Capa da publicação Livre arbítrio x culpabilidade: entre Spinoza e Jakobs
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Direito Penal e livre arbítrio: Spinoza e Jakobs como possível solução para a teoria da culpabilidade frente às descobertas recentes sobre o livre arbítrio

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26/01/2025 às 17:32
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O artigo analisa o impacto do livre-arbítrio no Direito Penal, questionando sua base com avanços neurocientíficos. Como sustentar a culpabilidade sem a liberdade de escolha?

Introdução

O debate sobre o livre-arbítrio é um dos mais profundos e complexos na história do pensamento humano, influenciando desde a teologia até o Direito. No campo penal, a ideia de que uma pessoa age livremente é essencial para fundamentar a culpabilidade e a responsabilização. No entanto, avanços científicos, especialmente na neurociência, desafiam a noção de livre-arbítrio, levantando questões críticas para o Direito Penal. Este artigo propõe uma análise do funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs como uma alternativa robusta para sustentar o Direito Penal, mesmo diante da possível inexistência do livre-arbítrio.

O funcionalismo sistêmico de Jakobs é tido como possível solução para a teoria do Direito, pois, como será argumentado, ele independe do conceito de livre-arbítrio. Sendo feita primeiramente uma introdução ao pensamento cristão originário, isto é, o pensamento da igreja católica em períodos próximos à sua fundação até a idade média. Isto, pois, se entende que foi ali que o conceito de livre-arbítrio passou a ser mais investigado e começou a integrar base fundamental do pensamento ocidental como um todo. Foi feita principalmente uma análise do pensamento de Santo Agostinho, bem como um breve contraponto efetuado pelo calvinismo. Na segunda seção, serão explicados os fundamentos das concepções filosóficas sobre o tema, principalmente a visão de Bento de Espinosa e Jean-Paul Sartre, cujo entende-se que se tratam de visões antagônicas. A dicotomia criada neste capítulo permite explicar, respectivamente, a visão de um determinista e uma visão bem mais liberal.

Também, se propõe a fazer uma breve síntese das recentes descobertas da neurociência, bem como fundamentar estas descobertas empíricas com o pensamento filosófico de Bento de Espinosa, ao passo que analisar o problema de um cientificismo no direito, fazendo um ensaio sobre a irreflexão frente ao problema do livre arbítrio. Além disso, explicar ambas as correntes contemporâneas fundamentais do neurodireito, cujo uma é adepta do desenvolvimento do direito conforme a ciência, claro, variando de autor a autor quanto ao grau de adequação da ciência jurídica com as outras ciências. E o outro lado, que abomina a ideia, argumentando que o direito se trata de ciência separada. Günther Jakobs, pertence a este ramo, sendo, de fato, o que mais se adequa a toda sua teoria. Enfim, defender como seria possível adequar o sistema jurídico brasileiro atual às ideias propostas por Jakobs e Espinosa.


1. O livre arbítrio a partir de Deus

Vós que viveis atribuís tudo à influência dos astros, como se tudo fosse movido por eles e só por eles. Se assim fosse, não haveria livre arbítrio nem haveria sentido no júbilo ou no luto, pois nada seria evitável. O céu inicia vossos movimentos, mas não todos. Porém, mesmo que assim fosse, ainda seríamos responsáveis, pois nos é dada à luz para distinguir o bem do mal. Natureza melhor e mais poderosa vos rege: a que é criada por vossas mentes, e que o céu não controla. (ALIGHIERI, 2000, p. 125)

