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A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro

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25/05/2008 às 00:00
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6 - FORMULANDO UMA PROPOSTA

Talvez este trabalho não merecesse sequer o início se fosse resumir-se a uma série de críticas estéreis, apartadas de qualquer espécie de proposta construtiva ou reformadora de uma realidade apresentada como bem distante do ideal. Já prescrevia em tempos remotos o Abade Dinouart que "só se deve deixar de calar quando se tem algo a dizer que valha mais do que o silêncio".57 

É com o intento de valorizar esta fala, a fim de que supere o ingente valor do silêncio, pois a máxima acima contém de longe mais credibilidade do que o dito popular que afirma que "é melhor falar besteira do que ser mudo" (sic), que se pretende esboçar uma opção de tipificação mais segura e objetiva do delito de tortura, de forma que melhor satisfaça a legalidade estrita e enseje inclusive uma maior efetividade em sua aplicação prática pelos operadores do direito. 

Não é missão fácil tipificar de forma segura e objetiva o crime de tortura, considerando o inevitável caráter multifário que pode assumir o rol de condutas a serem abarcadas. Mas não é somente neste caso que o legislador poderá deparar-se com tal dificuldade, devendo sempre procurar um método que possibilite o máximo possível de segurança ao futuro intérprete da norma. Se não for possível uma descrição estrita e exaustiva, deve buscar meios de fornecer balizas que possibilitem uma orientação segura ao aplicador do Direito. "Ao definir os crimes, a lei deve abranger todas as situações que deseja alcançar, descrevendo-as do modo mais claro possível".58 (grifo nosso). 

O ideal para a descrição de condutas típicas consiste na formulação casuística, especificando as ações ou omissões consideradas criminosas. Ocorre que nem sempre isso é possível em face da natural inviabilidade prática de que o legislador venha a prever abstratamente todas as condutas passíveis de ocorrerem na vida real. Atente-se para o fato de que, por exemplo, se a lei precisasse prever, uma a uma, todas as condutas consistentes em homicídio qualificado, "precisaria de centenas de locuções que expressem cada um dos casos possíveis e, por mais que se esforçasse, não alcançaria todas, pois a imaginação humana e o avanço tecnológico cada vez criariam novas formas graves de agressões. Seria impossível listar todas as hipóteses possíveis".59 

Em face dessa dificuldade seria sensato que houvesse uma conformação com a impunidade? Não. A obediência à legalidade, mesmo sob sua acepção estrita, não deve "engessar" o Direito Penal, subtraindo-lhe seu necessário dinamismo e eficácia. Defender a elaboração de normas claras não significa vedar o processo interpretativo que pode e deve dar vida ao Direito. Aliás, no campo da hermenêutica, de há muito foi alijada a máxima que afirma que "in claris cessat interpretatio".60

Esse percalço deve conduzir o arquiteto da lei a projetar a norma de modo a descrever o número máximo de casuísmos, encerrando-os com uma fórmula genérica, a qual, embora aberta, terá para sua interpretação, de ser cotejada com os casos especificados detalhadamente antes. Ou seja, a parcela aberta da norma não se encontra isolada e, por isso, disposta a qualquer encaixe, mas sim conectada a uma série de descrições que irão conformar um limite razoavelmente determinado às condutas que comporta em seu bojo. 

Nada mais que isso é o que faz o Código Penal nos casos de homicídio qualificado: "seleciona uma ou mais situações concretas, descreve-as minuciosamente e, em seguida, manda, por meio de uma fórmula genérica, que todas as situações análogas àquelas sejam como as concretas consideradas". É o que se convencionou chamar de "interpretação analógica".61 

A tortura é também um caso que comporta uma infinidade de condutas, as quais podem inclusive multiplicar-se devido à prodigiosa imaginação humana ou mesmo ao desenvolvimento tecnológico. Seria uma ingrata missão pretender prever exaustivamente um rol de condutas configuradoras do ilícito de tortura. Uma missão não só ingrata, como também inexeqüível. É obvio que nem por isso pode-se optar, simplesmente, por desprezar tal categoria de ilícito, deixando-a de fora do ordenamento jurídico-penal, mormente em face dos ditames explícitos da nossa Constituição Federal (art. 5º., III e XLIII).62 

Mas qual o caminho a ser trilhado para que não haja omissão quanto à criminalização da tortura e, ao mesmo tempo, prevaleça o respeito à legalidade estrita sob um critério de razoabilidade?

A proposta é que seja adotado procedimento similar àquele acima mencionado nos casos dos homicídios qualificados, ou seja, descrições de diversas condutas imagináveis casuisticamente e de forma bem determinada, fechadas por uma fórmula genérica, cujo complemento seria dado pela interpretação analógica, tendo por balizas os casos expressamente previstos pela lei. 

