direitos era tida uma utopia. Essa concepção serviu de base social para colocá-la não só em posição de desigualdade, como também dá-la papéis que seriam intrínsecos. A mulher passou a ser tida como uma reprodutora, cuidadora do marido e dos filhos, zeladora do lar... Tudo, menos sujeito de direitos. Como afirma Beauvoir 1980 (apud Kennya Passos, 2017, p. 18): “A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos [...] julgaram útil manter a mulher em estado de obediência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi como ela se constitui concretamente como o Outro”.
A colocação de Beauvoir ao falar de lugar do “Outro” revela o estado de objetificação que as mulheres possuíam, sendo rotuladas desde o nascimento como seres inferiores, subordinados e que precisariam estar sob a égide do poder masculino.
Esses fatores mostram que o sentimento de dominação masculina é prevalente, sendo dado aos homens à colocação de um status de superioridade, força e até de adestramento em relação às mulheres. A respeito do sentimento de poder, Michel Foucault defende que não há “O poder”, mas “micropoderes” onde o poder central passa por diversos caminhos até ser concretamente exteriorizado:
É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCALT 2004, p. 193).
Levando como base o colocado, não se pode entender a acepção de poder como algo estático, pois há a circulação de poderes em nossa sociedade. Neste sentido, é esperado que não existisse somente o domínio, a resistência é presente e funciona como agente apto a estancar, ou tentar parar, a influência dominadora e repressora daqueles “micropoderes”.
Heleieth Saffioti e Almeida (1995) sustentam que embora haja a disparidade de poderes nas relações de gênero, externados em diversos espaços a partir de atitudes autoritárias e violentas, bem como em relações afetivas, as mulheres não são impassíveis e buscam mecanismos de resistência:
O poder não consiste em uma riqueza apropriada, em um bem congelado, mas em fenômeno que flui em cadeia, que transita pelos sujeitos sociais segundo a correlação de forças do momento. Esta concepção de poder revela-se bastante útil nos estudos de relações de gênero, na medida em que permite descartar a posição vitimista segundo a qual o homem detém todo o poder e a mulher não detém nenhum. O poder, na acepção foucaultiana viabiliza um pensamento dinâmico das relações de gênero e da tensão permanente que as anima. Não se ignora, por outro lado, que, dada a destinação primordial das mulheres à produção antroponômica (Bertaux, 1979), elas se inserem, majoritariamente, na rede dos micropoderes [...] Os homens, diferentemente, em virtude de sua presença maciça, no mundo da produção de bens e serviços, transitam, com mais frequência e familiaridade, na malha dos macropoderes [...] (SAFFIOTI, ALMEIDA, 1995, p.195).
A possibilidade de resistência seria uma das maneiras de afirmar que o crime de estupro pode ser combatido. Ademais, é passível crer que o sentimento de dominação não é inato, mas uma construção social que propaga entendimentos de inferiorização. Nessa mesma linha, Kennya Passos (2017) destaca:
As relações de gênero se constituem assim por relações de poder não estáveis que se estabelecem em vários níveis e espaços sociais, nos quais mulheres e homens não ocupam lugares estáticos de dominadas e dominantes, vítimas e agressores, havendo resistência e possibilidade de mudança, justamente por se tratarem de relações históricas e consequentemente mutáveis. Da mesma forma, sujeitos generificados e o antagonismo que se estabelece entre eles com a inferiorização feminina não são aspectos inerente à condição humana, naturalísticos e universais, mas o resultado de práticas estratégicas de poder que se engendram nas relações sociais cotidianas (PASSOS, 2007, p. 28).
É possível apontar que, via de regra, vivemos sob a égide de um sentimento geral de dominação masculina que nos é dado desde os primórdios, onde o crime de estupro passa a ser compreendido a partir das bases históricas que davam ao homem plena autonomia e liberdade de se comportarem como quisessem.
O direito à igualdade se mostra novamente uma realidade formal onde a realidade material, é permeada por lutas e esforços que tendem a garantir a observância das disposições dadas pela norma jurídica, em que a mulher é o sujeito mais lesado pela não efetivação de tal primado.
A discussão sobre a efetivação de direitos na seara penal deve ser analisada para se perceber se o sistema de justiça teria por escopo a defesa de bens jurídicos de interesses comuns a todos os cidadãos, ou somente para cumprir os ditames da lei sem levar em conta as particularidades de cada situação.
