Capa da publicação Público e privado: "O Jardim e a Praça" em Saldanha
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Artigo Destaque dos editores

A dicotomia entre público e privado.

Contribuições jurídico-filosóficas a partir da obra "O Jardim e a Praça", de Nelson Saldanha

Resumo:


  • A distinção entre os domínios público e privado é fundamental na organização jurídica e social.

  • A obra "O Jardim e a Praça" de Nelson Saldanha aborda a dualidade entre o jardim (intimidade) e a praça (convivência coletiva).

  • A interação entre direito e cultura é evidenciada na análise das esferas pública e privada, desafiando classificações rígidas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A distinção entre público e privado estrutura o direito e a sociedade, mas como essas esferas interagem na configuração dos espaços urbanos? Nelson Saldanha propõe que símbolos como praça e jardim expressam essa tensão.

A distinção entre os domínios público e privado constitui um dos fundamentos estruturantes da organização jurídica e social. Essas esferas, embora distintas, não se apresentam como compartimentos estanques, mas interagem historicamente na conformação das práticas institucionais, dos espaços urbanos e das formas de convivência. A obra O Jardim e a Praça, de Nelson Saldanha, representa uma contribuição singular à compreensão simbólica e normativa dessa dualidade. Ao adotar imagens arquetípicas, como o jardim — símbolo da intimidade — e a praça — expressão da convivência coletiva —, o autor propõe uma leitura filosófica e antropológica que transcende o formalismo jurídico e permite novas interpretações sobre o espaço social como campo de interação entre o direito e a cultura.

Saldanha desenvolve, com notável sensibilidade filosófica, uma reflexão que une linguagem, espaço e normatividade. A praça, em sua concepção, não se reduz ao traçado arquitetônico, mas se constitui como manifestação histórica da vida pública, da expressão política e do encontro. Já o jardim, como prolongamento do lar, representa a esfera da interioridade, do recolhimento e da posse. A partir dessa simbologia, demonstra que o espaço não é neutro, mas carrega sentidos normativos que moldam a organização social. “A praça encerra a história, o jardim a biografia” (Saldanha, 1986), afirma, evidenciando como o direito estrutura-se também por meio de representações espaciais.

A obra estabelece uma interlocução entre o direito e a filosofia política, retomando concepções antigas sobre a dualidade público/privado. A polis grega, espaço da política e da liberdade, opunha-se ao oikos, domínio da vida doméstica e da necessidade. Essa distinção, retomada simbolicamente por Saldanha, mostra-se ainda pertinente na análise do ordenamento jurídico contemporâneo, onde a separação entre as esferas se reflete nas normas, nos regimes institucionais e na linguagem do direito. A modernidade, ao consolidar o Estado liberal e o pensamento secular, promoveu a autonomização dos domínios público e privado, tornando-os elementos fundamentais da normatização social.

Contudo, a história brasileira revela tensões específicas nesse processo. A tradição patrimonialista, conforme observa Faoro (2001, apud Pinto; Costa, 2015), dificultou a consolidação de uma esfera pública autônoma, marcada pela sobreposição entre interesses coletivos e apropriações privadas. O direito, ao lidar com essa ambiguidade, incorpora elementos normativos de convivência coletiva ao lado de normas voltadas à proteção da individualidade (Saldanha, 1986). Essa coexistência normativa expressa a complexidade dos regimes híbridos e as zonas de intersecção entre o público e o privado, que desafiam classificações rígidas e revelam os limites da dicotomia tradicional.

A contribuição de Saldanha ganha ainda mais relevância diante dos desafios contemporâneos vivenciados nas cidades. A praça, enquanto espaço coletivo e símbolo da vida pública, tem sido progressivamente esvaziada por dinâmicas de mercantilização, exclusão e apropriação privada dos bens comuns. Harvey (2014) alerta para o esvaziamento dos “comuns urbanos”, cuja apropriação econômica compromete o sentido social da cidade. Ao afirmar que a consagração do urbano deveria representar o fortalecimento da vida pública, Saldanha (1986) antecipa críticas à lógica de mercado que transforma o espaço urbano em objeto de troca. O direito, nesse cenário, assume papel decisivo na regulação dessas disputas simbólicas e materiais.

A utilização dos símbolos praça e jardim ultrapassa a dimensão estética. Trata-se de uma chave interpretativa para compreender como os espaços sociais, normatizados pelo direito, expressam a tensão permanente entre visibilidade e intimidade, entre coletivo e individual. A linguagem jurídica participa da construção desses sentidos, pois nomeia, delimita e organiza os lugares sociais (Saldanha, 1986). Assim, o jardim cercado por muros invisíveis e a praça invadida por cercas simbólicas revelam que o direito é, também, instrumento de delimitação das fronteiras entre o que se pode tornar público e o que se reserva ao privado.

A contribuição de Nelson Saldanha, portanto, vai além da metáfora espacial. Ao articular filosofia, antropologia e teoria do direito, o autor oferece uma lente crítica para interpretar os elementos simbólicos da convivência jurídica. Sua obra proporciona um repertório conceitual útil à análise dos desafios atuais enfrentados pelo Direito Público, especialmente na configuração dos espaços urbanos, na proteção da função social da propriedade e na tensão entre normas voltadas ao interesse coletivo e à garantia da liberdade individual. O jardim e a praça permanecem, assim, como imagens vivas da disputa histórica que define os contornos do espaço jurídico moderno.


REFERÊNCIAS

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HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução de Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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PIRES, George Niclaides de Moraes; CEZAR, Larissa Wegner. O direito à cidade e o desenvolvimento sustentável urbano: dilemas do planejamento urbano moderno. Revista de Direito Urbanístico, Cidade e Alteridade, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 123–142, jul./dez. 2016. DOI: https://doi.org/10.26668/IndexLawJournals/2525-989X/2016.v2i2.1323

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SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. O contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na Idade Moderna. Sequência: estudos jurídicos e políticos, n. 55, p. 145–160, 2012. DOI: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15056.

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Sobre o autor
Antonio Vital de Moraes Junior

Servidor Público. Mestrando em Estudos Jurídicos com Ênfase em Direito Internacional pela Must University. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Metodologia do Ensino da Filosofia pela Universidade Gama Filho. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade São Vicente. MBA em Administração e Gestão Pública pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Graduado em Licenciatura em Filosofia e Bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES JÚNIOR, Antonio Vital Moraes Junior. A dicotomia entre público e privado.: Contribuições jurídico-filosóficas a partir da obra "O Jardim e a Praça", de Nelson Saldanha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7928, 16 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113196. Acesso em: 19 abr. 2025.

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