O que acontece hoje, com a Lei 9455/97 é que apenas aquilo que poderia, quando muito, ser adotado como uma fórmula genérica é a única definição de tortura existente. Isso é insuficiente, pois o intérprete não tem nenhum critério fixo para decidir pela tipificação ou não de determinadas condutas no conteúdo descritivo fluido em vigor. As pessoas dessa forma permanecem reféns de subjetivismos, idiossincrasias e arbitrariedades incontroláveis, a prejudicarem potencialmente ora o indivíduo acusado da prática criminosa, ora o lesado por certas condutas, cuja tipificação fica ao sabor dos operadores do Direito. 

E não constituiria uma tarefa tão difícil descrever uma boa gama de práticas consistentes em tortura, abarcando expressamente a grande maioria dos casos e servindo de norte à tipificação por interpretação analógica. Tanto que em parte já o fez o Médico Legista Carlos Delmonte, relacionando as seguintes práticas mais freqüentes de tortura: "1) pancadas, socos e golpes com objetos e sacos de areia, na cabeça, no dorso e genitais; 2) ameaças e humilhação; 3) aplicação de eletricidade em boca, orelhas, dorso, dedos, genitais, ânus e períneo; 4) venda nos olhos; 5) execução simulada; 6) testemunhar torturas; 7) asfixia por submersão ("submarino"); 8) isolamento por mais de 48 horas (confinamento); 9) restrição alimentar por mais de 48 horas; 10) restrição e impedimento de sono; 11) suspensão pelas mãos e pés em grandes dispositivos tipo roda ("bandeira") ou em paus-de-arara; 12) estupro e outras violências sexuais, incluindo mutilação genital; 13) suspensão ("crucificação"); 14) queimaduras com cigarros, óleos e objetos quentes e ácidos e similares; 15) pancadas nas solas dos pés com varas ou similares ("falanga"); 16) contenção com cordas ou similares; 17) golpes simultâneos nas orelhas ("telefone"); 18) posição ou atitude forçada por horas ou dias; 19) arremesso de fezes ou urina; 20) administração forçada de drogas ou fármacos; 21) tração nos cabelos; 22) aplicação subungueal de agulhas; 23) privação de água e oferecimento de água suja, com sal ou sabão; 24) extração forçada de dentes; 25) impedimentos ou embaraços à evacuação de fezes e de urina; 26) impedimentos de cuidados médicos; 27) espancamentos diversos".63

Tirante alguns ajustes (exclusões, inclusões, detalhamentos etc.), seria um bom começo para um trabalho descritivo-exemplificativo de condutas que mereceriam a etiqueta de tortura, a serem posteriormente fechadas por uma fórmula genérica, na qual poderiam encaixar-se casos similares em gravidade e natureza olvidados pelo legislador.

Esta mesma técnica já foi utilizada pelo legislador brasileiro há muito tempo, além dos casos de homicídio qualificado, em situação bastante similar à da tortura, "mutatis mutandis", para a tipificação pormenorizada da infração penal da "crueldade contra animais". Ora, as semelhanças são bem maiores do que se pode imaginar por uma análise perfunctória. Tirante os elementos subjetivos diferenciados e os indivíduos atingidos pelos atos cruéis, trata-se, em ambos os casos de infligir sofrimento atroz a seres sensientes64, conduta esta multiforme.

O estatuto jurídico de proteção dos animais é incomparavelmente menos desenvolvido que aquele reservado aos homens. No entanto, no que tange à questão enfocada, a legislação que regulamenta os maus tratos a animais, quanto à técnica do legislador, supera de longe a nossa Lei de Tortura, podendo servir de paradigma para uma eventual reforma. 

A referência é feita ao artigo 3º. do antigo Decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934. Esse diploma "constitui - ainda hoje - um dos mais completos instrumentos jurídicos de defesa dos bichos"65, elencando nos incisos do artigo sobredito nada menos do que trinta e uma condutas, afora seus desdobramentos, a configurarem maus tratos a animais. Essa velha normativa não foi revogada pelas leis ulteriores que trataram da matéria, servindo como elemento de integração ao elucidar o conteúdo de normas tais como a outrora contravenção de crueldade contra animais, prevista no artigo 64 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3688, de 03 de outubro de 1941), hoje erigida pela Lei Ambiental (Lei 9605/98 - artigo 32) à categoria de crime.66 

De acordo com o exposto, verifica-se que a solução é possível e não só isso, tem sido tradicionalmente utilizada na elaboração de normas que apresentam dificuldades semelhantes em virtude da natureza multifária de seus objetos. 

Destaque-se que a previsão de uma fórmula genérica final não constitui infração à legalidade e nem aplicação de analogia "in malam partem" no Direito Penal. Como já se disse, o Direito, em qualquer de seus ramos, deve ser dinâmico e jamais inflexível, sob pena de primar pela injustiça.