Podemos dizer que o primeiro grande pensador a conceituar liberdade foi Santo Agostinho, e bem, sua definição é tão importante que permanece, de certo modo, até hoje. Para Agostinho, o livre arbítrio se prova com a possibilidade dada por Deus de sua criação poder agir livremente, obedecendo ou não, tendo, porém, consequências. Isto é, o pecado original é a prova do livre arbítrio. E então, com a vinda de Jesus, houve a reconciliação da humanidade com Deus, Deus este, que mesmo sabendo o fim de tudo e todos, permite a cada um tomar a sua ação. O ser humano, por conta do livre-arbítrio, tem a possibilidade de se reconciliar com Deus ou não. Como dito antes, aqui Deus tem o conhecimento prévio de todas as possibilidades, mesmo antes que tenhamos nascido, tudo a ele já é sabido, visto que a onisciência se trata de uma das características inerentes ao Deus cristão. “Para Agostinho, o livre-arbítrio é um Dom de Deus, conferido ao homem, permitindo-o agir livremente segundo a sua vontade. É a utilização consciente da liberdade, guiada pela vontade. Ele torna-se causa do mal, por meio dos que o recebem, pois estes não o usam devidamente.” (ONESKO 2018. p. 6).

Tudo é, portanto, conhecido por Deus, o que, em si, não contradiz o livre arbítrio, pois, por mais que o mesmo saiba o que irá acontecer, Ele não retira dos homens a possibilidade de escolher suas ações. Ele não intervém diretamente nas ações individuais dos homens.

Agostinho também difere a liberdade do livre arbítrio. Livre-arbítrio é a possibilidade de escolher entre o bem e o mal; enquanto a liberdade é um juízo moral, cujo se entende como o bom uso feito do livre-arbítrio. Isto é, o livre arbítrio é aqui, uma forma mais elementar de agir livre. Sendo entendida como forma pura de agir, anterior à liberdade. Ou seja, nem sempre um homem que age como quer, utilizando seu livre arbítrio, é livre, isto depende de como ele vai efetuar este uso.

Talvez sua mais famosa contribuição seja quanto a falta de substância do mal, “Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal? ”. (AGOSTINHO, 1995, p. 24). Agostinho argumenta que Deus não é o autor do mal, pois não poderia surgir sua natureza, coisa diferente do bem. Assim, o mal é o pecado quando o homem se afasta de Deus. O mal não tem substância, trata-se apenas da ausência do bem. Isto é crucial para entender a visão do autor, visto que, muito deste entendimento, se baseia na ideia do livre arbítrio, cujo foi dado ao homem, para que este viva retamente, visto que se o homem não pudesse agir livremente, o seu pecado não poderia ser culposo, isto é, em um mundo qual Deus determina todos os passos dos homens, os homens não são pecadores, visto que foi Deus quem determina suas ações, logo, não seria justo haver uma punição metafísica para ações cujos homens nunca tiveram o controle. “Ninguém está forçado a pecar, nem por sua própria natureza, nem pela natureza de outro, logo só vem a pecar por sua própria vontade.” (AGOSTINHO, 1995, p. 203)

A definição de Agostinho é, obviamente, muito mais teológica do que filosófica, visto que seu telos está necessariamente vinculado a uma resposta suprema a tudo, Deus. Assim, a concepção de Agostinho é bastante interessante, porém, mesmo dentro daqueles que creem no mesmo Deus, e seguem (quase) a mesma bíblia, existem divergências quanto ao livre arbítrio. É muito conhecida a doutrina de predestinação, sustentada principalmente pelo calvinismo. Baseando-se principalmente em passagens como Romanos 8:29-30. Efésios 1:4-5 e 1:11, entre tantas outras. A teologia da predestinação de Calvino afirma que Deus, em sua soberania absoluta e onisciência, determina todos os eventos e destinos conforme sua vontade eterna. Não se limita a prever o futuro, mas estabelece previamente tudo de forma imutável. Embora frequentemente incompreensível para o entendimento humano, o agir divino é livre, justo e pleno de propósito, revelando a glória de Deus ao reger todas as coisas segundo seus desígnios perfeitos.


2.A compreensão antagônica de liberdade em Espinosa e em Sartre.

Avançando bastante na história, deve-se citar aquele que é o principal referencial para este artigo, Espinosa. O filósofo ficou muito famoso por sua compreensão única e revolucionária de Deus. Por sua definição de Deus não se tratar do foco do estudo, mas por ser necessário o mínimo entendimento deste termo para poder-se falar sobre a liberdade na perspectiva deste autor, será realizada breve síntese.