Essa função se daria:
[…] Através de um combate à criminalidade, independentemente de sua origem, no qual estariam assegurados a todos os princípios relevantes ao Estado Democrático de Direito (legalidade, igualdade jurídica, devido processo legal e etc), com a consequente responsabilização dos agentes e prevenção de novos delitos instrumentalizada pelas funções atribuídas à pena (abstrata e concreta), de desencorajamento de novas práticas e reabilitação do indivíduo (PASSOS, 2017, p. 72).
Apesar das aspirações expostas parecem uma utopia, se considerarmos as dificuldades já apresentadas, deve-se levar em consideração que a legislação tem tentado dar condições normativas para a repressão do crime de estupro. Mesmo que o sentimento social seja tendente a culpabilização da vítima, não é possível afirmar que a sociedade como um todo compactua para a ocorrência dos casos de violação à liberdade sexual.
É preciso demonstrar como os avanços da nossa legislação estão destinados à repressão do crime de estupro, apontando de quais maneiras esses mecanismos são inseridos e como a moral social os recebe. Para Vilhena (2001 apud Kennya Passos, 2017), o crime de estupro é o resultado da relação de poder fruto de uma cultura não-livre:
O estupro seria uma expressão de uma ideologia social do domínio masculino. Em culturas onde a incidência de estupro é maior, a autoridade e o poder das mulheres são menores. São os homens que dominam e que possuem o poder. O estupro seria uma forma de expressão da identidade masculina norteada pela violência interpessoal e por uma ideologia da força. Já em culturas livres de estupro a participação das mulheres é respeitada e é parte presente da comunidade. Sociedades livres de estupro são caracterizadas pela igualdade e complementariedade, e a atitude das pessoas com respeito ao meio ambiente é de reverência, ao invés de exploração. Não é importante se os papéis sexuais são semelhantes ou diferentes, e sim se ambos os sexos têm acesso a esferas de poder equilibradas. (VILHENA, 2001 p. 58).
2.4 A vítima sob a influência do sentimento de culpa e o posicionamento jurídico
Em 1971, William Ryan realizou um estudo nos EUA a respeito das minorias étnicas do país onde se verificou que, para a classe média, a culpa da pobreza era dos pobres. Desse estudo, o termo inglês “VictimBlaming” surgiu como expressão do sentimento de culpa das pessoas por sua própria pobreza.
A partir de então, a essência do termo passou a ser aplicada em diferentes pontos de vista. Em relação ao crime de estupro, pode ser entendido como o fato que leva uma vítima se responsabilizar pela conduta do seu agressor como se, de algum modo, sua conduta tivesse causado o fato.
Nessa premissa, Machado (2006) defende que o estupro é um paradoxo, pois embora entendido como um ato que deve ser combatido é contra suas vítimas que recaem as maiores consequências. Sobretudo na forma de vergonha e culpa que as levam a rituais íntimos de “conserto”, enquanto seus transgressores só se colocam em posição de reparação quando o crime se torna público.
O mesmo entendimento é dado por Walker (1993 apud Kennya Passos, 2017) onde diz que a mulher vítima de estupro sofre um processo de auto-desqualificação que a leva a assumir o “estereótipo do papel sexual prescrito às mulheres” enaltecendo sentimentos de culpa e responsabilidade pelas ações do agressor.
Lima (2012) sustenta que o adestramento da sexualidade feminina é causa para que haja certa tolerância social para com a conduta criminosa e que a vítima sofra com a interferência do julgamento social sobre si, que tende a atribuir o comportamento da vítima como causa para o estupro:
A investigação social sobre a contribuição da vítima para a ocorrência do crime está edificada no controle da sexualidade feminina. Na verdade, todos os modelos de conduta apontados como tipicamente femininos são explicados culturalmente como a melhor forma de evitar maiores males. Para as massas, se a mulher é cuidadosa e não se desvia das regras comportamentais do seio social, certamente terá menores chances de se tornas vítima de violência sexual. Implica dizer que, para o senso comum, normalmente a mulher só é estuprada se der algum motivo, o qual geralmente está imbricado com sua moral sexual (LIMA, 2012, p. 17).
