A distinção entre os domínios público e privado constitui um dos fundamentos estruturantes da organização jurídica e social. Essas esferas, embora distintas, não se apresentam como compartimentos estanques, mas interagem historicamente na conformação das práticas institucionais, dos espaços urbanos e das formas de convivência. A obra O Jardim e a Praça, de Nelson Saldanha, representa uma contribuição singular à compreensão simbólica e normativa dessa dualidade. Ao adotar imagens arquetípicas, como o jardim — símbolo da intimidade — e a praça — expressão da convivência coletiva —, o autor propõe uma leitura filosófica e antropológica que transcende o formalismo jurídico e permite novas interpretações sobre o espaço social como campo de interação entre o direito e a cultura.
Saldanha desenvolve, com notável sensibilidade filosófica, uma reflexão que une linguagem, espaço e normatividade. A praça, em sua concepção, não se reduz ao traçado arquitetônico, mas se constitui como manifestação histórica da vida pública, da expressão política e do encontro. Já o jardim, como prolongamento do lar, representa a esfera da interioridade, do recolhimento e da posse. A partir dessa simbologia, demonstra que o espaço não é neutro, mas carrega sentidos normativos que moldam a organização social. “A praça encerra a história, o jardim a biografia” (Saldanha, 1986), afirma, evidenciando como o direito estrutura-se também por meio de representações espaciais.
A obra estabelece uma interlocução entre o direito e a filosofia política, retomando concepções antigas sobre a dualidade público/privado. A polis grega, espaço da política e da liberdade, opunha-se ao oikos, domínio da vida doméstica e da necessidade. Essa distinção, retomada simbolicamente por Saldanha, mostra-se ainda pertinente na análise do ordenamento jurídico contemporâneo, onde a separação entre as esferas se reflete nas normas, nos regimes institucionais e na linguagem do direito. A modernidade, ao consolidar o Estado liberal e o pensamento secular, promoveu a autonomização dos domínios público e privado, tornando-os elementos fundamentais da normatização social.
Contudo, a história brasileira revela tensões específicas nesse processo. A tradição patrimonialista, conforme observa Faoro (2001, apud Pinto; Costa, 2015), dificultou a consolidação de uma esfera pública autônoma, marcada pela sobreposição entre interesses coletivos e apropriações privadas. O direito, ao lidar com essa ambiguidade, incorpora elementos normativos de convivência coletiva ao lado de normas voltadas à proteção da individualidade (Saldanha, 1986). Essa coexistência normativa expressa a complexidade dos regimes híbridos e as zonas de intersecção entre o público e o privado, que desafiam classificações rígidas e revelam os limites da dicotomia tradicional.
A contribuição de Saldanha ganha ainda mais relevância diante dos desafios contemporâneos vivenciados nas cidades. A praça, enquanto espaço coletivo e símbolo da vida pública, tem sido progressivamente esvaziada por dinâmicas de mercantilização, exclusão e apropriação privada dos bens comuns. Harvey (2014) alerta para o esvaziamento dos “comuns urbanos”, cuja apropriação econômica compromete o sentido social da cidade. Ao afirmar que a consagração do urbano deveria representar o fortalecimento da vida pública, Saldanha (1986) antecipa críticas à lógica de mercado que transforma o espaço urbano em objeto de troca. O direito, nesse cenário, assume papel decisivo na regulação dessas disputas simbólicas e materiais.
A utilização dos símbolos praça e jardim ultrapassa a dimensão estética. Trata-se de uma chave interpretativa para compreender como os espaços sociais, normatizados pelo direito, expressam a tensão permanente entre visibilidade e intimidade, entre coletivo e individual. A linguagem jurídica participa da construção desses sentidos, pois nomeia, delimita e organiza os lugares sociais (Saldanha, 1986). Assim, o jardim cercado por muros invisíveis e a praça invadida por cercas simbólicas revelam que o direito é, também, instrumento de delimitação das fronteiras entre o que se pode tornar público e o que se reserva ao privado.
A contribuição de Nelson Saldanha, portanto, vai além da metáfora espacial. Ao articular filosofia, antropologia e teoria do direito, o autor oferece uma lente crítica para interpretar os elementos simbólicos da convivência jurídica. Sua obra proporciona um repertório conceitual útil à análise dos desafios atuais enfrentados pelo Direito Público, especialmente na configuração dos espaços urbanos, na proteção da função social da propriedade e na tensão entre normas voltadas ao interesse coletivo e à garantia da liberdade individual. O jardim e a praça permanecem, assim, como imagens vivas da disputa histórica que define os contornos do espaço jurídico moderno.
REFERÊNCIAS
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