Artigo Destaque dos editores

A função do resultado no delito culposo

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

2. O RESULTADO CULPOSO

Como vimos 90, o resultado 91 é mencionado de forma uníssona pela doutrina como sendo um dos elementos do fato típico culposo 92. Este posicionamento não passou despercebido das escolas penais 93, ensejando veementes críticas da escola clássica. Para ela, a teoria final da ação, em princípio, não apreendeu 94 corretamente o delito culposo 95.

Apesar de o delito culposo ser uma responsabilidade excepcional, isso não significa que nele inexista ação finalista 96. Até mesmo porque não falta totalmente um fim à vontade, por não ser concebível um querer que não tenha fim algum 97.

Mais uma vez, ensina Zaffaroni: "No dolo, o típico é a conduta em razão de sua finalidade, enquanto na culpa, é a conduta em razão do planejamento da causalidade para a obtenção da finalidade proposta" 98.

O que difere o delito culposo é que sua finalidade se dirige a realização de um evento não proibido pela lei penal. O autor procura atingir um resultado diverso daquele que efetivamente produz. Tanto que se o agente previsse como certo o resultado diverso, aderindo a ele, aventar-se-ia na ocorrência de dolo eventual. Para que isto não ocorra, o autor deve abster-se de agir naquela direção e renunciar à atuação do fim lesivo previsto.

Logo a causalidade no delito culposo não é mecânica 99 mas uma causalidade que podia ser evitada pelo agente se tivesse examinado com maior atenção a situação concreta em que atuou.

Para aferir a responsabilidade de um delito culposo não se deve ater a quem deu causa ao evento, porque ela é indiferente aos seus participantes. Quando dois veículos se chocam em um cruzamento [100], ambos deram origem ao evento, mas só o motorista que rompeu ao dever de cuidado – sendo a ele previsível a ocorrência final - terá responsabilidade penal.

Desse modo, para a maioria dos juristas [101] só existe delito culposo material [102]. Ou seja, ao asseverar-se que o resultado está presente em toda a infração culposa, não sobraria espaço para ocorrência do delito culposo formal e muito menos para o de mera conduta [103]. Damásio leciona: "Sem o resultado não há falar-se em crime culposo. Neste caso, ou a conduta inicial constitui infração em si mesma ou é um indiferente penal" [104]. Já Mirabete: "Se, apesar da ação descuidada do agente, não houver resultado lesivo, não haverá crime culposo" [105].

Para essa augusta corrente o resultado é elemento indispensável para configuração do delito culposo.

Necessário, então, passarmos ao exame dessa imprescindibilidade.

Há uma corrente [106] que preconiza pela limitação dos elementos objetivos do tipo culposo, excluindo-se o resultado. Para ela, o resultado deixa de exercer função constitutiva do tipo, passando a figurar como condição objetiva de punibilidade [107], [108], [109].

Seriam reduzidos os elementos objetivos do tipo culposo que passaria a conter em sua estrutura: conduta voluntária realizada sem diligência exigível, previsibilidade objetiva, involuntariedade concernente à concreção do evento e tipicidade.

O resultado encontrar-se-á fora do tipo. A desvalia do resultado estaria afeta ao exame externo do tipo, sendo sua existência uma condição para o Estado punir o agente. E isso se daria por motivos de política criminal, evitando a repreensão de condutas que sequer concretizaram qualquer resultado danoso à sociedade.

Para essa linha de intelecção, a condição objetiva de punibilidade impõe a dependência da conduta culposa ao aperfeiçoamento de circunstância não encontrada em seus elementos. Havendo conduta imperita, imprudente ou negligente, o resultado funcionaria como condição externa para gerar o delito.

A infração culposa seria condicional.

Sobre o tema manifestou-se Nélson Hungria: "Não se deve esquecer que, no crime culposo, a imputação psíquica diz respeito à conduta causal, e não ao seu efeito objetivo, que é apenas condição de punibilidade" [110]. Para ele: "Via de regra, a efetiva lesão do interesse ou bem jurídico (evento dano) é condição à punibilidade do crime culposo; mas, excepcionalmente, basta a simples possibilidade de dano [111] (evento de perigo)" [112].

Contra esse posicionamento [113], existem os que defendem que o resultado exerce função constitutiva do delito culposo, entendimento que abarcamos.

Certo é que toda ação contrária ao dever de cuidado será antinormativa, indiferentemente se concretiza ou não um resultado [114].

