III) Filósofos Contemporâneos
Filósofos contemporâneos como Immanuel Kant, John Rawls, Michel Foucault, Michael J. Sandel e Noam Chomsky têm contribuições significativas para a ética política, a filosofia moral e a crítica social, com diferentes abordagens sobre a justiça, os direitos humanos e a organização da sociedade. Cada um deles oferece uma perspectiva única que, quando analisada em conjunto, pode fornecer uma compreensão mais rica de como os princípios de igualdade, liberdade e justiça podem ser aplicados nas democracias modernas.
1. Immanuel Kant
Immanuel Kant (1724–1804) foi um filósofo alemão cuja teoria ética, conhecida como imperativo categórico, influenciou profundamente a filosofia política contemporânea. Kant acreditava que a dignidade humana e a autonomia moral eram centrais para a justiça. Em seu trabalho Crítica da Razão Prática e Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ele argumentou que as pessoas devem ser tratadas como fins em si mesmas e não como meios para um fim. A moralidade e a justiça, para Kant, derivam da razão e são universais, isto é, aplicáveis a todas as pessoas independentemente de sua situação ou contexto cultural.
1.1 Aplicação nos Direitos Humanos
O conceito kantiano de autonomia e dignidade humana se conecta diretamente aos direitos humanos contemporâneos. O respeito à liberdade e à igualdade de todos os indivíduos é uma pedra angular no pensamento kantiano. Para Kant, a justiça se dá quando as leis são estruturadas para respeitar a liberdade e a autonomia dos cidadãos, permitindo que todos sejam tratados com o máximo respeito como seres racionais e morais.
2. John Rawls
John Rawls (1921–2002) é talvez o filósofo mais influente no campo da justiça social do século XX, com sua obra mais famosa, Teoria da Justiça (1971), na qual ele propôs um modelo de justiça distributiva fundamentado no princípio da justiça como equidade. Rawls introduziu o conceito de um “véu de ignorância”, no qual as pessoas, ao estabelecerem princípios de justiça para uma sociedade, deveriam fazer isso sem saber qual será sua posição social, econômica ou sua classe. Ele propôs que uma sociedade justa seria aquela que favorecesse, em primeiro lugar, os menos favorecidos. Ou seja, as pessoas não sabem, de antemão, em quais locais e circunstâncias nascerão: escravos ou livres; patriarcado ou igualdade de gêneros; heteronormatividade ou racismo à sexualidade; aristocracia ou República; ditadura ou democracia.
2.2 Aplicação no Século XXI
Rawls tem grande influência nas discussões sobre desigualdade social e distribuição de recursos no contexto contemporâneo. A sua abordagem do “princípio da diferença” sugere que as desigualdades são justificáveis apenas se beneficiam os mais pobres e desfavorecidos. Portanto, sua teoria oferece um quadro útil para discutir políticas públicas que visam garantir a igualdade de oportunidades e promover a justiça distributiva, especialmente no contexto de pobreza e desigualdade econômica.
3. Michel Foucault
Michel Foucault (1926–1984) foi um filósofo francês cujas obras sobre poder, discursos e instituições sociais trouxeram uma nova visão crítica sobre como a sociedade controla e organiza os indivíduos. Foucault não propôs uma teoria normativa da justiça como Rawls ou Kant, mas focou no estudo das relações de poder e como elas moldam as identidades, práticas sociais e a moralidade. Em obras como Vigiar e Punir, Microfísica do Poder e História da Sexualidade, Foucault analisa como as instituições (prisões, hospitais, escolas, famílias etc.) disciplinam e regulam a sociedade, e como as normas sociais e o conhecimento são usados para controlar os corpos e as mentes dos indivíduos.
Resumo das obras:
Vigiar e Punir (1975): Foucault analisa a evolução dos sistemas de punição, do castigo físico e visível nas praças públicas para formas mais sutis de controle social, como a prisão moderna. Ele introduz o conceito de panóptico, um modelo de vigilância contínua, e discute como o poder se dispersa na sociedade, moldando os corpos e comportamentos das pessoas mediante instituições como escolas, hospitais e prisões.
