O DIREITO NO BRASIL
A formação do Constitucionalismo, do Neoconstitucionalismo, do Positivismo Jurídico e do Pós-positivismo Jurídico configura uma trajetória de evolução do direito constitucional, especialmente no Brasil, que reflete mudanças profundas nas concepções de poder, direitos e justiça ao longo do tempo. Vamos analisar cada um desses conceitos e sua relação entre si.
Constitucionalismo
O Constitucionalismo é o movimento que defende a limitação do poder do Estado por meio de uma constituição escrita, que estabelece as bases de organização do Estado e protege os direitos fundamentais dos cidadãos. Historicamente, o Constitucionalismo surge como uma reação ao absolutismo monárquico e à centralização do poder nas mãos de um único governante. O ideal central do Constitucionalismo é garantir que o poder estatal seja exercido dentro dos limites estabelecidos pela constituição, protegendo assim a liberdade e os direitos individuais.
No Brasil, o Constitucionalismo começou com a Constituição de 1824, que ainda refletia o modelo monárquico e centralizado do Estado. Porém, foi com a Constituição de 1988, após o fim da ditadura militar, que o Constitucionalismo brasileiro adquiriu um caráter mais democrático e participativo, sendo uma Constituição cidadã, com forte ênfase nos direitos humanos, na dignidade da pessoa humana e na igualdade.
Positivismo Jurídico
O Positivismo Jurídico é uma corrente filosófica do direito que defende que o direito é um conjunto de normas criadas por um legislador competente, independentes de princípios morais ou naturais. O positivismo jurídico sustenta que a validade do direito se baseia unicamente na autoridade que o cria e não nas suas consequências ou moralidade. O direito é, assim, algo objetivo e formal, sendo interpretado e aplicado de acordo com as normas estabelecidas, sem espaço para considerações éticas ou morais.
No Brasil, o positivismo jurídico teve grande influência nas primeiras constituições e na aplicação das normas até meados do século XX. Sob a influência do positivismo, as constituições brasileiras e os tribunais procuraram uma aplicação rígida e formal das leis, sem considerar os contextos sociais ou a justiça substancial. A ideia de que as normas jurídicas devem ser seguidas literalmente era predominante, e o papel do juiz se limitava à aplicação da norma vigente, sem a necessidade de ponderação ou reflexão sobre valores sociais.
Neoconstitucionalismo
O Neoconstitucionalismo é um movimento teórico que surgiu como uma crítica ao positivismo jurídico, especialmente em relação à sua rigidez e à separação entre direito e moral. O Neoconstitucionalismo defende que a Constituição deve ser interpretada de maneira dinâmica e aberta, levando em consideração princípios e valores fundamentais, como a dignidade humana, a igualdade e a justiça social.
No Brasil, o Neoconstitucionalismo se consolidou com a Constituição de 1988, que incorporou um conjunto de princípios e direitos fundamentais de maneira explícita, com a ideia de que a Constituição não é apenas um conjunto de normas rígidas, mas um documento vivo, que deve ser interpretado à luz dos desafios sociais e dos direitos dos cidadãos. Nesse contexto, a interpretação das normas passa a ser mais flexível e valorativa, permitindo que os juízes e tribunais possam ponderar princípios e direitos fundamentais ao decidir casos concretos.
Um exemplo claro de Neoconstitucionalismo no Brasil é a forma como o Supremo Tribunal Federal (STF) tem interpretado a Constituição de 1988, ampliando direitos e assegurando a proteção de direitos fundamentais através de decisões que refletem uma visão mais substantiva e humanista do direito, como, por exemplo, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Pós-positivismo Jurídico
O Pós-positivismo Jurídico surge como uma evolução do Neoconstitucionalismo, com uma crítica mais profunda ao positivismo jurídico e até mesmo a certas limitações do próprio Neoconstitucionalismo. O Pós-positivismo defende que a aplicação do direito deve ser orientada pela valorização dos direitos fundamentais e pela garantia da dignidade da pessoa humana, mas não deve se limitar apenas à interpretação literal da Constituição.
O Pós-positivismo incorpora a ideia de ponderação, em que os juízes devem equilibrar princípios e direitos que podem estar em conflito, em vez de simplesmente aplicar normas de maneira mecânica. A normatividade das normas constitucionais e infraconstitucionais é relativizada pelo valor concreto da proteção dos direitos humanos, e o juiz atua como um intérprete ativo, que busca promover uma justiça material.
Esse movimento reflete uma flexibilização da rigidez do direito positivo, permitindo uma interpretação mais aberta e criativa, alinhada às necessidades sociais e aos valores da sociedade contemporânea. No contexto brasileiro, o pós-positivismo tem se manifestado claramente em decisões do STF que buscam promover justiça social, como nas decisões sobre política de cotas ou a proteção dos direitos das minorias.
