Sumário: É natural anseio do preso recobrar a liberdade; é até mesmo legítimo, desde que não use de violência contra pessoa nem cause dano ao patrimônio público. Se estava porém no presídio em cumprimento de pena, sua fuga constitui falta disciplinar grave, que o sujeita à regressão de regime prisional (art. 118, nº I, da Lei nº 7.210/84).
I. Aquele que perdeu sua liberdade — maior bem do homem depois da vida1 —, é natural que se empenhe, sem tréguas, em recuperá-la.
Para inventariar exemplos desse esforço inaudito não é mister remontar à antiguidade clássica, em especial à lenda que eternizou Dédalo e seu filho Ícaro.2
Jornais noticiaram, vai por dois anos (agosto de 2023), a fuga que certo indivíduo encetou, de forma inusitada, de presídio norte-‑americano: apoiando-se às paredes do estreito corredor da cela, subiu ao topo do prédio, alcançou o telhado e rompeu em desabalada carreira, sem que o percebessem os guardas, mas que as câmaras de segurança registraram fielmente.3
Na velha e já extinta Casa de Detenção de São Paulo (de triste memória), eram constantes as fugas, a horas mortas da noite, com o emprego das famigeradas “teresas” (nome por que se conhecem, no glossário da delinquência, as cordas feitas de lençóis e outros panos, com que os encarcerados, enfiando por janelas ou fendas nas paredes, soem evadir-se).
Numa palavra: sair do presídio torna-se ideia obsessiva e fundamental de quem nele entrou um dia!
Mas, a reconhecida gravidade da situação que decorre do cometimento do crime retira muita vez ao preso a esperança de reaver a liberdade pelas vias legais, “verbi gratia”: soltura por efeito de absolvição (que é a proclamação de sua inocência), relaxamento ou revogação da custódia cautelar, etc.
Assim, incapaz já de resignar-se à mofina sorte — e, para quem está preso, um dia representa o mesmo que uma eternidade — arrisca-se a fugir (do que não raro se arrependerá mais tarde!).
II. É crime a fuga? Protestou que não Rui Barbosa, indefesso paladino do Direito e da Liberdade, num texto lapidar:
“É a defesa natural; é o exercício de um direito que nenhuma lei, neste mundo, ousaria negar (…); pois, ainda na pura animalidade, a fuga é a incoercível revolta do instinto” (Discursos e Conferências, 1907, p. 101).
Portanto, em princípio, não configura crime a fuga do preso, a menos que empreendida com violência a pessoa ou dano ao patrimônio público (cf. arts. 352. e 163, nº III, do Cód. Penal).
No caso, porém, de preso em regime de cumprimento de pena, a sua fuga a lei reputa falta disciplinar grave (art. 50, nº II, da Lei de Execução Penal).
Faz ao nosso intento a lição de Julio Fabbrini Mirabete:
“A principal obrigação legal, fundamental mesmo, inerente ao estado do condenado a pena privativa de liberdade, é justamente a de se submeter o preso a ela, ou seja, não procurar furtar-se à pena pela fuga ou evasão” (Execução Penal, 11a. ed., p. 113).
Nesta doutrina conspira também Renato Marcão, em obra a mais de um respeito louvável:
“A fuga do estabelecimento penal caracteriza falta grave e impõe a regressão de regime prisional” (Lei de Execução Penal Anotada, 4a. ed., p. 139; Editora Saraiva).
Por fim, a contumácia, a fuga e a ocultação do réu definem‑lhe, de ordinário, a culpa (“lato sensu”); recitavam, com efeito, os antigos: “Não foge nem se teme a inocência da justiça”.4 Donde a geral concepção de que fugir é, por excelência, o verbo dos culpados.5
Em suma: o indivíduo que, delinquindo, violou a ordem jurídica e social, terá por força de expiar seu crime, cujo salário é a pena, que haverá de cumprir conforme os ditames da lei.
Autor de todo o ponto autorizado, escreveu Nélson Hungria estas palavras, dignas de se imprimirem em lâminas de ouro:
“A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131).
III. Ao julgar caso de réu que empreendera fuga, pronunciou-se por este feitio o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:
Ao evadir-se, o preso infringe o código de disciplina do estabelecimento penal e desrespeita a primeira das obrigações inerentes a seu estado de condenado: submeter-se à pena. Daqui por que a lei considera a fuga falta disciplinar grave (art. 50, nº II, da Lei de Execução Penal).
“A principal obrigação legal, fundamental mesmo, inerente ao estado do condenado a pena privativa de liberdade, é justamente a de se submeter o preso a ele, ou seja, a não procurar furtar-se à pena pela fuga ou evasão” (Julio Fabbrini Mirabete, Execução Penal, 5a. ed., p. 121).
1. Inconformado com a r. decisão que proferiu o MM. Juízo de Direito da Vara das Execuções Criminais da Comarca de São Vicente, indeferindo-lhe pedido de livramento condicional, interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, JLMS.
Afirma, em razões apresentadas por esforçada e culta patrona, que a r. decisão agravada se baseara em cálculo de pena incorreto.
Acrescenta que cumpriu até à presente data mais de metade de sua pena.
Argumenta ainda que, a despeito da regressão de regime, não havia desprezar o tempo de pena cumprido antes do fato determinante da regressão, para a fim de recálculo e promoção a novo estágio ou concessão de benefício.
Pleiteia, por isso, a concessão de livramento condicional, pois atendera estritamente aos requisitos do art. 83. do Código Penal (fls. 4/7).
Apresentou contraminuta de agravo a douta Promotoria de Justiça: repeliu a pretensão da nobre Defesa e propugnou a mantença da r. decisão recorrida (fls. 9/10).