Microfísica do Poder (1979): Foucault descreve como o poder não é somente centralizado nas instituições governamentais, mas se exerce difusamente, nos microprocessos do cotidiano. O poder, então, é internalizado pelos indivíduos e se manifesta em práticas sociais cotidianas, como o comportamento, a linguagem e a disciplina, permeando todos os aspectos da vida social. Tal “poder” pode ser visto nas diferenciações de pessoas, desde ortografia, fonética etc.
História da Sexualidade (1976-1984): Foucault examina como a sexualidade foi historicamente regulada e como a sociedade ocidental desenvolveu discursos sobre o sexo, não como repressão, mas como um meio de controle. Ele argumenta que a sociedade moderna tem uma obsessão por categorizar, diagnosticar e controlar a sexualidade, em vez de simplesmente reprimi-la.
3.1. Aplicação na Justiça Social
Foucault é especialmente relevante para a compreensão da desigualdade social e dos mecanismos de opressão, como bem elucidado em Microfísica do Poder. Seu trabalho pode ser usado para analisar as formas sutis de controle social, como as estruturas que marginalizam certas populações (como minorias étnicas, mulheres, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência). Ele nos desafia a repensar as instituições sociais e como elas contribuem para a repressão e a exclusão de grupos vulneráveis, propondo que uma sociedade justa deveria questionar os padrões de normalidade e os mecanismos de disciplinamento que reforçam desigualdades.
4. Michael J. Sandel
Michel J. Sandel é um filósofo político contemporâneo cujas obras abordam questões centrais da ética, justiça e moralidade em uma sociedade democrática. Um de seus livros mais conhecidos é “Justiça: O que é fazer a coisa certa”, onde ele explora diferentes concepções de justiça e como elas se aplicam a questões sociais e políticas contemporâneas. A obra oferece uma análise acessível e profunda das teorias morais e políticas, contrastando os pontos de vista de filósofos antigos e modernos.
“Justiça: O que é fazer a coisa certa”. Neste livro, Sandel propõe uma reflexão sobre a justiça a partir de diferentes tradições filosóficas, incluindo o utilitarismo, o liberalismo de John Rawls, e a filosofia comunitarista. Ele utiliza exemplos práticos e dilemas morais para ilustrar como as várias teorias podem ser aplicadas a problemas reais, como redistribuição de riqueza, direitos individuais e questões de igualdade.
4.1. Principais abordagens filosóficas discutidas:
Utilitarismo (Jeremy Bentham e John Stuart Mill): O utilitarismo é baseado na ideia de que a ação moralmente correta é aquela que maximiza o bem-estar coletivo ou felicidade. Sandel examina o utilitarismo como uma teoria que promove a maior felicidade para o maior número de pessoas, mas também questiona suas limitações, como a possibilidade de sacrificar os direitos individuais para o bem maior. Ele apresenta exemplos práticos que destacam as dificuldades e as injustiças que podem surgir quando o utilitarismo é aplicado em situações reais.
Liberalismo de John Rawls: Sandel discute a teoria de justiça como equidade de John Rawls, que propõe que as desigualdades sociais e econômicas são aceitáveis apenas se beneficiem os mais desfavorecidos (o princípio da diferença). Rawls também introduz o conceito do véu de ignorância, no qual as pessoas, ao estabelecerem as regras de uma sociedade justa, deveriam fazê-lo sem saber qual será sua posição social, econômica ou suas características pessoais. Sandel critica o liberalismo por se focar excessivamente na autonomia individual e não considerar a importância da comunidade e das relações sociais na definição do que é justo.
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Comunitarismo: Em contraste com as teorias liberalistas e utilitaristas, Sandel apresenta o comunitarismo, que enfatiza a importância das tradições culturais e das comunidades na formação das nossas identidades e escolhas morais. Pensadores comunitaristas, como Alasdair MacIntyre e Charles Taylor, argumentam que os indivíduos não são seres totalmente autônomos e racionais, como sugerido por filósofos liberais, mas são formados pelas comunidades e pelas práticas culturais nas quais estão inseridos. Sandel explora como a solidariedade e os valores comunitários influenciam as noções de justiça e o que é considerado moralmente correto.
4.2. Crítica ao Liberalismo e à Ética de Mercado
Sandel critica as abordagens liberais, como a de Rawls, por negligenciarem a importância das virtudes cívicas e dos valores compartilhados na sociedade. Ele argumenta que o individualismo e a ênfase na autonomia pessoal podem enfraquecer a coesão social e dificultar a criação de uma sociedade justa. Sandel sugere que a justiça não é apenas uma questão de distribuição de bens, mas envolve também questões de moralidade cívica e de solidariedade comunitária. Ele se opõe à ideia de que a mercantilização de todas as esferas da vida (educação, saúde, políticas públicas) pode ser justificada por uma lógica liberal de eficiência e escolha individual.
