DO PRECEDENTE DO STJ: Resp. 1.622.555/MG
O caso paradigma pelo qual não se admite a aplicação da teoria do adimplemento substancial às ações de busca e apreensão provenientes de contratos de alienação fiduciária regidos pelo decreto-lei 911/1969 referiu-se à propositura de ação de busca e apreensão por instituição financeira que efetuou financiamento da quantia de R$ 14.739,17 (quatorze mil, setecentos e trinta e nove reais e dezessete centavos), em 48 parcelas no valor nominal de R$ 439,86 (quatrocentos e trinta e nove reais e trinta e seis centavos), garantido por contrato de alienação fiduciária, tendo o fiduciante, ao tempo da propositura da ação de busca e apreensão, efetuado o pagamento de 44 parcelas, equivalente a 91,66% do valor financiado.
Em sede de primeiro grau, o juiz a quo, por base da teoria do adimplemento substancial, julgou extinto o processo, considerando carência de ação à instituição financeira, haja vista considerar a via inadequada ao fim desejado, considerando que o contrato encontrava-se substancialmente adimplido, porquanto desautorizada a resolução.
Interposto recurso de apelação pela instituição financeira, a decisão de primeira instância foi mantida face à interpretação sistemática dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e da vedação ao enriquecimento sem causa, conforme trecho da decisão:
A teoria do adimplemento substancial tem sido aplicada pelos tribunais pátrios como instrumento de equidade colocado à disposição do intérprete para que nas hipóteses em que a extinção da obrigação esteja muito próxima do fim, exclua-se a possibilidade de resolução do contrato mediante a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, permitindo-se somente a propositura de ação de cobrança do saldo em aberto ou eventual execução.75
Por fim, a instituição interpôs Recurso Especial, o qual restou negado na origem, bem como diante de Agravo que visava destrancar a insurgência, sendo, porém, acolhido em agravo regimental, o qual foi convertido em Recurso Especial.
Julgado o Recurso Especial, este restou provido, pelo qual o voto do Min. relator Marco Buzzi foi vencido, sendo acompanhado apenas pelo Min Luis Felipe Salomão, ao passo que o voto do Min Marco Aurélio Bellize foi vencedor, acompanhado dos Ministros Antonio Carlos Ferreira, Moura Ribeiro, Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti e Ricardo Villas Bôas Cueva.
5.1. A (IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL AOS CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA NAS AÇÕES DE BUSCA E APREENSÃO REGIDAS PELO DECRETO-LEI 911/1969 À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
A teoria do adimplemento substancial foi amplamente recepcionada no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo carecendo de positivação, de modo que sua aplicação se coaduna com os princípios e objetivos constitucionais, fazendo com que sua realização importe a busca pelo equilíbrio nas relações contratuais, obstando resoluções que caracterizem o uso exacerbado do direito do credor, diante do estágio em que se encontra o vínculo contratual.
Conforme se relatou, sua aplicabilidade não se dá de forma objetiva, devendo ser analisada no caso concreto, de maneira a aferir seu cabimento ante a resolução do vínculo contratual, analisando os critérios subjetivos: quantitativo, que importa, de fato, a substancialidade do cumprimento da dívida; bem como qualitativo, o qual funda-se em uma análise da qualidade do cumprimento até o momento em discussão, capaz de, conforme Tartuce, afastar “a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.”76
Todavia, imaginar a inadmissibilidade da doutrina em caráter irrestrito, não parece estar em consonância com a finalidade a qual se fundamentou em nosso ordenamento jurídico, qual seja, de fazer preponderar os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.
Nesta senda, deve-se analisar alguns dos principais argumentos do voto vencedor, que motivaram tal decisão, tecendo alguns comentários acerca de sua congruência ou não, quanto a aplicação da matéria, com base no que fora estudado.