Os julgamentos exercidos sobre a vítima estão ligados de maneira geral sobre a roupa que estava vestindo, o local e horário onde se encontrava, o nível de álcool no organismo, se o sujeito ativo era conhecido e sobre o seu desempenho sexual. Souza (1998) escreve:
[...] Teria a mulher-vítima se comportado segundo razoáveis padrões decência? Teria demonstrado, nas circunstâncias, suficiente pundonor? Teria a sua conduta se amoldado aos padrões de moralidade pública que a sociedade espera? Não teria a conduta da vítima, de algum modo, ferido o sentimento comum? Ter-se-ia conduzido a vítima de acordo com os padrões derivados do que se entende por bons costumes? [...] a vítima agiu de acordo com os princípios éticos? A vítima conformou-se à moral sexual de seu tempo e do espaço? A vítima apresentou comportamento uniforme? A vítima, antes do fato, era respeitada pela generalidade das pessoas honestas? A vítima, por outro lado, sofreu algum tipo de violência? A vítima resistiu aos propósitos do agente, ou deles dissentiu comprovadamente? [...] se coteja a vítima, ou suposta vítima, com os conceitos de pudor, moral, honra, decência, honestidade, bons costumes, moralidade pública, e outros, a partir dos fatos de que ela haja participado, para se aferir o grau, a qualidade e a profundidade dessa participação, a fim de desses indicativos extrair a verdadeira culpabilidade do acusado e a maior ou menor responsabilidade da vítima pela deflagração do evento tido por criminoso, [...] (SOUZA, 1998, p. 62-66).
Ainda sobre a vitimização feminina, Sommacal e De Azambuja Tagliari (2017) evidenciam que:
Pondera-se que não somente pelo estupro, mas por outras situações cotidianas a mulher tende a receber a culpa: pelo insucesso matrimonial, pela infidelidade conjugal e, até mesmo, pela inexitosa relação sexual. No entanto, nenhuma situação presta compromisso com a origem do problema, ou por quem o praticou; voltam-se os olhares para a vida particular da vítima, acreditando-se ser ela a razão de todos os problemas ocorridos na sociedade (SOMMACAL, DE AZAMBUJA TAGLIARI, 2017, p. 259).
Apesar da forma como as vítimas são julgadas, não se pode conceber a ideia de que o crime de estupro sempre receba pleno tratamento de tolerância. Ao contrário, formalmente, há de se reconhecer que o legislador tenta impelir a transgressão a partir das possibilidades que lhe são próprias, como os avanços legais ocorridos e o desejo, ainda que indireto, de buscar romper com o patriarcalismo que outrora imperava e na aceitação que a mulher é sujeito de direitos.
O sentimento de repúdio social e a busca pela reprimenda ao crime de estupro, no entanto, não são plenos em nosso ordenamento. O Poder Judiciário já se colocou como agente alheio ao fato em uma análise que apurava um caso de violência sexual, como se depreende do seguinte trecho de um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Ementa: Estupro é a posse por força ou grave ameaça, supondo dissenso sincero e positivo da vítima, não bastando recusa meramente verbal ou oposição passiva e inerte (TJSP, RT 488/336) [...] A oposição da vítima deve ser sincera e positiva, manifestando-se por inequívoca resistência (TJ/SP, RT 533/326). Não basta a oposição meramente simbólica (TJSP, RT 535/287), por simples gritos (TJSP, RT 429/400), ou passiva e inerte (TJSP, RT 429/376) (DELMANTO, 2010, p. 695).
Felizmente, tal posicionamento legal não é parâmetro jurisprudencial. É entendimento do STJ que a palavra da vítima se reveste de relevância legal na apuração ao crime e consequente condenação criminal dos casos de estupro:
Ementa: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL.PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR FRAGILIDADE PROBATÓRIA. INOCORRÊNCIA.PALAVRA DA VÍTIMA. RELEVÂNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
2. Neste caso, serviram para lastrear a condenação do paciente, além das provas produzidas na fase inquisitorial, o depoimento da vítima, confirmado em juízo, revelando a autoria e a materialidade da conduta imputada.
3. Nos crimes contra a dignidade sexual, que, normalmente, são cometidos longe dos olhos de testemunhas e sem que existam evidências físicas que confirmem a sua ocorrência, a palavra da vítima, quando confirmada por outros elementos probatórios, adquire especial relevância, tendo valor probante diferenciado.