A obra de Sandel também faz reflexões sobre questões contemporâneas, como:
Direitos dos imigrantes e as fronteiras nacionais.
Desigualdade econômica e as formas de redistribuição.
Bioética: O uso de tecnologias genéticas e de reprodução assistida.
Educação: O papel da educação na formação do caráter cívico e nas escolhas políticas.
Em “Justiça: O que é fazer a coisa certa", Sandel nos convida a refletir sobre o que faz uma sociedade justa, não apenas em termos de direitos individuais ou distribuição de recursos, mas também considerando as relações sociais, os valores compartilhados e as tradições culturais que formam as comunidades. A obra é um chamado à reflexão sobre como equilibrar a liberdade individual com a solidariedade social, com base em uma concepção de justiça que não se limita a uma lógica de mercado ou a uma visão puramente liberal. Sandel não oferece uma resposta definitiva, mas propõe um diálogo moral sobre como devemos tratar reciprocamente em uma sociedade democrática, destacando a necessidade de deliberação pública e reflexão coletiva sobre as questões que nos afetam como comunidade.
4.3. A mercantilização da vida social
A crítica de Michel Sandel à lógica de mercado está centrada em sua análise de como o mercado e as dinâmicas econômicas têm invadido esferas da vida que, segundo ele, não deveriam ser governadas por princípios de eficiência e lucro. Em seu livro “Justiça: O que é fazer a coisa certa?” e em outras obras, Sandel argumenta que a mercantilização de aspectos fundamentais da vida humana — como a saúde, a educação, o ambiente, e até as relações pessoais — ameaça corroer os valores cívicos, a solidariedade social e o bem comum.
Sandel afirma que, nos últimos anos, houve um excesso de mercantilização de áreas que, em sua visão, deveriam ser protegidas da lógica de mercado. Isso inclui aspectos como a educação, a saúde, a segurança pública, e até as relações pessoais. Para ele, a tendência de tratar tudo como um bem de consumo — onde tudo tem um preço sendo trocado por dinheiro — desvirtua as práticas cívicas e enfraquece os valores que formam a coerência social.
Exemplos de mercantilização:
Educação: O ensino, tanto em níveis elementares quanto superiores, passou a ser visto em muitos países como uma mercadoria a ser comprada e vendida, com a qualidade do ensino muitas vezes determinada pela capacidade financeira das famílias.
Saúde: Em muitos lugares, especialmente nos EUA, o acesso à saúde é determinado pela capacidade de pagamento, e muitas vezes são priorizados tratamentos caros, enquanto serviços preventivos ou necessários para os mais pobres são negligenciados.
Espaços públicos: Até mesmo a presença da privatização de espaços públicos ou de serviços que deveriam ser coletivos é uma crítica frequente. Sandel vê nisso uma tendência para despersonalizar o que deveria ser uma experiência cívica compartilhada, tornando a vida social em uma competição baseada em poder aquisitivo. Exemplo, privatizações de praias (bem público de uso comum)
4.4. A lógica de mercado enfraquece as virtudes cívicas
Um ponto central da crítica de Sandel é que, ao trazer o mercado para áreas essenciais da vida humana, perdemos o senso de solidariedade e compromisso moral necessários para a coesão social. Ele argumenta que as instituições que devem servir ao bem comum, como o sistema de saúde ou a educação pública, não podem ser tratadas como empresas, onde o principal objetivo é o lucro.
A solidariedade social é fundamental para ele, e, ao permitir que tudo seja subordinado ao mercado, perdemos a responsabilidade cívica de cuidar dos outros e da comunidade. Em um mercado, as relações humanas se tornam cada vez mais impessoais, sendo mediadas pelo dinheiro e pela busca incessante por eficiência econômica, o que destrói a noção de dever moral que deve existir na construção de uma sociedade justa.
