O ano de 2025 trouxe diversas alterações legislativas, dentre as quais se destaca a Lei nº 15.077/20241, que impõe novas regras ao benefício de prestação continuada (BPC). As mudanças tornam os critérios mais restritivos e ampliam o poder de fiscalização, o que pode impactar significativamente o entendimento jurisprudencial sobre a matéria. Este artigo busca analisar essas novas disposições e suas repercussões na concessão do benefício.
O benefício de prestação continuada é um programa assistencial previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), destinado a garantir um salário-mínimo mensal a idosos acima de 65 anos e pessoas com deficiência, que, em ambos os casos, comprovem não possuir meios de subsistência.
Atualmente, conforme dados do Portal da Transparência, cerca de 4 milhões de pessoas no Brasil recebem o benefício de prestação continuada2, sendo aproximadamente 2,5 milhões de idosos e 1,5 milhão de pessoas com deficiência. Com o aumento contínuo desse número, o governo tem intensificado a fiscalização por meio do chamado 'Pente-Fino'3. A estimativa é de que, mensalmente, sejam cancelados 55.868 pagamentos indevidos, o que pode resultar na suspensão de aproximadamente 670.413 benefícios ao longo do próximo ano.
Foi nesse sentido que o PL nº 4.614/2024 propôs mudanças significativas nas regras para a concessão do BPC, tornando os critérios mais rígidos. Entre as principais alterações sugeridas, destacavam-se:
a revogação de dispositivos que excluíam determinadas rendas do cálculo do benefício,
a exigência de que a deficiência do requerente fosse classificada como moderada ou grave e
a obrigatoriedade do cadastro biométrico dos beneficiários.
O debate em torno do projeto concentrou-se, principalmente, nos impactos dessas mudanças e no risco de retrocesso para famílias em situação de vulnerabilidade. De modo que, durante a tramitação no Congresso, deputados e senadores apresentaram emendas e ajustes, e a sanção presidencial vetou parcialmente alguns dispositivos, resultando na versão final da Lei nº 15.077/2024.
Nesse sentido, a recente legislação introduziu mudanças significativas na concessão e manutenção do BPC. A seguir, destacam-se as seguintes alterações.
Agora, conforme o art. 1º4 da referida lei, é obrigatório o cadastro biométrico para concessão, manutenção e renovação de benefícios da seguridade social, devendo o documento conter cadastro biométrico realizado pelo poder público, nos termos estabelecidos pelo Poder Executivo Federal.
Em localidades de difícil acesso ou em razão de dificuldades de deslocamento por idade, estado de saúde ou outras situações excepcionais, o cadastro biométrico não será exigido enquanto o poder público não fornecer condições adequadas para sua realização.
Além disso, já era necessário o Cadastro Único (CadÚnico), mas agora será obrigatório que este seja atualizado a cada 24 meses para a manutenção do pagamento. Segundo a legislação, as famílias atendidas serão notificadas com 90 dias de antecedência, prorrogáveis por igual período, antes da aplicação de penalidades.
Outrossim, a Lei nº 15.077/2024 trouxe alterações substanciais no critério econômico para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), reforçando a inclusão de todos os rendimentos da família no cálculo da renda per capita. O novo § 3º-A5 do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) estabelece que todos os valores recebidos mensalmente pelos membros da família devem ser considerados, vedando qualquer dedução que não esteja expressamente prevista em lei. Essa modificação busca tornar o critério mais rígido, restringindo o acesso ao benefício e intensificando a fiscalização.
Apesar dessas restrições, manteve-se a regra do § 146 do art. 20 da LOAS, que exclui do cálculo da renda os benefícios assistenciais ou previdenciários de até um salário-mínimo concedidos a idosos acima de 65 anos ou a pessoas com deficiência, quando houver mais de um requerente do BPC na mesma família. Essa disposição visa evitar que a concessão de um benefício inviabilize o acesso de outro membro familiar ao mesmo direito. No entanto, sua efetiva aplicação depende de regulamentação pelo Poder Executivo, o que pode impactar a forma como essa exclusão será operacionalizada na prática.
Com o reajuste do salário-mínimo, os beneficiários do BPC passarão a receber R$ 1.518 mensais, com pagamento atualizado a partir de fevereiro. Para ter direito ao benefício, a renda per capita familiar deve situar-se entre ¼ e ½ do salário-mínimo.
Não obstante o caráter econômico restritivo do benefício, cuja aplicação na via administrativa ocorre de forma rígida, esse critério continua sendo amplamente debatido na jurisprudência, especialmente diante de casos concretos de extrema vulnerabilidade que não se enquadram estritamente nesses limites.
Isso se deve ao fato de que a forma de cálculo da renda per capita nem sempre reflete, de maneira justa, a realidade socioeconômica dos requerentes. Muitas famílias enfrentam despesas elevadas com saúde, alimentação e moradia, além de custos específicos relacionados à deficiência, como medicamentos, terapias e equipamentos assistivos.
Diante disso, a jurisprudência tem evoluído no sentido de relativizar o critério econômico, permitindo uma análise mais aprofundada das condições de miserabilidade do postulante, a fim de garantir o acesso ao benefício àqueles que realmente necessitam.