O r. despacho de fl. 21. manteve a decisão recorrida, por seus próprios e jurídicos fundamentos.A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido e avisado parecer do Dr. Mauro Augusto de Souza Mello Júnior, opina pelo improvimento do recurso (fls. 68/69).
É o relatório.
2. Requereu o agravante livramento condicional, com fundamento em que, de sua pena de 6 anos, 2 meses e 20 dias já cumprira para mais de metade.
Asseverou que, destarte, satisfazia ao pressuposto do art. 83, nº II, do Código Penal (fls. 13/15).
O MM. Juiz de Direito da Vara das Execuções Criminais de São Vicente, no entanto, pelo r. despacho de fl. 17, indeferiu-lhe a pretensão, forte no argumento de que o cálculo elaborado não merecia reparos.
Para mais, “o termo inicial para benefícios deve ser considerado a partir da data da falta grave cometida” ( ibidem ).
Não esteve, porém, pelo teor da r. decisão a combativa Defensora do agravante, que manifestou recurso para esta augusta Corte de Justiça.
3. Faz certo o cálculo de pena de fl. 20. que o agravante cumpriu, desde a data da falta disciplinar — 29.7.99 —, 2 anos, 2 meses e 9 dias; metade da pena que lhe foi imposta, somente cumpriria aos 2 de agosto de 2000.
Portanto, ainda não atendera ao lapso temporal para a concessão do benefício.
Como praticara falta disciplinar de natureza grave em 29.7.99, este é o termo inicial do cômputo do prazo (1/3), para o pedido de livramento condicional.
Ao demais — e isto mesmo ponderou o douto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça —, durante a execução de sua pena, não revelou o agravante procedimento exemplar, ao revés cometeu falta grave (fuga). Com efeito, segundo o diretor do Presídio de Mongaguá, certa feita, em que devia comparecer ao consultório do oftalmologista, ao aproximar‑se o veículo de um semáforo, diminuída a velocidade, o agravante “saiu em desabalada carreira” (fl. 29).
Ora, ao encetar fuga, o preso infringe o código de disciplina do estabelecimento penal e desrespeita a primeira das obrigações inerentes a seu estado de condenado: submeter-se à pena. Daqui por que a lei a considera falta disciplinar grave (art. 50, nº II, da Lei de Execução Penal).
Discorrendo da questão, ensina Julio Fabbrini Mirabete:
“A principal obrigação legal, fundamental mesmo, inerente ao estado do condenado a pena privativa de liberdade, é justamente a de se submeter o preso a ela, ou seja, a não procurar furtar-se à pena pela fuga ou evasão” (Execução Penal, 5a. ed., p. 121).
Merece transcrito, afinal, por encerrar excelente inteligência a propósito do caso, este passo do douto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça:
“Nestas condições, forçosa a conclusão de que o agravante não registra bom comportamento no cárcere (art. 83, III, CP), nem há garantia sua de não-retorno à delinquência (art. 83, IV, CP), devendo permanecer mais algum tempo no regime prisional inicial, para mostrar inequivocamente estar realmente apto à liberdade”.
Não cabe censura, portanto, à decisão que proferiu o distinto e culto Magistrado Dr. Carlos Fonseca Monnerat.
4. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.
(TAC/SP, 15ª Câmara, Agravo em Execução nº 1.252.411/6, j. 28/8/2001, Relator: Carlos Biasotti)
Notas
1 Há, é verdade, os que (e fortes razões não lhes falecem) antepõem à liberdade a honra, que nenhum homem digno perde senão com a própria vida. Fez-lhe a apologia, em termos peremptórios, o profundo Vieira: A honra “é mais preciosa e amável que a mesma vida” (Sermões, 1959, t. XIV, p. 228). Pelo mesmo teor, Matias Aires: A desonra é “a única desgraça que se imprime na alma como um caráter imortal” (Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, p. 42). Em todo o caso, liberdade pertence aos “bens soberanos”: “aqueles a que a generalidade dos seres humanos atribui máximo valor” (Goffredo Telles Junior, Iniciação na Ciência do Direito, 2002, p. 341; Editora Saraiva). Ainda: “Sempre a liberdade… Algo haverá mais importante do que ela? Tenho para mim que dela depende a definição do homem” ( Idem , A Folha Dobrada, 1999, p. 321; Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro).
2 Reza a mitologia grega que Dédalo e seu filho Ícaro, que Minos mandara encerrar no labirinto de Creta, daí fugiram empregando engenhoso artifício: após ligar, com cera, penas de aves ao corpo, à maneira de asas, alçaram voo. Ícaro, no entanto, desobedecendo às ordens paternas, aproximou-se do Sol, que lhe derreteu a cera; pelo que, foi precipitado no mar Egeu. O escritor Monteiro Lobato, sob a inspiração do feito glorioso de Santos Dumont, cunhou-lhe irônico epitáfio: “Aqui jaz Ícaro, o pai da aviação errada” (Obras Completas, 1956, vol. II, p. 185; Brasiliense).
3 Foi protagonista da espetacular fuga Danilo Sousa Cavalcante, brasileiro de origem — ainda mal! —, condenado à prisão perpétua por ter matado a golpes de faca sua ex-namorada Débora Brandão. Recapturado no dia 13 de setembro de 2023 — ocultava-se entre pilhas de madeira —, foi logo metido entre ferros, em penitenciária do estado de Pensilvânia (EUA), onde continuará a expiar seu hediondo crime. (Fonte: UOL Notícias; tiny.cc/u5k9001).
4 Antônio Ferreira, Castro, 1974, ato IV, cena I, p. 147; Editora Atlântica; Coimbra.
5 Confessa o crime o que foge do julgamento, escreveu Publílio Siro (“Fatetur facinus is qui judicium fugit”).