4.5. A erosão das normas sociais e da ética pública
Sandel critica que a lógica de mercado, ao ser aplicada a tudo, faz com que os cidadãos passem a ver suas próprias ações e relacionamentos em termos de interesses privados e benefícios pessoais. Em vez de agir como membros de uma comunidade, com obrigações mútuas sendo guiados por normas de justiça e solidariedade, os indivíduos passam a atuar como consumidores que maximizarão seus próprios ganhos.
A ética de mercado, segundo Sandel, pode criar uma espécie de erosão moral onde a cidadania é trocada por individualismo, e a justiça distributiva cede lugar à competição impiedosa. Ele se opõe à ideia de que a desigualdade social é aceitável se ela for o resultado da liberdade de mercado, pois isso minimiza o papel do Estado em promover o bem-estar coletivo.
Exemplos e reflexões
No livro, Sandel usa exemplos práticos e atuais para ilustrar como a lógica de mercado é aplicada em várias áreas da vida, e como isso pode ser problemático:
Leilões de órgãos: Sandel discute casos em que a ideia de vender órgãos ou comercializar direitos de uma maneira que implica que a pessoa de classe mais alta pode obter um tratamento melhor ou mais rápido, apenas por sua capacidade de pagamento. Isso, segundo ele, subverte a justiça distributiva e a igualdade de dignidade humana.
A privatização de funções públicas: Quando funções públicas como a segurança ou até mesmo a justiça são privatizadas, em vez de serem vistas como garantias fundamentais para todos, elas se tornam produtos aos quais se tem acesso conforme o poder aquisitivo. Isso compromete os valores de igualdade e não discriminação.
4.6. Proposta de Sandel
Embora Sandel não proponha a total abolição do mercado, ele sugere que certas áreas da vida não podem ser tratadas da mesma forma que bens ou serviços comerciais. Para ele, é preciso limitar a extensão do mercado em alguns domínios essenciais e garantir que os valores cívicos e morais prevaleçam em esferas da vida onde o bem-estar social deve ser mais importante que o lucro individual. Ele sugere um equilíbrio entre a eficiência econômica e a justiça social, onde as decisões não sejam apenas baseadas em interesses mercantis, mas também na promoção do bem-estar coletivo.
Em suma, a crítica de Sandel à lógica de mercado é um alerta para o perigo de tratar todos os aspectos da vida humana como bens de consumo. Ele enfatiza que a justiça social, a solidariedade e a responsabilidade cívica não podem ser sacrificadas em nome de uma eficiência econômica impessoal. A proposta de Sandel é que, para alcançar uma sociedade justa e equitativa, é essencial que o mercado seja restrito e que as instituições públicas e as relações humanas se baseiem em princípios de justiça moral e compromisso coletivo.
4.7. Aplicação no Século XXI
A abordagem de Sandel é importante para o debate sobre a justiça distributiva e as responsabilidades comunitárias no contexto de desigualdade social. Ele sugere que não basta apenas garantir os direitos individuais, mas também considerar as conexões sociais e a solidariedade. Em uma sociedade onde os direitos humanos são cada vez mais fundamentais, sua crítica ao individualismo pode oferecer uma perspectiva importante sobre como as sociedades podem lidar com questões como a redistribuição de recursos, a justiça social e a identidade comunitária.
4.7. Round 6. Desigualdade Social e o “Máquina Antropológica”
Na série “Round 6" os participantes em situação de extrema pobreza são levados a competir em jogos mortais, onde o prêmio é uma grande soma de dinheiro. Há uma falsa liberdade para quem quer participar das competições de “Round 6". Esses jogos representam uma visão distorcida de um mercado de vidas humanas, onde a competição extrema e a necessidade de sobrevivência forçam os indivíduos a tomar decisões éticas cada vez mais difíceis, muitas vezes sacrificando sua própria moralidade ou a de outros.
Segundo a perspectiva de Sandel, esse tipo de dinâmica reforça a mercantilização das relações humanas, algo que ele critica veementemente em suas obras. A série mostra como uma sociedade desprovida de mecanismos de proteção social e onde as desigualdades econômicas são extremamente acentuadas, pode levar à perda de dignidade e à desumanização. Sandel argumentaria que, ao tratar as vidas humanas como mercadorias ou pessoas como objetos descartáveis em um jogo de azar social, a sociedade está comprometendo os valores fundamentais da justiça e da solidariedade.