Deus sive natura, traduzindo, Deus ou a Natureza, é o modo mais fácil de entender o que o autor compreende por Deus. Qualquer divindade seria a simples projeção das características humanas sobre uma realidade externa, sendo clássico de sociedades primitivas a criação de algo para justificar o desconhecido, logo, para Espinosa, Deus seria criado e não criador. “As pessoas consideram todas as coisas naturais como meios para seu próprio benefício, sabendo que estes meios não foram fornecidos por elas mesmas”. Assim, o autor cria a concepção de um Deus baseado no trecho bíblico de êxodo 3;13, qual Deus afirma “ser o que sou”, assim, brilhantemente, Espinosa afirma que Deus é o todo, e está em tudo, é a natureza, com seus entes sendo modos de expressão da substância, que é Deus, ou seja, os entes são expressões limitadas da totalidade, não havendo nada fora da natureza. Logo, por Deus se confundir com a natureza, não possui ele qualquer vontade ou afeto, tudo ocorre em uma relação de causa e efeito, logo, não existem milagres propriamente, visto que este Deus não poderia escolher agir contra a natureza, visto que o mesmo é ela. Logo, conhecer Deus é conhecer a natureza. Feita esta breve síntese, podemos partir para o conceito de liberdade neste filósofo.

No seu livro Ética, na definição 7, do livro I, Espinosa explica: “Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que, por si só, é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada”. Ou seja, livre é o sujeito que age somente em razão da necessidade de sua natureza. Uma definição estranha, visto que causa, ao primeiro olhar, uma certa contradição lógica: como algo poderia ser livre se está vinculado às necessidades de sua natureza? De fato, em Espinosa, o agente livre não poderia agir de outro modo senão consoante as regras que sua natureza impõe, isto é, o agente é livre quando age em razão de sua autodeterminação.

Como as coisas particulares não são mais do que modos quais os atributos de Deus se exprime, a ação humana não poderá ser considerada livre, mas determinada pela própria natureza da substância (Ética, proposição XV, livro I)

Na proposição 26, livro I, Espinosa vai dizer que não é admitida a contingência, isto é, Deus é totalmente imanente, e por lógica, é a causa imanente de tudo, e o homem possui papel secundário. Deus não pode ser coagido. “Deus é causa eficiente não apenas da existência das coisas, mas também de sua essência.”, Deus é causa de si e de todas as coisas. “Deus é causa eficiente não apenas da existência das coisas, mas também de sua essência.”Se algo foi determinado a operar de um modo, é seguindo sua natureza, esta que é Deus, logo, se algo é determinado a operar de alguma maneira, foi necessariamente determinado assim por Deus. Tudo é contingente, não existe espaço para incontinência. Tudo é determinado a agir segundo um modo definido.

Na proposição 32, Espinosa chega, assim, à questão da vontade livre. “A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária.” Esta frase é fundamental para entendermos o agir livre em Espinosa, ela manifesta de maneira brilhante como para o filósofo, o intelecto e a vontade seriam apenas um modo definido de pensar, logo, nenhum ato de vontade pode ser concebido a não ser por uma causa, em uma relação de causa e efeito ad infinitum. “Seja qual for a maneira pela qual a vontade é concebida, seja como finita, seja como infinita, ela requer uma causa pela qual seja determinada a existir e a operar. Portanto, ela não pode ser causa livre, mas unicamente necessária ou coagida.” (p. 37). Assim, o livre arbítrio, enquanto vontade livre, é puramente, uma ilusão, uma ficção que criamos para legitimar as instituições. Não podemos, logo, considerar livre agir sem uma causa. A sensação de liberdade é, portanto, mera ignorância, frente à complexa rede de causalidades que incide sobre nossas decisões.