A Turma Nacional de Uniformização (TNU), por meio da Súmula 11, consolidou o entendimento de que a renda per capita superior ao limite de ¼ do salário-mínimo não deve ser considerada um critério absoluto para a concessão do BPC, permitindo a comprovação da miserabilidade por outros meios.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar os Recursos Extraordinários nºs 567.985 e 580.963, ambos com repercussão geral reconhecida, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do referido § 3º do art. 20 da LOAS. O fundamento para tal decisão foi o entendimento de que o critério de renda estabelecido pela LOAS tornou-se defasado para caracterizar a situação de miserabilidade, especialmente diante das mudanças socioeconômicas ocorridas no país desde a edição da norma. O STF reconheceu que a fixação rígida de um limite objetivo pode excluir do benefício indivíduos que, na prática, encontram-se em estado de vulnerabilidade extrema.
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 185, firmou a tese de que a "limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade. Ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo".
Corroborando com as decisões dos tribunais superiores, o entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) também segue essa linha, destacando-se a Apelação Cível nº 5014278-73.2022.4.04.9999/SC. Neste caso, o INSS, parte ré da ação, argumentou que a autora (uma criança com deficiência) não preenchia os requisitos para a concessão do benefício, alegando a ausência de incapacidade de longo prazo e apontando o rendimento familiar de R$ 2.250,00 e a posse de veículo automotor como motivos para indeferir a concessão.
No entanto, o acórdão do TRF-47 flexibilizou o critério econômico, reconhecendo que as despesas com cuidados médicos e tratamentos essenciais, como medicamentos, fisioterapia e fraldas, devem ser consideradas na análise da vulnerabilidade econômica da família, concedendo o benefício assistencial.
Dessa forma, torna-se essencial a análise do caso concreto para verificar se a renda familiar, independentemente de estar dentro ou fora do limite legal, é suficiente para garantir as condições mínimas de dignidade da pessoa humana.
Nessa esteira, ainda não é possível afirmar se, com as novas alterações, a jurisprudência continuará adotando a flexibilização do critério econômico. O endurecimento das regras pode levar a uma aplicação mais restritiva na esfera administrativa, impactando o acesso ao benefício por parte de indivíduos em situação de vulnerabilidade. No entanto, a interpretação judicial tem historicamente buscado atenuar os efeitos dessa rigidez, permitindo uma análise mais ampla das condições socioeconômicas dos requerentes.
Espera-se, portanto, que esse entendimento seja mantido, possibilitando que, apesar das exigências mais rigorosas para a concessão do benefício assistencial, a norma seja aplicada de forma mais equitativa e condizente com a realidade dos beneficiários, de modo a assegurar que aqueles em maior vulnerabilidade tenham acesso efetivo à assistência social, em conformidade com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção social.
Notas
1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L15077.htm
2 https://portaldatransparencia.gov.br/comunicados/603478-portal-da-transparencia-divulga-gastos-com-beneficio-de-prestacao-continuada-bpc
3 https://exame.com/economia/governo-estima-cancelar-558-mil-beneficiarios-do-bpc-por-mes-em-pente-fino/
4 Art. 1º É requisito obrigatório para concessão, manutenção e renovação de benefícios da seguridade social documento com cadastro biométrico realizado pelo poder público, nos termos estabelecidos em ato do Poder Executivo federal.
5 § 3º-A. O cálculo da renda familiar considerará a soma dos rendimentos auferidos mensalmente pelos membros da família que vivam sob o mesmo teto, ressalvadas as hipóteses previstas no § 14 deste artigo, nos termos estabelecidos em ato do Poder Executivo federal, vedadas deduções não previstas em lei.
6 § 14. O benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário no valor de até 1 (um) salário-mínimo concedido a idoso acima de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou pessoa com deficiência não será computado, para fins de concessão do benefício de prestação continuada a outro idoso ou pessoa com deficiência da mesma família, no cálculo da renda a que se refere o § 3º deste artigo. ' (Incluído pela Lei nº 13.982, de 2020)
7 [...] De fato, tal situação demonstra o quão relevante para a manutenção da autora é o benefício pleiteado, já que as dificuldades financeiras enfrentadas pelo núcleo familiar não só interferem na sua sobrevivência com dignidade, mas também nos cuidados necessários com a menor deficiente. Como já referido, é firme na jurisprudência que o critério posto pelo § 3º do artigo 20 da LOAS não é absoluto, e deve ser considerado em conjunto com as demais circunstâncias do caso, inclusive sendo considerado inconstitucional em sede de julgamento da Recl nº 4374 e RExt nº 567985 por estar defasado para caracterizar a situação de vulnerabilidade. Logo, acertada é a decisão de relativização do critério objetivo de renda per capita abaixo de 1/4 do salário-mínimo, haja vista as difíceis condições suportadas pela família da autora, devendo ser mantida a decisão de concessão do benefício desde a DER. Dessa forma, o exame do conjunto probatório demonstra que a parte autora possui condição de deficiência, necessitando de cuidados permanentes para sobreviver com dignidade. Portanto, deve ser reconhecido o direito ao benefício assistencial desde 06/09/2016 (data do requerimento administrativo - Evento 1, INF14, Página 1), impondo-se a ratificação da sentença, inexistindo prescrição quinquenal em face do ajuizamento em 05/10/2017. (TRF-4 - AC: 5014278-73.2022.4.04.9999, Relator: Paulo Afonso Brum Vaz, Data de Julgamento: 14/03/2023, Nona Turma)