4.8. Solidariedade e Moralidade Cívica “em jogo”
Um dos temas centrais da filosofia de Michael Sandel é que a moralidade cívica e a solidariedade social são pilares fundamentais para uma sociedade justa, onde o bem comum prevalece sobre interesses individuais. Em “Round 6” (ou Squid Game), vemos claramente como a estrutura do jogo e a pressão constante por sobrevivência desafiam esses princípios. À medida que as situações se intensificam e as apostas se tornam mais altas, muitos participantes começam a sacrificar seus valores morais, como o instinto de afiliação e solidariedade social, em prol da autopreservação. A necessidade de sobreviver em um ambiente de extrema competição leva os jogadores a ativar outros instintos primitivos, como o instinto de defesa e o instinto de sobrevivência. Atraídos pelo desejo de vencer (Eros), alguns competidores recorrem à traição, à violência e à manipulação de outros jogadores (Thanatos) — Eros é o instinto de vida, associado ao desejo, à criação, à preservação e à busca pela união. Thanatos é o instinto de morte, relacionado à destruição, ao impulso agressivo e à busca inconsciente pelo fim ou pela autodestruição — evidenciando a subordinação de valores éticos a uma luta desesperada pela vida.
Do ponto de vista psicanalítico, a transição dos participantes de um comportamento ético para um comportamento de autopreservação e violência pode ser compreendida através dos mecanismos de defesa do ego. A psicanálise, especialmente a teoria de Freud, explicaria essa dinâmica como uma resposta ao conflito interno entre as necessidades pulsionais (como o desejo de sobrevivência) e os valores sociais internalizados (como a moralidade). Quando os participantes são confrontados com o perigo real e imediato, as defesas do ego entram em ação, incluindo racionalização, negação e projeção. Essas defesas permitem que os jogadores justifiquem suas ações imorais, como a violência e a traição, como um meio necessário para alcançar um fim considerado mais urgente, ou seja, sobreviver. A racionalização de seus comportamentos é uma forma de aliviar a culpa associada à transgressão das normas sociais, enquanto a negação pode ajudar a minimizar a percepção de que estão realmente infringindo os princípios éticos ao manipular ou prejudicar outros participantes.
Além disso, a violência e a traição podem ser vistas como respostas a um ambiente de despersonalização e desumanização, onde os participantes se veem não mais como indivíduos, mas como peões em um jogo impessoal. Essa despersonalização ativa o instinto de luta ou fuga, substituindo a solidariedade por uma necessidade de dominação para assegurar a continuidade da vida. Em suma, a crítica de Sandel à lógica do mercado e à subordinação dos valores morais ao interesse individual se reflete claramente na maneira como os jogadores de Round 6 se distanciam da ética cívica em favor de suas próprias necessidades imediatas de sobrevivência, ativando uma gama de instintos que, em um contexto mais justo e moral, estariam reprimidos pela solidariedade e pela moralidade cívica.
Sandel, com seu enfoque comunitarista, questionaria a falta de solidariedade e compromisso coletivo nos jogos. Ele veria isso como um reflexo de como a competição desenfreada e a busca por interesses individuais podem corromper a moralidade cívica e enfraquecer os laços sociais. A série demonstra como a falta de vínculos comunitários, no contexto da desigualdade, empurra os indivíduos para uma luta solitária pela sobrevivência, onde as relações humanas são subordinadas ao egoísmo.
4.8. A Moralidade da Decisão: Autonomia ou Dever Social?
Sandel também discutiria o papel da autonomia moral dos personagens, especialmente quando se encontram diante de escolhas éticas extremas. No jogo, os participantes têm a opção de sair após a primeira rodada, mas muitos optam por continuar, mesmo diante do risco de morte. Esse dilema pode ser interpretado sob a ótica de Sandel, que, em suas discussões sobre ética, frequentemente questiona se a autonomia individual deve ser a prioridade em situações de grande desigualdade e sofrimento. A liberdade de escolha, em um contexto onde as opções são limitadas e onde as condições de vida são tão desesperadoras, pode ser vista por Sandel como uma ilusão, já que os participantes são pressionados por circunstâncias externas.
Sandel defendia que a moralidade cívica e o bem comum devem ser prioridades em uma sociedade, e que as escolhas devem ser feitas em um contexto de justiça distributiva e solidariedade. Nesse sentido, ele veria as decisões dos participantes de “Round 6" como resultados da falta de opções num sistema que privilegia a competição e o lucro individual. Ele argumentaria que, em uma sociedade justa, as pessoas não deveriam ser forçadas a escolhas extremas para garantir sua sobrevivência, como se vê na série.