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A vontade humana se manifesta, porque foi necessário que esta o fizesse daquele modo, ela foi determinada, no sentido de provocada, causada, não podendo ter se manifestado de outra maneira. Corrobora essa visão na proposição 33, cujo Espinosa defende que nada poderia ter sido de outro modo, ou dizendo melhor, não existe possibilidade, no sentido de que as coisas acontecem e não poderiam ter acontecido de outro modo. Espinosa diria que, se as coisas tivessem podido ser de outro modo, ou se tivessem a possibilidade de ser determinadas a agir de outro modo, obviamente, o universo também deveria ser diferente do que é. Isto é, tudo ocorre em uma relação de causa e efeito, onde as coisas são como são e não poderiam de nenhum outro modo não o serem. Não há vontade livre, há vontade determinada, não há agir, não há vontade sem uma causa. Dada a materialidade que te compõe, e o mundo que está diante de você, bem como as hipóteses de vida que passam pela sua cabeça, o qual são as únicas que poderiam passar, você só poderia tomar uma decisão.

E por último, trazendo a definição de liberdade em Jean-Paul Sartre, que muito inspirado em Nietzsche e Heidegger, vai dizer que a existência precede a essência, ou seja, antes de nascermos, há o nada, não somos, portanto, predeterminados a algo, não possuímos configurações que nos levem a ser algo ou não, nós, por meio de uma ação livre, tomamos nossas ações, que por meio destas, tornamo-nos o que somos (não no sentido nietzschiano). Logo, somos livres para praticarmos algo ou não, sempre existem dois caminhos possíveis, qual escolhemos por vontade própria.

A liberdade humana, da perspectiva sartriana, é a escolha irremediável de certos possíveis: o homem não é, mas faz-se. Não há futuro previsível e nem ao menos algumas cartas marcadas de antemão. Há, isso, sim, o movimento através do qual o Ser do homem faz-se isso ou aquilo — escolhas que, por seu turno, serão feitas a partir de certas situações. A concepção de liberdade em Sartre Vol. 6, nº 1, 2013. www.marilia.unesp.br/filogenese 96 jamais encerradas em algum tipo de determinismo. (YAZBEK, 2005, p. 142).

Porém, mesmo sem haver consequências metafísicas, existem, para Sartre, consequências em todo o agir livre. Ao optarmos por um caminho, negamos o outro, negamos tudo o que poderia acarretar aquele outro, o fazemos livremente, é claro, mas decerto, sempre que optamos por fazer algo ou não fazer, ou talvez, fazer de outro modo, morre no mundo uma potencialidade que jamais se concretizará. Logo, “A escolha é possível num sentido, mas o que não é possível é não escolher” (SARTRE, 1973, p. 23).

O homem, portanto, é livre e condenado a sê-lo “É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. (SARTRE, 1973, p. 15).” Porém, a condenação à liberdade acaba por levar o homem à necessidade da escolha, introduzindo a angústia na vida humana. A angústia diante da liberdade significa algo diante de si, quando o homem está diante de uma nova escolha, que ameaça modificar sua vida e seu ser, se sente angustiado. Sendo neste sentimento o momento em que o homem toma consciência de sua liberdade, é na angústia que a liberdade está em seu ser, colocando-se a si em questão. (SARTRE, 1998, p.72).

São outras diversas as compreensões de liberdade e de livre arbítrio, porém, estas são de longe as mais importantes e utilizadas no mundo atual. Assim, cabe agora analisar qual a importância deste conceito no direito, principalmente no direito penal, e como uma possível descoberta científica poderia abalar toda a teoria do crime.


3. Liberdade e Direito Penal: culpabilidade e exigibilidade de conduta diversa

A culpabilidade no Direito Penal é analisada sob três perspectivas principais. Primeiro, como fundamento da pena, determinando a possibilidade de aplicá-la ao autor de um fato típico e antijurídico, desde que atendidos os requisitos de capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta conforme a norma. A ausência de qualquer desses elementos impede a aplicação da sanção penal. Em segundo lugar, a culpabilidade é vista como limite ou medição da pena, definindo que a punição deve ser proporcional à gravidade da culpabilidade, evitando excessos punitivos e considerando fatores como a importância do bem jurídico e os fins preventivos. Por fim, a culpabilidade é interpretada como oposição à responsabilidade objetiva, assegurando que a responsabilização penal ocorra apenas em casos de dolo ou culpa, vedando a atribuição de responsabilidade por resultados imprevisíveis ou alheios à conduta do agente. (Bitencourt, 2018, p. 641). Ao passo que a função da culpabilidade é limitar a punição estatal, para haver um juízo de individualização para poder atribuir corretamente a responsabilidade penal, garantindo uma punição justa, respeitando o princípio nulla poena sine culpa.

