Não entrarei aqui nos detalhes da longa denúncia apresentada pelo Procurador-Geral da República contra Jair Bolsonaro e seus comparsas golpistas. No entanto, ela evidencia que o ex-presidente brasileiro acabou se encerrando dentro de um salão de espelhos, que agora foram finalmente estilhaçados.
As imagens mais marcantes de Jair Bolsonaro com projeção nacional foram construídas ainda em sua atuação como deputado federal, período em que agrediu deputados e deputadas do PT e homenageou um torturador ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff. A ideia de invencibilidade foi incorporada ao mito antes mesmo de sua chegada à presidência, especialmente quando Eduardo Bolsonaro começou a declarar em palestras que o STF poderia ser fechado com um cabo e um soldado.
Após ser eleito, Bolsonaro cercou-se de ainda mais espelhos, amplificando ao infinito a cacofonia de imagens sobre si mesmo. Ele liberou o comércio de armas e declarou que quem tem arma de fogo deveria usá-las. Suas ameaças contra o Supremo Tribunal Federal (STF) continuaram. Ele organizou e participou de atos na Praça dos Três Poderes, onde atacou diretamente o STF e ameaçou a democracia.
Em uma ocasião, ele vociferou: "A Constituição sou eu." Em outra, afirmou que não cumpriria mais decisões do STF. Quando vários bolsonaristas dispararam fogos de artifício contra o prédio do STF e ameaçaram invadi-lo, o então presidente não os desautorizou.
Isso para não mencionar aqui dois fatos extremamente graves:
Em meados de 2021, Bolsonaro "chamou um comandante militar e perguntou se os caças Gripen estavam operacionais. Com a resposta positiva, determinou que sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso, tenho um depoimento em relação a isso. Ao confrontá-lo com o absurdo de ações desse tipo, eles [os comandantes militares] foram demitidos." 1.
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Em meados de 2022, Bolsonaro reuniu diplomatas de diversos países para atacar a urna eletrônica e insinuar que o Tribunal Superior Eleitoral poderia prejudicá-lo na disputa contra Lula. "Atentar contra as eleições e a democracia? Quem faz isso é o próprio TSE ao tentar esconder o inquérito de 2018", declarou o então presidente, referindo-se a um suposto inquérito da Polícia Federal sobre uma invasão hacker à rede do TSE em 20182. Esse episódio grotesco acabou resultando na condenação de Bolsonaro pela Justiça Eleitoral e reforça a tese de que ele estava, de fato, planejando algo sinistro para permanecer no poder.
A denúncia contra Jair Bolsonaro, aqui comentada, é arrasadora e bem fundamentada. Muito provavelmente, ela será recebida pelo relator designado para o caso no STF. Diante disso, a única coisa que nos resta agora é acompanhar o desenrolar de um longo e demorado processo, no qual será assegurado aos réus o direito à defesa e à produção de provas.
De qualquer maneira, não consigo resistir à tentação de comparar a destruição da imagem do "mito" pelo Procurador-Geral da República (PGR) com uma cena memorável do filme “Conan, o Destruidor” (1984)3.
No filme, em um imenso salão de espelhos, Conan está sendo brutalmente atacado pelo monstro corporificado pelas imagens do mago Thoth-Amon. O adversário parece invencível, e tudo indica que o herói será derrotado. No entanto, algo inesperado acontece: um espelho é acidentalmente quebrado, e, no mesmo instante, um ferimento surge no corpo de Thoth-Amon.
Conan rapidamente percebe a relação entre a destruição da imagem do inimigo e o dano físico que ele sofre. Conforme outros espelhos são estilhaçados, o mago recebe novos ferimentos mortais, até que, finalmente, o verdadeiro Thoth-Amon, escondido atrás dos espelhos, é morto.
O salão de espelhos que Jair Bolsonaro construiu para chegar e permanecer no poder a qualquer custo foi, enfim, estilhaçado. Dele, nada mais resta, exceto os fragmentos impotentes de vidro no chão, que agora serão recolhidos e remontados pelo STF durante o processamento, a instrução e o julgamento da nova denúncia.
Valentão, Jair Bolsonaro provavelmente admira “Conan, o Destruidor”. Se esse for o caso, devemos concluir que o capitão-mito, agora abandonado à própria sorte por Donald Trump, não entendeu muito bem a lição que poderia ter aprendido com essa cena do filme.