4.9. A Ética do Jogo: Responsabilidade Coletiva e Justiça
Outro ponto crucial da série é a falta de responsabilidade coletiva dos organizadores do jogo. Eles operam em um sistema onde vidas humanas são usadas como moeda de troca para entreter os poderosos e enriquecer com o sofrimento dos outros. Sandel, que critica a neutralidade do mercado e o individualismo nas abordagens liberais de justiça, usaria “Round 6" como exemplo de como a indiferença moral e a mercantilização de relações sociais podem criar uma sociedade profundamente injusta.
Ele provavelmente apontaria que, em uma sociedade justa, as instituições e os poderosos têm uma responsabilidade moral em relação aos mais vulneráveis. “Round 6" expõe como o sistema capitalista extremo pode gerar uma hierarquia moral onde as vidas humanas têm menos valor do que o lucro. A série ilustra, portanto, uma desumanização social resultante da ausência de responsabilidade coletiva.
4.10. Utilitarismo, Liberdade e Justiça
Por fim, Sandel analisaria provavelmente o utilitarismo e outras teorias sobre justiça ao avaliar o comportamento dos organizadores do jogo. "Round 6" poderia ser lido como uma representação distorcida do utilitarismo, onde as vidas dos participantes são sacrificadas em nome de um bem maior para os organizadores (e para o público), que ganham grandes lucros e entretenimento. Sandel, que critica fortemente uma abordagem utilitarista da vida humana, argumentaria que, embora o utilitarismo busque maximizar o bem-estar coletivo, ele não pode justificar a sacrifício dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
Michel Sandel provavelmente veria “Round 6" como uma metáfora da forma como uma sociedade de mercado extrema pode levar à desumanização, à falta de solidariedade e à perda de princípios morais fundamentais. A série seria, em sua visão, uma reflexão sombria sobre as consequências de um sistema onde a competição desenfreada e a desigualdade minam a capacidade de formar relações humanas verdadeiramente justas e solidárias. Sandel defenderia que, para uma sociedade ser verdadeiramente justa, é preciso reconstruir os valores cívicos e morais, garantindo que a dignidade humana e o bem comum estejam acima da mercantilização da vida e do interesse próprio.
5. Noam Chomsky
Noam Chomsky (1928-) é um linguista, filósofo e ativista político, famoso por suas críticas ao imperialismo, ao capitalismo global e às estruturas de poder que perpetuam a desigualdade. Ele é um crítico feroz das grandes corporações, da mídia corporativa e da intervenção do Estado em nome de interesses econômicos. Em sua análise política, Chomsky afirma que a democracia foi corrompida pelos interesses econômicos das elites e que a sociedade precisa ser mais justa e igualitária, com ênfase em políticas que combatam as desigualdades de classe e promovam os direitos humanos.
5.1 Aplicação no Século XXI
Chomsky é uma referência importante para a crítica ao neoliberalismo e à globalização, oferecendo uma visão profundamente crítica das instituições políticas e econômicas que perpetuam a opressão e a injustiça social. Ele defende que, para garantir os direitos humanos, as democracias devem ser reforçadas, e o poder das corporações deve ser restringido em favor de um sistema que coloque as necessidades humanas acima do lucro. Em um mundo globalizado, sua análise crítica do imperialismo econômico oferece uma base sólida para compreender como o poder global afeta as políticas de direitos humanos e a justiça social ao nível mundial.
Esses filósofos contemporâneos, com suas visões sobre justiça, liberdade e direitos humanos, fornecem uma rica base para a compreensão dos desafios atuais. Se por um lado Kant e Rawls defendem princípios de igualdade, liberdade e justiça distributiva, por outro lado, Foucault e Chomsky oferecem uma crítica ao poder e às estruturas sociais que perpetuam a opressão e a desigualdade. Sandel complementa essa visão ao ressaltar a importância das tradições e dos valores comunitários na formação de uma sociedade justa. Juntas, essas abordagens filosóficas fornecem um conjunto robusto de ferramentas para pensar criticamente sobre como construir uma sociedade mais justa, igualitária e respeitosa aos direitos humanos no século XXI.