Ainda segundo Bitencourt, o surgimento da culpabilidade, na medida em que podemos apurar, surge na Itália nos séculos XVI e XVII, na doutrina do Direito Comum. Também,

O Direito Natural, do qual Puffendorf (1636-1694) é reconhecido como autêntico representante, apresenta a primeira aproximação à teoria da culpabilidade, partindo da ideia de imputação, que corresponderia à atribuição da responsabilidade da ação livre ao seu autor, ou seja, atribuía-se a responsabilidade penal àquele que, livremente, praticasse a ação. (...) (BITENCOURT, 2018, p. 646).

Posteriormente, vieram os hegelianos, qual a imputação subjetiva deveria ser fruto de uma conduta livre, sendo fruto do livre arbítrio (visto que para Hegel, este é anterior à liberdade, cujo conceito depende da observância da norma), antecedida de uma vontade individual que contrariava a vontade geral, que era simbolizada pela lei. (BITENCOURT, 2018, p. 646). Porém, é somente no Século XIX, que houve de fato uma sistematização da ideia de culpabilidade e da teoria da culpa em si. Principalmente formulada por Von Liszt, criando a teoria psicológica da culpabilidade, tendo forte relação com o naturalismo-causalista, orientado pelo pensamento positivista do século XIX. Aqui, a ação é fruto de um processo causal proveniente, outrossim, do impulso volitivo.“A culpabilidade é a responsabilidade do autor pelo ilícito que realizou”, a culpabilidade trata-se de um liame subjetivo entre o autor e o fato.

Foram desenvolvidas outras diversas escolas teóricas quanto à culpabilidade. Tais como a psico-normativa, normativa, finalista e principalmente, a funcionalista. A teoria adotada no ordenamento jurídico-penal brasileiro é a Teoria da Culpabilidade Limitada. Esta teoria adota como critério para atribuir a culpabilidade a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

3.1. Funcionalismo e culpabilidade

Na perspectiva funcionalista, o Direito é entendido como um subsistema social que deve cumprir funções específicas, alinhando-se a uma abordagem normativista semelhante à defendida pelos neokantianos. Não se fala em um único funcionalismo, mas em múltiplas vertentes, destacando diferenças significativas dentro da dogmática penal.

Conforme Roxin, o direito penal deve se guiar pela sua função, a proteção dos bens jurídicos mais fundamentais, logo, limitar o Direito Penal a somente o que é absolutamente indispensável socialmente. O fundamento da culpabilidade reside na atuação injusta, a despeito da dirigibilidade normativa, ou seja, só é possível falar em culpabilidade quanto o indivíduo pratica seu ato antijurídico, mesmo sendo possível que seguisse a norma. Considera o estado mental do indivíduo, porém, é indiferente saber se a vontade do agente se fundamenta no livre arbítrio ou em algo determinado.

Admoesta que o Direito deve supor a liberdade, mas não afirmar a sua existência porque não é passível de demonstração empírica, portanto, a liberdade é uma “afirmação normativa”.

Roxin alega que o retributivismo penal, alicerçado na ideia de livre arbítrio, é na realidade, uma tentativa de buscar algum ideal de justiça divina na terra. Obviamente, pela absoluta impropriedade do meio, jamais poderia esta situação ser almejada pelo Direito penal, isto é, uma justiça absoluta e sem erros. (ROXIN, 2004. p. 32. )

Logo, é possível conciliar essa visão com os dois pontos de vista, determinismo ou livre arbítrio:

A ideia de Roxin é a de que os indeterministas, partidários da existência do livre-arbítrio, poderiam aceitar com facilidade a suposição de liberdade que subjaz à sua teoria. De igual sorte, os deterministas não teriam problemas em admiti-la, na medida em que não se afirma a existência do ‘poder agir de outro modo’, mas sim que, quando há uma capacidade de controle intacta – e com ela, a dirigibilidade normativa – é tratada como livre” (ARAÚJO, 2014. p. 88).