Inicialmente, portanto, extrai-se do voto do Min Bellize que, como um de seus fundamentos para a inadmissão da aplicação da teoria do adimplemento substancial às ações de busca e apreensão, dá-se pela impossibilidade de aplicação do Código Civil ao regramento especial (Dec.-Lei 911/1969), e, consequentemente, dos princípios que ela fundamentam, pelo que reputa “[...]incompatível com os termos da lei especial, que é expressa (sem lacuna, portanto) em assentar a necessidade de pagamento da integralidade da dívida pendente, para viabilizar a restituição do bem ao devedor fiduciante”, sendo possível, apenas, quando “[...] não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela mencionada lei.”77
Data máxima vênia, tal argumento não parece suficiente a obstar a aplicação da referida doutrina, eis que, de fato, o artigo 1.368-A do Código Civil aponta sua incidência subsidiária em relação às espécies de alienação fiduciária regidas por leis especiais, contudo, mesmo que entendendo, ainda, referir-se tal artigo apenas ao capítulo atinente à propriedade fiduciária, importa observar que, conforme vimos, os dispositivos que fundamentam a aplicação da doutrina são princípios revestidos de cláusulas gerais que devem balizar todas relações contratuais, consubstanciando-se como matérias de ordem pública que, de acordo com Miranda, “[...]refletem a supremacia do interesse público sobre o interesse particular”78, sendo fundadas nos vetores axiológicos constitucionais, revelando, assim, caráter de maior relevância, haja vista nortearem as relações jurídicas obrigacionais, de modo que transgredir ou desconsiderar tais preceitos, sim, demonstra-se contraposição ao ordenamento. Nessa esteira, menciona-se passagem do já citado ex Min. Ruy Rosado, o qual caracteriza as finalidades exercidas pela ordem pública, de modo a ilustrar perfeitamente o que se pretende referir, demonstrando, acima de tudo, sua capacidade de auxiliar o intérprete no julgamento de determinados casos.
Ordem pública pode servir a duas finalidades: (a) como um princípio que auxilia o intérprete na definição de leis ou de questões, a fim de estabelecer se elas são ou não de ordem pública; (b) como uma cláusula geral, expressão de valores jurídicos e metajurídicos, a qual autoriza o aplicador a formular uma norma concretizada para o caso, e com ela qualificar condutas, dizendo-as adequadas ou contrárias à ordem pública. Com ela o juiz pode eliminar certos direitos e impor obrigações: a ordem pública concede direitos e impõe limites às atividades dos indivíduos, sendo que certos comportamentos podem não infringir lei alguma, mas mesmo assim serem contrários à ordem pública.79
Desse modo, entende-se que, em síntese, submeter decisões judiciais com base única e exclusivamente em critérios objetivos fixados em determinada lei, sob o argumento de referida lei ser a única fonte de consulta possível, ante sua especialidade, estaria, pois, por desconsiderar o arcabouço legal aplicável à matéria e, mais ainda, indo de encontro aos ditames emanados pela Constituição, os quais se inserem no direito privado sob conceitos abertos, por meio das cláusulas gerais, possibilitando assim a melhor intervenção do Estado-juiz, a fim de mitigar situações de injustiça provenientes de um formalismo estrito. Nesse contexto, é como leciona Gonçalves:
As cláusulas gerais resultaram basicamente do convencimento do legislador de que as leis rígidas, definidoras de tudo e para todos os casos, são necessariamente insuficientes e levam seguidamente a situações de grave injustiça. Embora tenham, num primeiro momento, gerado certa insegurança, convivem, no entanto, harmonicamente no sistema jurídico, respeitados os princípios constitucionais concernentes à organização jurídica e econômica da sociedade. Cabe destacar, dentre outras, a cláusula geral que exige um comportamento condizente com a probidade e boa-fé objetiva (CC, art. 422) e a que proclama a função social do contrato (art. 421). São janelas abertas deixadas pelo legislador, para que a doutrina e a jurisprudência definam o seu alcance, formulando o julgador a própria regra concreta do caso.80
Seguindo a análise, acrescenta o ministro, ainda, que a teoria do adimplemento não seria aplicável às ações de busca e apreensão, haja vista que sua finalidade, alega, é de obstar a resolução contratual proposta pelo credor, enquanto nas ações de busca e apreensão, este visa o cumprimento contratual81.
Mais uma vez, entendemos, possui parcial razão o que fora imputado pelo julgador, eis que, de fato, a mera concessão de liminar de busca e apreensão do bem objeto da garantia não resolve, por si só, o vínculo contratual. Todavia, assim como também foi objeto do presente estudo, seus efeitos finalísticos são, inequivocamente, de promover a extinção do vínculo, seja pelo pagamento da quantia indicada pelo credor, no prazo de cinco dias - a qual, reitera-se, neste período, não poderá ser discutida, cabendo apenas o pagamento - ou de maneira mais gravosa, pelo não cumprimento da liminar, culminando a resolução contratual com a consolidação da propriedade do bem no patrimônio do credor.
Sob mesmo enfoque, colaciona-se entendimento de Rocha e JeReissati:
[...] uma vez inexistindo a purga da mora, haverá a rescisão contratual, podendo, inclusive, o bem ser transferido à terceiro [...]. Mas, se vier a ser paga a integralidade do valor remanescente, o veículo será devolvido ao devedor sem qualquer ônus. Em outras palavras, pelo rito imposto pela atual redação do Decreto 911/69, caso ocorra o pagamento, haverá a extinção da obrigação. Entretanto, se não houver o completo adimplemento, dá-se a rescisão contratual, de modo que, de uma forma ou de outra, a Ação de busca e Apreensão põe fim a relação contratual.82
Por fim, menciona-se outro argumento utilizado pelo Ministro Bellizze, a fim de preencher sua tese, pelo qual alega que a aplicação da teoria do adimplemento substancial às ações de busca e apreensão “[...] é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor - numa avaliação de custo-benefício - de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, menos eficazes, o que, a toda evidência, aparta-se da boa-fé contratual propugnada.”
