Lançar mão de medida provisória para abertura de crédito extraordinário, a fim de cobrir gastos previsíveis, configura autêntico desvio de finalidade
A MP nº 405, de 18 de dezembro de 2007, abriu um crédito extraordinário em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00, para fins especificados nos Anexos I e III.
Só que basta simples exame ocular do artigo 2º dessa MP, onde estão mencionadas as diversas fontes de recursos necessários à abertura desse crédito extraordinário (superávit do balanço patrimonial da União de 2006, excesso de arrecadação, anulação parcial de dotações, ingresso de recursos provenientes de operações de crédito etc.), para constatar, imediatamente, que o legislador palaciano confundiu hipóteses de abertura de crédito adicional suplementar (anulação parcial de outras dotações ou recursos provenientes de operações de crédito etc.), de abertura de crédito adicional especial (superávit financeiro do exercício anterior, excesso de arrecadação etc.) e de abertura de crédito extraordinário, esta limitada à hipótese do § 3º do art. 167 da CF, tendo como fonte, a arrecadação de tributos de natureza temporária (empréstimos compulsórios, na forma do art. 148, I e impostos extraordinários na forma do art. 154, II da CF).
Os créditos suplementares servem para reforçar a dotação existente. Os créditos especiais destinam-se a atender despesas para as quais não haja dotação específica, o que não significa despesas imprevisíveis. Significa apenas que o governante não incluiu determinadas despesas como prioritárias no momento da elaboração da proposta orçamentária. Os créditos extraordinários destinam-se a atender despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública, nos precisos termos do art. 41, III da Lei nº 4.320/64, recepcionado pela Constituição de 1988, que dispõe em seu artigo 167, § 3º:
"A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62".
A situação de calamidade pública pode surgir da manifestação de fenômenos da natureza, como tufão, terremoto etc., assim como de uma epidemia, por exemplo. O importante é que a superveniência do fato a ensejar despesas extraordinárias não seja previsível ao senso do homem comum.
Não se pode confundir relevância e urgência, requisitos para edição de medida provisória, com os requisitos constitucionais para abertura de crédito extraordinário, que além da urgência pressupõe a imprevisibilidade do evento causador da despesa extraordinária.
O Executivo usou da competência que tinha para fazer uma coisa e fez outra, incorrendo na prática de desvio de finalidade. Como se sabe, o desvio de finalidade detecta-se pelo exame da motivação que, no caso, sequer pode considerar como existente, consoante se verá.
Aliás, já está se tornando moda a prática de ato imotivado, como no caso do recente aumento do IOF por decreto, para que, posteriormente, se impugnado o ato, sejam buscadas razões válidas, antes não cogitadas.
Porém, neste caso sob exame há exposição de motivos do senhor Ministro da Fazenda, que consta da mensagem de encaminhamento ao senhor Presidente da República. Só que nenhuma das razões invocadas se refere às hipóteses autorizadoras da abertura de crédito extraordinário, o que equivale à prática de ato imotivado. As despesas fixadas nos Anexos I e III nenhuma pertinência têm com situações de imprevisibilidade e urgência como no caso de guerra, comoção interna, calamidade pública ou qualquer outro evento imprevisível, que pudesse justificar e legitimar a abertura de crédito extraordinário.
Muito ao contrário, a exposição de motivos, de um lado, refere-se às despesas que se classificam como de custeio e de subvenção econômica, pertencentes à categoria econômica de despesas correntes, e de outro lado, refere-se às despesas de investimentos e de inversões financeiras, que integram a categoria econômica de despesas de capital. Sob a função programática 26 305 0225 20BA, o Anexo I contempla, por exemplo, despesas concernentes a "prevenção, preparação e enfrentamento para a pandemia de influenza", o que implica confissão de que o fato não era imprevisível. Outros itens referem-se à continuidade de projetos, obras e serviços em andamento. A confusão é generalizada. E a balbúrdia é total. Não há um único item de despesas que possa ser enquadrado na hipótese de abertura de crédito extraordinário, tendo como fonte os tributos de natureza temporária.
O superávit do orçamento corrente, utilizado indevidamente para abertura de crédito extraordinário, constitui, nos precisos termos do § 2º do art. 11 da Lei nº 4.320/64, receitas de capital do exercício corrente. Tudo indica que a elaboração do projeto de medida provisória foi norteada por um critério puramente político, sem a devida assistência técnica. O autor do projeto de medida provisória atuou como se estivesse elaborando uma proposta orçamentária. Confundiu-se o caráter político da proposta de Lei Orçamentária Anual, com o aspecto técnico-jurídico da execução da Lei Orçamentária Anual.
Por tais razões, o Plenário do STF, alterando, em boa hora, o entendimento anterior, por maioria de votos (6 x 5) suspendeu a execução da MP 405/07, com efeito ex nunc, na sessão de julgamento do dia 14 de maio de 2008.