Ao incluir o resultado nos elementos constitutivos do fato típico culposo, ele passa a ser um limitador que o ordenamento jurídico penal deve observar para incriminar ou não a conduta.

Isso se justifica, pois o legislador só pode tipificar condutas culposas a partir de um resultado por ele previsto. Explica-se a essencialidade do resultado como função política garantidora [115] que deve orientar o legislador na elaboração do tipo penal [116]. Assim, a dosimetria da pena (mínimo e máximo) é auferida de acordo com a maior ou menor desvalia do resultado frente ao bem jurídico atingido [117].

Luiz Luisi sustenta que: "O resultado exerce função de garantia, integrando o tipo culposo, para garantir aos cidadãos a mais ampla proteção contra o arbítrio judicial" [118]. O fundamento está na função do Tatbestand [119], cuja missão é justamente definir e caracterizar com maior precisão possível o delito.

A corroborar o catedrático sulista encontra-se Aníbal Bruno para quem: "O resultado é um elemento integrante do tipo; se deixa de existir, fica sem fundamento a idéia do crime e o ato inicial, se não é em si mesmo punível, torna-se um nada para o Direito Penal" [120].

Por sua vez, Heleno Cláudio Fragoso ensina que: "A ação delituosa proibida é a que se realiza com negligência, imprudência ou imperícia em violação ao dever objetivo de cuidado que conduz ao resultado que configura o delito" [121].

O mesmo autor, citando Hans Welzel, enfatiza: "A ação será ilícita à medida que viole o cuidado exigido na vida de relação. O elemento decisivo na ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação e não do resultado" [122]. Adiante, arremata: "O resultado é elemento do tipo dos crimes culposos e não condição objetiva de punibilidade. E isto porque a previsibilidade do resultado constitui elemento fundamental para a ilicitude e a culpabilidade dos crimes culposos" [123].

Mas coloca no devido lugar esse elemento: "A simples causação do resultado não é bastante para que se afirme a tipicidade do crime culposo, que substancialmente reside na ação (ou omissão) que desatende ao cuidado objetivo" [124].

Já Zaffaroni [125] preleciona que o estudo do tema a partir do resultado está equivocado por sobrevalorar sua função que nada mais é do que delimitar o alcance da proibição. O resultado, para ele, é um delimitador da tipicidade objetiva culposa que responde à própria função garantidora exigida num sistema de tipos legais [126].

De modo que o resultado não pode ser encontrado fora do tipo culposo, nem se pode pretender que ele seja uma condição objetiva de punibilidade.

O resultado é uma limitação à tipicidade objetiva que se encontra dentro do tipo culposo [127].

Com essa premissa, podemos seguir e verificar se o sistema penal pátrio reconhece a presença ou não dos delitos culposos de atividade. Nélson Hungria [128] alumiou a respeito: "Nem sempre a efetiva lesão do interesse ou bem jurídico (evento de dano) é condição necessária do crime culposo, bastando a simples possibilidade de dano (evento de perigo)".

Essa possibilidade foi encontrada na famigerada "tentativa culposa" [129] que nada mais é que um delito culposo de perigo, até porque a tentativa se define pelo fim, enquanto a culpa se retrata pela maneira com que se escolhe e se dispõe dos meios. [130]

Como regra, então, temos o resultado como pressuposto para existência [131] do delito culposo material, mas o legislador pode criar exceções com figuras típicas específicas [132] em que a produção naturalística é descartada. Neste caso, a concreção típica dependerá apenas do perigo gerado ao bem jurídico [133].

Cabe ao poder legiferante a escolha de positivar o resultado ou apenas o perigo de dano. Alocados no ordenamento, ambos serão elementos integrantes do tipo culposo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ponto de partida para o estudo do tipo culposo não deve ser o resultado. É preciso, primeiramente, elencar seus elementos, decompô-los e discuti-los para extrair suas correlatas funções.

Nesse processo intelectivo, deve ser avaliada, com prioridade, a violação do dever de cuidado, uma vez que os meios escolhidos pelo agente para agir serão decisivos na análise dos demais elementos. Afinal, sem comportamento descuidado, imperito ou imprudente não se vislumbra qualquer possibilidade de ocorrência de um evento culposo.

Constatada a quebra do dever de cuidado, se verifica, na seqüência, se o agente tinha ou não previsão do resultado, porquanto quem não pode prevê-lo sequer sabe qual a diligência a ser obedecida. Por fim, caberá questionar qual a função que exerce o resultado na concreção desse delito excepcional.