No campo penal, o excessivo apego à letra da lei motivado pelo temor do subjetivismo arbitrário, resultou em situações que beiram o ridículo, como no exemplo apresentado por Carlos Maximiliano quanto ao exagero que as luzes do século XVIII imprimiram em certos casos de interpretação apegada ao texto legal, visando extirpar a outrora atuação onipotente dos julgadores. Trata-se da restrição imposta ao termo "bigamia", chegando-se a deixar de punir alguém que contraíra três ou mais casamentos.67 

O mesmo Maximiliano esclarece que o Direito Penal é infenso à analogia "in malam partem" dada sua característica restritiva das liberdades humanas68. Entretanto, não admite confusão entre analogia e interpretação extensiva, conforme passagem que se toma a liberdade de transcrever:  

"Do exposto, já ficou evidente não ser lícito equiparar a analogia à interpretação extensiva. Embora se pareçam à primeira vista, divergem sob mais de um aspecto. A última se atém ‘ao conhecimento de uma regra legal em sua particularidade em face de outro querer jurídico, ao passo que a primeira se ocupa com a semelhança entre duas questões de Direito’. Na analogia, há um pensamento fundamental em dois casos concretos; na interpretação é uma idéia estendida, dilatada, desenvolvida, até compreender outro fato abrangido pela mesma implicitamente. Uma submete duas hipóteses práticas à mesma regra legal; a outra, a analogia, desdobra um preceito de modo que se confunda com outro que lhe fica próximo.

A analogia ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em dispositivo nenhum, e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins; a interpretação extensiva completa a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito explícito, embora não se compreenda na letra deste.

Os dois efeitos diferem, quanto aos pressupostos, ao fim e ao resultado: a analogia pressupõe falta de dispositivo expresso, a interpretação pressupõe a existência do mesmo; a primeira tem por escopo a pesquisa de uma idéia superior aplicável também ao caso não contemplado no texto; a segunda busca o sentido amplo de um preceito estabelecido; aquela de fato revela uma norma nova, esta apenas esclarece a antiga; numa o que se estende é o princípio; na outra, na interpretação, é a própria regra que se dilata".69

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Embora a analogia "in malam partem" seja vedada no Direito Penal, não subsiste o mesmo impedimento à aplicação da interpretação extensiva70, a qual é admitida pela maioria dos doutrinadores, desde que utilizada "cum grano salis" , excepcional e cuidadosamente, pois em regra as normas restritivas devem ser restritivamente interpretadas.71 

No caso da tortura ou em qualquer outro em que se pretenda lançar mão da interpretação analógica ou extensiva, por meio do elenco de hipóteses casuísticas secundado por uma ou mais fórmulas genéricas, deve-se ter o máximo cuidado para não dar margem a ampliações indevidas. Ao intérprete caberá cingir-se à imprescindível semelhança, especialmente em grau de gravidade do atingimento do bem jurídico tutelado, com relação às condutas não expressamente previstas e eventualmente equiparadas. Outra não é a lição de Hungria ao asseverar que "toda vez que uma cláusula genérica se segue de uma fórmula casuística, deve entender-se que aquela somente compreende os casos ‘análogos’ aos destacados por esta, que, do contrário, seria inteiramente ociosa". Adverte ainda o autor que a abstração desse "elementar raciocínio" pode levar a uma "elasticidade inteiramente aberrante" do sentido da norma.72 

Na verdade, conforme ensina Carlos Maximiliano, dificilmente uma hipótese extrema pode gerar bons resultados. Não se deve impor invariavelmente à interpretação no Direito Penal ou em qualquer ramo do Direito, uma orientação restritiva, ainda que se trate de normas incriminadoras. O meio termo freqüentemente representa um ponto de equilíbrio satisfatório: "procure-se, com os recursos da hermenêutica, apreender bem o espírito do dispositivo; não se vá além das expressões da lei; porém, aplique-se na íntegra tudo o que nas mesmas se contém; nada de mais, nem de menos". É a isso que o autor denomina "exegese extensiva por força de compreensão" ou "interpretação estrita", a qual oferece "menos margem a equívocos e divergências".73

Embora rejeitando, "em princípio" a interpretação extensiva na "inclusão de hipóteses punitivas", Zaffaroni e Pierangeli parecem também admitir um grau funcional de elasticidade às normas penais, ainda que incriminadoras, desde que não seja infringido "o limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia".74 

Por esses argumentos uma proposta de tipificação pormenorizada da tortura na forma acima delineada e tomando-se as cautelas devidas em sua operacionalização, apresenta-se como uma opção funcional e ensejadora de muito maior efetividade e segurança jurídica do que a atualmente apresentada pela Lei 9455/97. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1789, 25 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11304. Acesso em: 25 abr. 2024.

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