Sobre Jakobs, o mesmo é ex-aluno de Welzel, e é um dos mais brilhantes penalistas vivos, e possivelmente, da história. Sua teoria é chamada de funcionalismo sistêmico (ou radical), por tratar o Direito Penal como subsistema da sociedade, qual sua função é proteger a ordem jurídica, detendo o poder de punir caso alguém viole, com a punição sendo a restituição da validade da norma. Adentrando sua teoria, encontramos a sua visão sobre a culpabilidade, a teoria de Jakobs apresenta maior consistência lógica no contexto normativo. Isto é, o autor é bastante verdadeiro, ele não fala que sua teoria é a ideal, mas é a mais real. Por mais que sua perspectiva seja normativa, e se assemelhe ao dever-ser, o mesmo a cria observando o que é, e não como deveria ser. A teoria de Roxin é sem dúvida, bastante realista, mas é ainda em certo ponto, fantasiosa, ao passo que Jakobs observa a realidade com lentes pessimistas, porém, com sua observação o mesmo formula uma teoria coesa em si, por menos humanista que ela seja, ela é sem dúvida, a teoria com menos “furos” do ponto de vista dogmático.

Feita esta introdução sobre o autor, devemos entender de fato o que o mesmo propõe. Sua concepção de direito penal é muito influenciada pela teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, na filosofia do direito de Hegel e nas concepções de Carl Schmitt. Jakobs cria a ideia de expectativa normativa, que se trata de uma expectativa que haja um comportamento conforme a norma, cujo, caso ocorra uma infração da norma, há a frustração da expectativa normativa, de modo que legitime uma punição do Estado para com o indivíduo, tendo como intuito restaurar a validade da norma. Como mencionado antes, sua concepção de função do direito penal está muito próxima da função da pena em Hegel (retributivismo jurídico), a qual a pena serviria para reafirmar o direito, visto que foi violado pelo criminoso. Assim, concordando com Jakobs, o único modo de explicar o crime é a partir de uma teoria dos sistemas, não por uma teoria da moral, visto que uma teoria moral não pode expressar o sentido da configuração normativa. Assim, aquele que comete um homicídio, viola a ordem normativa, logo, o Estado tem o direito de puni-lo para restaurar a validade da norma.

A sociedade é, aqui, o produto das normas, tal como as pessoas produzem normas, mas são também produzidas por normas. A punição serviria para a comunidade como um símbolo da seriedade do ordenamento, demonstrando como, para conviver nessa sociedade, é necessário o respeito às normas desta sociedade. Quando alguém comete um crime, ataca, por meio do delito, toda a sociedade, frustrando a expectativa da comunidade jurídica no cumprimento da norma, sendo obviamente necessário entender como nocivo à conduta delituosa, precisando punir e culpar quem o fez. “A prestação que realiza o Direito Penal consiste em contradizer a contradição das normas determinantes para a identidade da sociedade.” (JAKOBS, 1996, p. 18.).

Sobre o bem jurídico, Jakobs vai na contramão do aceito pela maioria, por mais que parta de premissas semelhantes, tal como a legitimação do poder punitivo. Porém, para Jakobs, não existe um conteúdo genuíno para as leis penais, assim, as normas penais possuem conteúdo relativo ao contexto da vida social de que fazem parte. O direito penal contribuiria na configuração da sociedade e do Estado, justamente para garantir a validade das normas, ao passo que a garantia das normas se baseia na expectativa normativa. “Se um agente agride fisicamente a vítima, essa experimentaria uma decepção em relação à expectativa de observância da norma, por parte do agressor. A imposição da pena restauraria essa garantia da norma.” (ARAUJO, 2014, p. 93). Logo, o bem jurídico protegido pelo direito penal é a afirmação da validade da norma em relação à expectativa normativa.

Agora, sobre a culpabilidade, como dito antes, adota uma concepção normativista, partindo da premissa de que a função da pena é reafirmar a vigência da norma, entende que a culpabilidade constitui “uma falta de fidelidade ao direito”, justificando a imposição da pena.” (QUEIROZ, 2008, p. 288). Logo, quem comete um crime preenche-se de culpabilidade, caso este se inicie de falta de motivação jurídica dominante e o autor seja responsável pela falta. A responsabilidade é, portanto, resultado da falta de disposição de motivar-se consoante com o que prevê a norma. “Tal responsabilidade por uma motivação jurídica dominante deletéria, inserido num comportamento antijurídico, trata-se da culpabilidade.” (QUEIROZ, 2008, p. 288).

A imputabilidade não é uma característica intrínseca do sujeito nem algo que possa ser constatado empiricamente. Trata-se de uma atribuição funcional, aplicada quando cumpre um papel na resolução do conflito jurídico, podendo ser afastada apenas quando o conflito pode ser interpretado de outra maneira. Ela vai além do estado psíquico do autor, envolvendo também a função social da imputação para assegurar a fidelidade às normas.

O sujeito imputável é considerado igual aos demais, e essa igualdade serve como parâmetro para analisar o processo de motivação normativa. Por outro lado, o inimputável, sendo desigual, não permite avaliar sua transgressão pelo mesmo critério, pois sua condição impede a análise do grau de motivação normativa típica do homem médio. Assim, a violação de uma norma por um imputável implica uma transgressão exemplificadora, lesando a validade da norma. Já a transgressão por um inimputável não possui essa característica, pois sua desigualdade impede que sua conduta seja tomada como exemplo para outros. No entanto, Jakobs argumenta que, em alguns casos, a conduta do inimputável pode representar um ataque à validade da norma e justificar a atribuição de culpabilidade.

Ele exemplifica com o caso de um psicopata assassino: enquanto a medicina não oferecer um tratamento eficaz, a transgressão desse indivíduo continua sendo exemplificadora, representando uma afronta à validade da norma. Nessa situação, o conflito não pode ser compreendido de outra maneira.

Quanto à inexigibilidade de conduta diversa, ocorre quando uma pessoa, que age em conformidade com a norma como qualquer outro imputável, ameaça a validade das normas por uma motivação que diverge daquela que a qualifica como pessoa. Nesse contexto, não é relevante se o autor poderia ter agido de maneira diferente diante das circunstâncias. O ponto central é se a motivação que orientou sua ação pode ser atribuída a outro sistema ou explicada pela causalidade, desvinculando-a, assim, da deliberação consciente do agente.

Responsabilidade, então, seria “uma falta de disposição de motivar-se conforme a norma, de tal modo que esse déficit não pode ser compreendido sem que isto afete a confiança geral na norma” (MELLO, 2010, p.246.). Pelo fato da pena desempenhar função de estabilização do sistema normativa, frente a uma perspectiva de prevenção geral positiva, sem a culpabilidade não haveria como falar em lesão juridicamente relevante, visto que o bem jurídico aqui é a expectativa quanto a validade da norma, a finalidade da pena não se verifica no injusto penal, mas na verificação da ocorrência de culpabilidade. As discussões sobre o livre-arbítrio têm relevância limitada nesse contexto, pois o foco não está em determinar se o agente possui ou não alternativas ao praticar a conduta. No entanto, é essencial que exista, para o agente, um espaço de liberdade, distinto da ideia de liberdade de vontade. Isso porque, sob uma perspectiva preventiva-positiva, como propõe Jakobs, a sanção penal só se legitima se o agente não estiver impossibilitado de escolher outra alternativa. Quando o agente age sem essa margem de escolha, suas ações não frustram as expectativas normativas, preservando a integridade do sistema jurídico.

Sobre o autor
Odair Fernando Duarte Junior

Formando em Direito pelo Mackenzie. Possui interesse em Direito Penal, filosofia e teologia. Dedica seus estudos a um grupo de pesquisa em criminologia e politica criminal, bem como, no estudo da filosofia da religião

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JUNIOR, Odair Fernando. Direito Penal e livre arbítrio: Spinoza e Jakobs como possível solução para a teoria da culpabilidade frente às descobertas recentes sobre o livre arbítrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7879, 26 jan. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112595. Acesso em: 30 jan. 2025.

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