A polêmica instauração de inquérito policial de ofício pelo Judiciário.

Uma análise à luz do sistema acusatório

18/02/2025 às 11:35
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O presente artigo mergulha na problemática da instauração de inquérito policial de ofício pelo Poder Judiciário, uma prática que desafia os pilares do sistema acusatório, modelo adotado pela Constituição Federal de 1988. A Carta Magna delineia uma clara separação de funções no processo penal, atribuindo ao Ministério Público a exclusividade na promoção da ação penal pública.

No entanto, resquícios inquisitórios no Código de Processo Penal permitem que juízes atuem ativamente na fase investigatória, inclusive instaurando inquéritos. Essa dualidade gera uma tensão que demanda análise crítica, especialmente no que tange à preservação da imparcialidade judicial e à conformidade com os princípios basilares do sistema acusatório.

Para contextualizar a discussão, é crucial revisitar os modelos de sistemas processuais penais:

  • Sistema Inquisitório: Concentração de poderes nas mãos do juiz, que acumula as funções de acusador, defensor e julgador. Predomina a ausência de contraditório e ampla liberdade probatória.

  • Sistema Acusatório: Nítida separação entre as funções de acusação, defesa e julgamento. O juiz atua como terceiro imparcial, enquanto as partes gerenciam a produção de provas.

  • Sistema Misto: Hibridismo entre os modelos anteriores, com características inquisitórias na fase investigatória e acusatórias na fase judicial.

A Constituição de 1988 adotou o sistema acusatório, alinhando o Brasil às democracias modernas (Lopes Jr., 2022). Essa escolha implica na delimitação do papel do juiz, que deve se manter equidistante das partes, garantindo um julgamento justo e imparcial (Ferrajoli, 2002).

O inquérito policial, procedimento administrativo inquisitorial conduzido pela polícia judiciária, visa fornecer elementos para embasar a decisão do Ministério Público sobre o oferecimento da denúncia (Badaró, 2020). Sua instauração pode ocorrer de ofício pela polícia, por requisição do Ministério Público ou mediante auto de prisão em flagrante.

O CPP, em seu artigo 5º, prevê a possibilidade de instauração de inquérito por requisição do Judiciário. Essa previsão, no entanto, é alvo de críticas sob a ótica do sistema acusatório, que preconiza a separação entre as funções de investigar e julgar.

A problemática da instauração de inquérito de ofício pelo Judiciário ganhou destaque em casos emblemáticos julgados pelo STF:

  • Inquérito nº 4.696/STF: Instaurado pelo Ministro Gilmar Mendes para investigar suposto abuso no uso de algemas. A instauração se baseou no Regimento Interno do STF, gerando críticas da Procuradoria-Geral da República, que questionou a ausência de previsão legal.

  • Inquérito nº 4.781/STF: Instaurado pelo Ministro Dias Toffoli para apurar a divulgação de notícias falsas e ameaças contra o STF. Fundamentado no artigo 43 do Regimento Interno do STF, a medida também foi contestada pela PGR, que apontou sua incompatibilidade com o sistema acusatório e o princípio do juiz natural.

Em ambos os casos, a PGR manifestou-se pelo arquivamento dos inquéritos, argumentando que a instauração de ofício pelo Judiciário violaria a separação de funções inerente ao sistema acusatório.

A instauração de inquérito de ofício pelo Judiciário, ao comprometer a imparcialidade judicial, colide com a lógica do sistema acusatório (Mendes & Branco, 2018). A concentração de poderes nas mãos do juiz gera um desequilíbrio na relação processual, prejudicando a defesa e comprometendo a credibilidade do sistema de justiça (Capez, 2021).

Em suma, a instauração de inquérito policial de ofício pelo Poder Judiciário representa um anacronismo que urge ser superado. A prática, além de ferir a imparcialidade judicial, contraria o modelo acusatório adotado pela Constituição de 1988 (Brasil, 1988). A modernização do Código de Processo Penal, com a vedação expressa da instauração de inquérito de ofício pelo Judiciário, é medida que se impõe para alinhar o processo penal brasileiro aos princípios basilares do sistema acusatório. A reafirmação do Ministério Público como titular exclusivo da ação penal pública, responsável pela condução da investigação criminal, é fundamental para garantir a observância do devido processo legal e a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos. A superação dessa incongruência é um passo crucial para a consolidação de um sistema de justiça criminal mais democrático, transparente e garantidor de direitos.


REFERÊNCIAS

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal.

Badaró, G. (2020). Processo Penal: Sistema Acusatório e Garantias Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais.

Aury Lopes Jr. (2022). Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva.

Mendes, G., & Branco, P. G. (2018). Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva.

Ferrajoli, L. (2002). Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais.

Capez, F. (2021). Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva.

Fazzalari, E. (2014). Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros.

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Sobre o autor
Lucas Nilles Oliveira

Pós-graduado nas áreas de direito penal e processo penal. Pós-graduando nas áreas de advocacia trabalhista e previdenciária. Experiência em cargos administrativos e de liderança no Exército Brasileiro, com foco em organização, processos administrativos e mediação de conflitos. Habilidade em gestão de contratos, mediação e arbitragem, com formação complementar em áreas jurídicas e administrativas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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