Essa MP nº 405/07, entretanto, já havia sido convertida na Lei nº 11.658, de 18 de abril de 2008. É claro que a conversão, por si só, não purga o vício da medida provisória, pelo que essa lei de conversão, mera formalidade, também acha-se atingida pela decisão da Corte Suprema. Por isso, ela não pode ser aplicada, enquanto em vigor a medida liminar concedida nos autos da Adin nº 4048-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes.
Outras medidas provisórias haviam sido editadas nos mesmos moldes da MP nº 405/07 antes do julgamento da Adin 4048. Ente elas podemos citar: MP nº 406, de 21-12-2007 (abre crédito extraordinário de R$1.250.733,499,00 em favor de órgãos do Poder Executivo); MP nº 408, de 26-12-2007, convertida na Lei nº 11.669/08 (abre crédito extraordinário de R$3.015.446.182,00 a diversos órgãos do Poder Executivo); MP nº 409, de 28-12-2007, convertida na Lei nº 11.670/08 (abre crédito extraordinário de R$760.465.000,00 para diversos órgãos do Poder Executivo); MP nº 420, de 26-02-2008 (abre crédito extraordinário de R$12.500.000,00 para atender encargos Financeiros da União); MP nº 423, de 04-04-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$613.752.057,00 a favor dos Ministérios dos Transportes e da Integração Nacional); MP nº 424, de 16-04-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$1.816.577.877,00 a favor de diversos órgãos do Poder Executivo); e MP nº 430, de 14-05-2008 (abre crédito extraordinário no valor de R$7.560.000.000,00 a favor do Ministério do Planejamento).
Embora a medida liminar em sede de Adin não tenha efeito vinculante, todas essas medidas provisórias e as leis de conversão acham-se atingidas pela decisão da Corte Suprema, que assentou a tese de que a abertura de crédito extraordinário deve submeter-se às exigências do § 3º, do art. 167 da CF, não bastando os requisitos da urgência e da relevância para edição de medida provisória, visto que, a imprevisibilidade do evento constitui requisito ínsito na abertura de crédito extraordinária, e nem precisaria estar expresso no texto constitucional como está. Portanto, deve haver imprevisibilidade e urgência como as despesas decorrentes de guerra, comoção interna ou de calamidade pública provocada por tufão, terremoto etc., ou decorrente de uma epidemia, como imposição constitucional. Padecem, portanto, essas medidas provisórias do mesmíssimo vício já proclamado nos autos da Adin 4048.
Em relação à MP nº 430/08, por ter sido publicada no DOU do dia 14-5-2008, mesma data do julgamento da Adin 4048, não vemos, por ora, afronta à decisão do STF, como noticiado por alguns veículos de comunicação.
Acrescente-se que os créditos extraordinários abertos por medidas provisórias editadas no último quadrimestre do exercício de 2007 deverão ser reabertos nos limites de seus saldos no exercício financeiro de 2008 (art. 167, § 2º da CF). A utilização desses saldos remanescentes encontra-se atingida pela decisão da Corte Suprema.
O excesso de arrecadação (saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês entre a arrecadação prevista e a realizada, deduzida a importância correspondente aos créditos extraordinários acaso abertos no exercício) não é para ser gasto a qualquer custo, de forma aleatória. Esse excesso significa que está acentuando o nível de imposição tributária além das necessidades para cobrir os gastos planejados, sinalizando necessidade de diminuir a transferência compulsória de riquezas do setor privado para o setor público, ou seja, deixar mais oxigênio ao setor produtivo. Daí a nossa idéia do gatilho tributário, apresentada na discussão do Projeto de Reforma Tributária, para obrigar o governo a reduzir a carga tributária aos limites que seriam fixados na Constituição, Federal, em termos de percentual sobre o PIB nacional, caracterizando o excesso como confisco, vedado pelo art. 150, IV da CF.
A soma de vultosos recursos alocados a título de abertura de crédito extraordinário, por inúmeras medidas provisórias, inclusive por meio de desvio das verbas fixadas no orçamento aprovado (anulação parcial de dotações) representa, na prática, a elaboração de uma Lei Orçamentária Anual alternativa, à margem do respectivo processo legislativo prescrito na Carta Política, alijando a representação popular no direcionamento das despesas públicas, o que é um fato de extrema gravidade. Por isso, o Supremo Tribunal Federal não poderia continuar indiferente, preso a sua antiga jurisprudência no sentido de que descabe a Adin em se tratando de lei ou ato normativo de caráter concreto. Como guardião da Constituição, cabe ao STF zelar pelo cumprimento de preceitos constitucionais concernentes à elaboração e execução das leis do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Preocupa-nos imensamente a mutilação sistemática da Lei Orçamentária Anual, bem como a utilização de créditos extraordinários para atender, de forma embaralhada, tanto as despesas de custeio e de subvenções econômicas (despesas correntes), como as despesas com inversões financeiras e de investimentos (despesas de capital), conforme indicadas nos Anexos I e III da aludida MP 405/07. Isso acaba inviabilizando os mecanismos de controle e de fiscalização da execução orçamentária. Por isso, esse fato configura crime de responsabilidade, previsto no art. 85, VI da CF. Se vier a ser descumprida a decisão da Corte Suprema caracterizará o crime de responsabilidade na forma do inciso VII do art. 85 da CF. Outrossim, praticar ato visando fim proibido em lei ou diverso daquele previsto na regra de competência caracteriza ato de improbidade (art. 11, I, da Lei nº 8.429/92).