Esta pesquisa possibilitou concluir que o resultado integra o fato típico culposo como um de seus elementos, por força da política garantidora oriunda do nosso vigente Estado democrático de Direito. Nesse regime, a atividade repressora estatal encontra-se cercada de limitações pró-indivíduos para coibir arbítrios e desmandos por parte dos poderes constituídos.

Logo, violado o dever de cuidado que era previsível ao agente, somente haverá infração penal se dele sobrevier um resultado naturalístico (delito culposo material) ou um perigo de dano (delito culposo de atividade). Do contrário, a conduta remanescerá, apenas e eventualmente, na esfera da responsabilidade civil ou administrativa, visto que, ausente um evento danoso, o ilícito penal não se aperfeiçoa, diante da atipicidade por ausência de elemento necessário.

O que se coloca é o resultado como condição caracterizadora do delito culposo, sem o qual o fato será indiferente para o direito repressivo. Mas esta assertiva comporta a seguinte reserva: o resultado é essencial tão-somente para a configuração do delito culposo material.

Como vimos, ao contrário do que propõe a doutrina dominante, o ordenamento penal prevê, além do delito culposo material (como regra), o tipo culposo formal e o tipo culposo de mera conduta (como exceções do sistema). Nestas raras espécies, o fato típico culposo é composto apenas de agir voluntário negligente, imperito ou imprudente, quebra do dever de cuidado, previsibilidade, perigo de dano e tipicidade, prescindindo, pois, do resultado naturalístico.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Por seu turno, a garantia da pessoa humana, no que diz respeito ao delito culposo formal e ao de mera conduta, reside na exigência de criação de uma situação de perigo descrita na norma penal. Esse perigo integra tais tipos penais como requisito de suas estruturas, sob pena de atipicidade.

O reconhecimento da existência de delitos culposos formais e de mera conduta não prejudica a função garantidora do Estado, posto que, se a função do resultado é justamente definir a infração com a maior precisão factível, o órgão legiferante poderá, sem embargo, dispensá-lo para algumas modalidades, desde que elenque, em substituição ao resultado naturalístico, uma situação de perigo.


REFERÊNCIAS

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Tradução e notas de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, vols. I e II.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.

BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Revisão técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine. Barueri: Manole, 2007.

BRASIL. Código Penal; Código de Processo Penal; Constituição Federal / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2002.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1.

CARNELUTTI, Francesco. Teoría general del delito. Tradução Victor Conde. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1952.

COMPARATO, Fábio Konder. Obrigações de meios, de resultado e de garantia. RT 386/33.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal objetivo: breves comentários ao Código. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

DELMANTO, Celso et alii. Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Bushatsky, 1977.

FRANCO, Alberto Silva et alii. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

_________________________. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. vols. II e V, tomos 2º e 6º.

GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1976. v. I, tomo I.

JESUS, Damásio E. Direito penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1.

_______________. Código penal anotado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

_______________. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do código de trânsito (Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

_______________. Comentários ao código penal: parte geral de acordo com a Lei n. 7.209, de 11-7-1984. São Paulo: Saraiva, 1985, 1º volume.

LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: Fabris, 1987.

MICHAELIS. Dicionário Escolar Alemão. Autoria: Alfred Josef Keller. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/index.php> Acesso em: 17 set 2007.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

______________________. Manual de direito penal. 15. ed. São Paulo: Atlas, 1999. v. 1.

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. v. 1.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

PEREIRA, Leonardo D’Angelo Vargas. O legislador eleiçoeiro. Jornal Cruzeiro do Sul. Sorocaba, p. A-2, 03 de agosto de 2007.

ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Tradução de Luís Greco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. Evolução histórica do direito brasileiro. Disponível em: <https://www.unb.br/fd.colunas_prof/carlos_mathias/anterior_26.htm> Acesso em: 07 agosto 2007.

TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

SOLER, Sebastián. Derecho penal argentino. Córdoba: El Ateneo, 1940, tomo II.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

________________________________________________. Da tentativa: doutrina e jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Leonardo D'Angelo Vargas Pereira

Advogado, especialista em Direito Administrativo (PUC-Camp), especialista em Direito Civil, Processual Civil, Penal e Processual Penal (UCDB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Leonardo D&#39;Angelo Vargas. A função do resultado no delito culposo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1790, 26 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11307. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos