6. O funcionalismo sistêmico e o “determinismo” de Espinosa como possível adequação teórica justificadora do direito frente às recentes mudanças.
No século XVII, o filósofo Bento de Espinosa (ou Baruch Spinoza) já havia desafiado a concepção tradicional de livre-arbítrio, afirmando que este não passava de uma ilusão oriunda de nossa ignorância acerca das causas que nos movem. Para Espinosa, somos governados por afetos, tanto externos quanto internos, que moldam e determinam nossas ações sem que delas tenhamos plena consciência. À luz das descobertas recentes da neurociência, essa perspectiva revelou-se notavelmente atual. O que chamamos de decisão livre é, em verdade, o produto de um intrincado entrelaçamento de memórias, valores morais, desejos e resistências.
Mesmo as escolhas que julgamos mais racionais ou elevadas são, no fundo, determinadas por forças afetivas que as antecedem. A ideia de um “eu” isolado, capaz de agir sem referência emocional, intelectual ou social, é não apenas improvável, mas também logicamente absurda. Sem os afetos que nos impulsionam, um suposto ego completamente desconectado dessas influências seria incapaz de qualquer iniciativa.
Alguns argumentam que, mesmo com essa conclusão, desafiando a noção clássica de liberdade, ela não invalida a utilidade prática do conceito de livre-arbítrio. Na esfera social e jurídica, o livre-arbítrio é uma convenção indispensável, estruturando interações e sustentando a responsabilidade moral e legal. Sem essa ficção compartilhada, o julgamento de crimes e a aplicação de sanções perderiam sua base funcional. Por mais que o criminoso seja movido por afetos que escapam ao seu controle consciente, o conceito de livre-arbítrio é crucial para manter a ordem social.
Entretanto, como aponta Sánchez, fundar o Direito em uma premissa sabidamente falsa é problemático. Porém, como dito antes, não se defenderá aqui a introdução de ideias da neurociência na ciência jurídica, isto, pois, comprovar o determinismo é bastante complexo, tal como comprovar empiricamente a existência do livre arbítrio. Novamente citando a ideia de Claus Roxin (2008, p. 147), que também critica o critério do livre-arbítrio, pois, além de empiricamente inverificável, é inviável, o que obviamente causa o fracasso do conceito. Assim, o mesmo conclui que a apreciação da culpabilidade, amparada em um fenômeno não verificável, deveria levar sempre à absolvição em face do princípio de in dubio pro reo. Obviamente, não se defende aqui um abolicionismo, nem Roxin o faz. O que Roxin demonstra, na verdade, é a falha lógica em colocar a culpabilidade e o livre arbítrio como bases do direito penal.
Outrossim, dada a dificuldade (ou inviabilidade) em demonstrar empiricamente a existência do livre arbítrio, se sustenta, portanto, uma concepção que este seja indiferente, logo, a concepção de Günther Jakobs e seu funcionalismo sistêmico. Enquanto a teoria de Roxin explora a relação entre o Direito Penal e o conceito de livre-arbítrio, a proposta de Jakobs rejeita completamente essa base, substituindo-a pela validade normativa (Miranda, 2018. p. 147.).
O funcionalismo sistêmico de Jakobs, permite que se afastem os direitos fundamentais do núcleo do sistema penal e da culpabilidade, priorizando a preservação da ordem normativa. Sua defesa do Direito Penal do Inimigo exemplifica essa abordagem, permitindo abusos jurídicos desde que sirvam para reforçar a validade das normas. Apesar das objeções de cunho humanista, a teoria de Jakobs oferece uma justificativa sólida para a sanção penal em um mundo onde o livre-arbítrio é considerado inexistente. Isto é, mesmo que posteriormente se prove ou não sua existência, isso aqui, não faz qualquer diferença. A teoria é fechada, ou em outras palavras, dentro da própria teoria não se encontram contradições, mas apesar da coerência lógica da teoria, ela exclui valores liberais tradicionais e reduz as barreiras ao expansionismo punitivo do Estado, tornando-a suscetível a usos político-totalitários.
Jakobs propõe um sistema formal onde a culpabilidade não depende do elemento humano, mas sim da necessidade de pena para preservar as expectativas normativas essenciais à vida em sociedade. Quanto maior a necessidade da pena diante do contexto fático-cultural, maior a culpabilidade. (JAKOBS, 1996). A função da sanção penal, segundo Jakobs, é reafirmar a vigência da norma questionada pelo comportamento delituoso, assegurando que as instituições jurídicas continuam capazes de proteger os bens jurídicos. Logo, a existência do livre arbítrio bem como a discussão sobre isso é de baixa relevância, haja visto que não se trata de saber se havia uma alternativa do agente que pratica a conduta, por mais que se faça necessária um espaço de liberdade, ainda que distinto da liberdade de vontade, obviamente adotando uma visão preventiva-positiva. (LOEBENFELDER, 2001, p. 130.)
Agora, quando a análise dos membros de uma sociedade e sua individualidade, em síntese, Jakobs distingue entre "indivíduos" e "pessoas". Enquanto os primeiros, movidos causalmente por suas satisfações e insatisfações, não são livres, as "pessoas", enquanto titulares de papéis sociais com direitos e deveres, possuem liberdade. Como afirma o próprio autor: "Somente as pessoas responsáveis, e não os indivíduos determinados causalmente, necessitam de esferas de liberdade (...), e somente com pessoas responsáveis é possível garantir institucionalmente as esferas de liberdade." (1996, p. 261.)
Dessa forma, Jakobs subverte a concepção tradicional: a liberdade não é um pressuposto da responsabilidade, mas um constructo derivado de uma ordem normativa. A liberdade, portanto, não é um dado natural, mas uma criação social que decorre da responsabilidade.
Conclusão
Portanto, a negação filosófica do livre-arbítrio não implica o colapso das estruturas sociais, mas exige uma postura de sinceridade frente às novas descobertas. O único modo de seguirmos com as estruturas jurídicas (quase) do mesmo modo que estão, é mudando suas justificativas. Podendo ser por uma postura mais radical como a de Jakobs, que entendemos ser a melhor, visto que é a menos cínica frente ao problema por tratar como irrelevante a existência dessa liberdade de agir. Logo, tratando a culpabilidade como conceito completamente normativo, torna-se, de fato, bastante questionável a influência do neurodireito no direito penal real. Mostra-se útil, no entanto, mostrando como o sistema penal atual é hipócrita e necessita se adequar, de um modo ou de outro, ao mundo atual. Seja mudando sua justificativa ou toda a sua teoria, alocando as descobertas de outras ciências à ciência do direito.
Além dessas 2 (duas) alternativas, existem diversas outras, tais como a de Roxin, cujo sistema penal brasileiro desde sempre foi mais acolhedor, visto que adota diversos de seus conceitos, mesmo que erradamente, ou estranho, ao passo que muitos só atingem seu objetivo ideal quando utilizados por um sistema cujo adere ao funcionalismo-teleológico.
Assim, Espinosa sofreu o herem (חֵרֶם), o equivalente à excomunhão para os católicos, por defender algo que hoje temos quase que como certo, tendo em vista os avanços da tecnologia e principalmente dos estudos frente ao cérebro humano, não como apenas mais um órgão, mas como prontamente, aquilo que porta o que somos, isto é, o mundo existe para nós do modo o qual nosso cérebro o compreende. Novamente, a relação de causa e efeito, seja para Espinosa, seja para a neurociência, é terminativa frente ao estado teórico do direito. Deve-se mudar, ou deve-se ajustar o Direito Penal. Não se pode mais de maneira cínica fingir que a culpabilidade, da maneira que está, corresponde à realidade. Não se pode dizer que as justificativas atuais para a culpabilidade enfrentam os problemas demonstrados na prática. Assim, se algo é útil quando cumpre seu propósito, na prática, a teoria da culpabilidade, tal como é aplicada no Brasil e na maioria do mundo atualmente, é completamente inútil.
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