Sobre tal fundamento, refuta-se que, conforme já assentado acima, para a caracterização da aplicação do adimplemento substancial ao caso concreto, é considerada a verificação de critérios qualitativos, e não apenas quantitativos, de modo a, justamente, afastar sua aplicação quando constatada condutas que se afastem da boa-fé, conforme se alude de suas palavras. Ademais, acrescenta-se que, além da boa fé sempre ser presumida, de modo que a má fé se prova83, não se demonstra crível imaginar que, diante do quase total adimplemento das parcelas contratuais, optaria o devedor por deixar de efetuar os últimos pagamentos, a fim de se favorecer de uma possível decisão judicial, podendo, diante disso, restar sem o bem que com tanto esforço adquiriu, de modo que, tem-se tal argumento fundado em um “achismo” do Exmo. Ministro que, porém, em nosso ver, não serve como base para a decisão em comento.
Logo, em última análise, encaminhando-se para a finalização do presente artigo, denota-se a complexidade do tema, possuindo defensores de ambas teses, de modo que não objetiva-se aqui, repisa-se, ilegitimar conceitos divergentes, mas sim estabelecer contraponto fundamentado nas vertentes constitucionais.
Nesta senda, compreendendo o advento do Estado Social, o qual consigna o indivíduo como o centro das relações jurídicas, diante do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que, contudo, diferentemente da acepção proveniente do liberalismo, carrega o adjetivo “social”, o qual, conforme aponta Moraes84, citando José Afonso da Silva, “[...] refere-se ‘à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social’”, de modo a tais preceitos passarem a orientar as relações jurídicas de direito privado, através de princípios e/ou cláusulas gerais que neles se fundamentam e fazem preponderar, levando-nos, então, à já mencionada Constitucionalização do Direito Civil. Assim, pois, atuam a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, funcionando aquele como princípio que orienta as relações contratuais, sob o prisma da eticidade, e o segundo como paradigma do exame das relações contratuais, sob o viés da socialidade, representando, conforme menciona o Min. Marco Buzzi, a preocupação estatal sob as relações contratuais, de modo “que satisfaçam não só o interesse das partes envolvidas no negócio, mas da sociedade como um todo, à qual interessa sejam devidamente cumpridos os contratos, de modo a permitir a segura circulação de riquezas, com o desenvolvimento econômico/social do país”85.
Neste compasso, integrando os contratos provenientes de alienação fiduciária em garantia sob mesmo enfoque, tem-se que deve incidir a teoria do adimplemento substancial, analisado o caso concreto, como meio de manutenção destes, em face da resolução resultante das ações de busca e apreensão, convertendo, assim, à aplicação da via executória para a satisfação do crédito do fiduciário.
CONCLUSÃO
As relações jurídicas de direito privado, diante da organização estatal contemporânea, com base na Constituição Federal de 1988 e os fundamentos basilares dela provenientes, requerem a incidência destes como princípios orientadores e limitadores de condutas pactuadas no seio privado.
Os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, positivados no Código Civil, inserem-se como porta de entrada dos valores constitucionais nas relações privadas, caracterizando-os, diante de sua positivação, como cláusulas gerais, as quais propiciam o dirigismo contratual realizado pelo Estado.
Neste contexto, considerando a importância dos princípios elencados, atua a teoria do adimplemento substancial preponderando-os, de modo a conferir óbice às resoluções contratuais fundadas em inadimplementos ínfimos, reafirmando a relevância dos contratos e de seu total cumprimento para o contexto social.
Os contratos de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, especialmente os entabulados no mercado financeiro e de capitais, aqui estudado, tendo em vista se tratar de pactos celebrados diante de grandes instituições financeiras, sobre valoram a importância destes e a proteção que neles devem incidir, diante da vulnerabilidade dos contratantes e dos princípios constitucionais de defesa do consumidor, sem olvidar a dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, tendo como base o precedente proferido no Resp. 1.622.555/MG, tem-se que incongruente a inaplicabilidade da teoria do adimplemento substancial em face do que dispõe o Decreto-Lei 911/1969, como forma de afastar a resolução contratual proveniente das ações de busca e apreensão, eis que a novel concepção das relações contratuais devem se fazer orientar pelas normas de ordem pública inseridas no âmbito privado.