Antes de usar a corporificação de suas imagens para combater Conan (ou a democracia, em nosso caso), o mago Thoth-Amon (ou seu equivalente, Jair Bolsonaro) deveria ter se certificado de que o salão de espelhos onde a luta ocorreria não fosse construído com materiais frágeis. Não ter alguém para substituir imediatamente cada espelho quebrado pelo adversário também é um problema.
Acima de tudo, um mago – seja ele um personagem cinematográfico ou um político de extrema direita – não pode se esconder atrás de um biombo incapaz de protegê-lo.
As consequências políticas da denúncia por tentativa de golpe de Estado serão imediatas. Internamente, Bolsonaro será descartado pela extrema direita e pelos partidos de centro. As principais lideranças políticas reacionárias do Brasil se afastarão dele imediatamente para evitar serem associadas aos crimes imputados ao ex-presidente. Seus filhos continuarão a defendê-lo, mas sem apoio partidário e midiático, são politicamente irrelevantes.
No plano externo, Bolsonaro será cuidadosamente esquecido. Nenhum presidente ou primeiro-ministro desafiará abertamente a Justiça brasileira, pois isso colocaria em risco os interesses diplomáticos e geoestratégicos de seus países, além de afetar os lucros que seus cidadãos auferem ou pretendem obter no Brasil.
Os conteúdos sobre a denúncia contra o ex-presidente brasileiro não serão excluídos do Google ou de qualquer outro motor de busca. Aliás, a frase "Bolsonaro is denounced by the Brazilian General Attorney" já conta com 177.000 resultados, enquanto "Bolsonaro é denunciado pelo PGR" gera 3.340.000 indicações no Google.
Resumindo: o Google pode até modificar o nome do Golfo do México no Google Maps para agradar Trump, mas não praticará censura para preservar o salão de espelhos bolsonarista. Tampouco colocará em sua página de abertura uma imagem de Jair Bolsonaro crucificado ao lado de Paulo Gonet e Alexandre de Moraes, vestidos de soldados romanos e empunhando lanças. Acabou, porra…
A imprensa corporativa neoliberal, que ajudou Bolsonaro a chegar ao poder, não se esforçará muito para salvá-lo. Fragilizada, fragmentada e justamente triturada pelo PGR, sua imagem política tornou-se uma mercadoria caríssima e estragada. Além disso, a direita precisa construir um novo avatar para disputar contra Lula, e o do ex-presidente já não é viável.
Para o próprio Bolsonaro, resta apenas se defender das acusações. Ele precisará contratar um bom advogado, mas se sua defesa insistir na tese de que a denúncia é "Fake baseada em Fake News", o ex-presidente será inevitavelmente condenado e enjaulado.
Ao réu, agora, restam duas alternativas: confessar alguns dos crimes para obter uma atenuação da pena, conforme prevê o art. 65, III, alínea "d" do Código Penal, ou fazer um acordo de delação premiada, entregando tanto os parceiros já denunciados quanto aqueles que ainda permanecem nas sombras.
Neste momento, envolver um personagem internacional fora do alcance da Justiça brasileira pode ser uma estratégia interessante. Isso permitiria que Bolsonaro e seus apoiadores explorassem retoricamente a seletividade do STF.
A narrativa poderia ser repetida exaustivamente nas redes sociais bolsonaristas: “Aquele Tribunal persegue e julga os mais fracos (como o próprio Jair Bolsonaro), mas garante a impunidade daqueles que são muito poderosos (o general Villas-Boas, o clã Marinho, Steve Bannon, Netanyahu e o próprio Donald Trump).”
O risco de adotar a tática da ruptura de Jacques Vergès nesse novo caso existe, sem dúvida. Quem for apontado por Bolsonaro pode simplesmente negar qualquer envolvimento no golpe fracassado ou se voltar contra ele.
Todavia, para alguém que já perdeu tudo ao construir e sustentar um salão de espelhos frágil, que foi destruído pelo PGR, não resta muito o que fazer.
Exceto, talvez, tentar estraçalhar tudo e todos à sua volta para amedrontar e comprometer o Tribunal que irá julgá-lo.
Além disso, seria extremamente irônico se o "mito" agora se apresentasse como uma marionete impotente nas mãos de outras pessoas, desconstruindo a imagem de líder todo-poderoso de um golpe que foi criada para ele por Gonet.
Notas
1 https://www.congressoemfoco.com.br/noticia/44588/bolsonaro-mandou-fab-sobrevoar-stf-para-quebrar-vidracas-diz-jungmann