Mesmo considerando a melhor das intenções do governo na execução dessas despesas extraordinárias, o fato é que está havendo atropelo das normas orçamentárias ao arrepio dos dispositivos constitucionais e da lei de regência da matéria.
O que falta no governo é um plano nacional de desenvolvimento refletido na Lei do Plano Plurianual, para ser executado ao longo dos exercícios financeiros de conformidade com os recursos alocados pela Lei Orçamentária Anual, hoje, transformada em uma peça de ficção, quando deveria refletir o plano de ação governamental, em obediência ao princípio da legalidade das despesas, corolário do princípio da legalidade tributária.
Quando não se tem um plano de governo seguido de fixação de despesas específicas para assegurar a sua execução, não há como elaborar a Lei Orçamentária Anual com a característica própria, ou seja, caráter concreto. Essa lei orçamentária passa a ter caráter genérico e abstrato, completamente divorciada dos planos de governos que não existem ( o PAC é um mini-plano, sem caráter nacional). O orçamento passa a ser uma mera peça, de natureza abstrata, para cumprir as formalidades constitucionais. Entretanto, ironicamente, leva meses de debates, discussões e negociações no Parlamento Nacional para sua aprovação, sempre com atraso. Houve um ano em que, quando o orçamento anual foi aprovado, o exercício a que se referia já estava quase findando, numa eloqüente prova de sua pouca utilidade. O Executivo usa o dinheiro público de acordo com as prioridades que vão surgindo na cabeça do governante a cada dia que passa, observando a realidade existente no decorrer de suas andanças, em contato com lideranças políticas regionais e locais. Esse retorno ao passado remoto não encontra eco no Direito Financeiro, nem nos preceitos constitucionais e legais para elaboração e execução de normas orçamentárias. As diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal, estabelecidos de forma regionalizada na lei do PPA (§ 1º, do art. 165 da CF), bem como as metas e prioridades compreendidas na LDO com a inclusão de despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente (§ 2º do art. 165 da CF) não passam de meras peças de ficção para simples cumprimento de formalidades constitucionais, tanto quanto a LOA que, na prática, vem sendo ignorada.
Daí a DRU, que coloca mais de R$103 bilhões em mãos do Executivo, sem especificação de elementos de despesas para serem gastos a sua discrição, as transposições, os remanejamento ou transferências de uma categoria de programação para outra, ou de um órgão para outro, de forma desordenada, bem como as infindáveis aberturas de créditos extraordinários, sem que o país estivesse em guerra, em estado de comoção interna ou em estado de calamidade pública, ou em outras situações decorrentes de fatores imprevisíveis aos olhos do homem comum.
Considerando que o atual governo está no segundo mandato, nem mesmo a abertura de crédito especial, muito menos crédito extraordinário, poderia justificar o uso da medida provisória, reservado para casos urgentes e relevantes. Os créditos abertos para atendimento de despesas previstas nos Anexos I e III nada têm de imprevisíveis, pois constituem despesas regulares, usuais e normais mesmo aquelas concernentes a investimentos, que deveriam ter sido atendidas, anualmente, pelos recursos alocados nas leis orçamentárias anuais, em harmonia com o disposto na Lei de Diretrizes Orçamentárias. A omissão e o descaso da autoridade governamental ao longo do tempo, com total desprezo à Lei de Diretrizes Orçamentárias. não poder servir de base para invocação de urgência e relevância, para o uso da medida legislativa extrema e excepcional, a fim de implementar, repentinamente, obras e serviços que deveriam ter constado do plano de governo, refletido na Lei Orçamentária Anual.
Enfim, a desordem generalizada que reina na União em matéria orçamentária, não só, inviabiliza a ação de órgãos competentes (Congresso Nacional e TCU) na missão de fiscalizar e controlar a execução orçamentária, como também, torna quase impossível ao Chefe do Executivo apresentar a sua prestação de contas anual, de conformidade com as normas orçamentárias em vigor, o que é muito ruim em termos de transparência, de publicidade, de legalidade, de moralidade, de impessoalidade e da própria preservação do Estado Democrático de Direito.