4. A pretendida absolvição do paciente ante a alegada ausência de prova da autoria delitiva e da materialidade é questão que demanda aprofundada análise do conjunto probatório produzido na ação penal, providência vedada na via estreita do habeas corpus.
5. Habeas corpus não conhecido.
(BRASIL. STF. HC 531.431/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 21/11/2019. Publicação no DJe em 09/12/2019). grifo nosso
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO.
INCIDÊNCIA DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA 7 DO STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR. I - É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima possui especial relevância, uma vez que, em sua maioria, são praticados de modo clandestino, não podendo ser desconsiderada, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios. II - Tendo a Corte de origem, soberana na apreciação da matéria fático-probatória, consubstanciado na palavra da vítima e demais provas carreada aos autos, pela condenação do agravado pela prática do delito de estupro de vulnerável, a pretensão da Defesa de alterar tal entendimento exigiria revolvimento fático-probatório, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ.
Agravo regimental desprovido.
(Brasil. STJ. AgRg no AREsp 1549964/MT, Rel. Ministro Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ/PE), Quinta Turma, julgado em 05/11/2019. Publicado no DJe em 11/11/2019).
Verifica-se a presença do sentimento de culpa das vítimas a partir de análises a respeito do que a sociedade espera que a mulher seja, faça ou se comporte, evidenciando-a como um ser que deve ter suas condutas vigiadas e adequadas a padrões, o que tende a repercutir na apreciação de casos denunciados. Ocorre que, como demonstrado, a conduta pessoal das mulheres têm se mostrado cada vez menos irrelevante ao ponto de o STJ considerar que sua palavra é importante na apuração do fato.
A revolução no pensamento jurídico é adequada e se destina a garantir a efetivação dos primados constitucionais e penais, além de contribuir positivamente na percepção da sociedade sobre o crime. Isso mostra que o combate ao delito é necessário e que todos devem estar ao lado da vítima para que haja a repressão legal do crime. Nessa toada, Kennya Passos (2017) sinaliza que:
Uma vez compreendida a natureza do estupro como um crime de gênero, deve-se percebê-lo não apenas em termos individuais, mas como manifestação de valores. Desse modo, faz-se necessário, antes de analisar as respostas penais e a produção discursiva do Sistema de Justiça acerca das mulheres vítimas de estupro, faz-se necessário ter uma visão de como sociedade brasileira o constrói em seu imaginário, observando os lugares simbólicos atribuídos à sexualidade masculina e feminina, a fim de identificar os padrões culturais que podem influenciar os operadores do direito durante os processos. (PASSOS, 2017, p. 60).
O sentimento de culpabilização da vítima se mostra como fruto de pensamentos enraizados no seio social, onde é preciso haver união de forças para que essa ideia seja reformulada e a devida atenção seja dada às vítimas, dando ao sistema de justiça condições de proceder no seu enfrentamento legal.
O crime de estupro é visto como um crime de poder e dominação feminina mostra através de sua prática que os ideais sociais de domínio são justificadores plenos para a sua realização.
Quanto à etiologia do estupro, sabe-se, hoje, [...] que não se trata de conduta voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer sexual (lascívia desenfreada), como também preconiza o discurso criminológico e jurídico-penal oficial e o senso comum [...] a maioria dos estupros ocorrem dentro de um contexto de violência física em vez de paixão sexual ou como meio para a satisfação sexual (KOLODNY; MASTERS; JOHNSON, 1982, p. 430-431 apud SOMMACAL e De AZAMBUJA 2017, p. 249)
Torna-se evidente que nem mesmo propostas legislativas sobre a castração químico resolveriam o problema da dominação masculina incutida no crime de estupro, como pretende o Projeto de Lei Nº 5398/13 de autoria do então Deputado Federal e hoje Presidente da República Jair Bolsonaro (sem Partido). A questão acerca da dominação masculina presente no crime de estupro é algo cultural, social e moral, não guardando, relação com os ímpetos corporais.
Ademais, leis severas também não garantiriam um enfrentamento eficaz do problema, pois não se atinge questão da dominação masculina. Faz-se necessário discutir o crime de estupro a partir de análises que garantam um melhor entendimento sobre o tema, não proporcionados por verificações de bases eminentemente legais.