Relação entre Constitucionalismo, Positivismo e Pós-positivismo no Brasil
No Brasil, a Constituição de 1988 é o marco da transição do Positivismo Jurídico para o Neoconstitucionalismo e o Pós-positivismo Jurídico. A partir dessa Constituição, o direito deixou de ser apenas um conjunto de normas rígidas e passou a ser visto como um instrumento de promoção de justiça social, com ênfase na proteção dos direitos fundamentais.
Positivismo Jurídico: Antes da Constituição de 1988, o direito brasileiro era muito influenciado pela visão positivista, onde as normas eram aplicadas de maneira formal e objetiva, sem grande consideração pelos efeitos sociais.
Neoconstitucionalismo: A Constituição de 1988 introduziu uma nova abordagem, com a valorização dos direitos humanos e dos princípios constitucionais, exigindo uma interpretação mais dinâmica e humanista das normas.
Pós-positivismo Jurídico: Com o pós-positivismo, as decisões judiciais, especialmente no STF, passaram a ser mais flexíveis e voltadas para a garantia de direitos substanciais. O juiz não se limita a aplicar a norma, mas também deve considerar os princípios constitucionais, fazendo uma ponderação de valores.
A evolução do Constitucionalismo no Brasil e a transição do Positivismo Jurídico para o Neoconstitucionalismo e o Pós-positivismo Jurídico representam um movimento que busca tornar o direito mais sensível às demandas sociais e à proteção dos direitos fundamentais. A Constituição de 1988 marca a ascensão de uma visão mais flexível e dinâmica do direito, que considera os princípios constitucionais, o valor da dignidade humana e a justiça social, garantindo a supremacia da Constituição e uma interpretação mais aberta e crítica das normas jurídicas.
O “NOMOS DA TERRA”
"O Nomos da Terra” é uma obra fundamental para entender a relação entre espaço, poder e direito internacional. Schmitt nos convida a refletir sobre como a organização do espaço terrestre define não apenas as fronteiras físicas, mas também a natureza da política e da soberania. Sua análise histórica e crítica do direito internacional oferece uma perspectiva única sobre as transformações geopolíticas do século XX e os desafios de uma nova ordem mundial. Apesar das controvérsias que cercam sua figura, as ideias de Schmitt continuam a influenciar debates sobre a natureza do poder, a soberania e o futuro da ordem internacional. Sua visão realista e crítica do liberalismo e do universalismo permanece relevante em um mundo cada vez mais complexo e multipolar.
Carl Schmitt, um dos mais influentes e controversos teóricos políticos e jurídicos do século XX, apresenta em sua obra "O Nomos da Terra” uma análise profunda sobre a relação entre a ordem espacial, o direito internacional e a política. Publicado em 1950, o livro é uma reflexão crítica sobre como a organização do espaço terrestre moldou a ordem política e jurídica ao longo da história, especialmente no contexto europeu. Schmitt, conhecido por suas críticas ao liberalismo e sua defesa de um Estado forte, propõe uma visão que coloca a territorialidade e a soberania no centro da compreensão das relações internacionais.
A palavra grega “nomos” é traduzida como “lei” ou “norma”, mas Schmitt a utiliza de maneira mais ampla, referindo-se à ordem espacial que fundamenta toda a organização social e política. Para ele, o “nomos” não se limita ao aspecto jurídico; é a base concreta da apropriação, divisão e exploração da terra. Essa ordem espacial define não apenas as fronteiras físicas, mas também as relações de poder e a própria natureza da política.
O “Jus Publicum Europaeum” e a Ordem Clássica. Schmitt concentra-se no “Jus Publicum Europaeum”, a ordem jurídica europeia que surgiu após as grandes navegações e a colonização das Américas. Essa ordem, que vigorou entre os séculos XVI e XIX, era baseada na divisão do mundo entre a Europa e o “Novo Mundo”. Na Europa, as guerras eram reguladas e consideradas duelos entre Estados soberanos, com regras claras e o reconhecimento mútuo de “justus hostis” (inimigo justo). Fora da Europa, no entanto, o “espaço livre” permitia a apropriação de terras e a colonização, sem as mesmas regras de guerra. Essa ordem clássica, segundo Schmitt, era profundamente territorial. A soberania era entendida como controle sobre um território específico, e o direito internacional refletia essa lógica espacial. O “nomos” da terra, portanto, era a base concreta sobre a qual se erguia a ordem política e jurídica.
O Declínio do Nomos Clássico. Com o advento do século XX, Schmitt observa uma crise no “nomos” clássico. O declínio do Estado-nação, a ascensão dos Estados Unidos como potência global e as mudanças tecnológicas alteraram profundamente a natureza da guerra e da política. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial marcaram a transição para uma era de “guerra total”, onde a distinção entre combatentes e não combatentes se dissolveu, e as regras anteriores de guerra foram abandonadas. Schmitt critica o liberalismo e o universalismo, que, em sua visão, minaram a ordem territorial clássica. Ele vê o surgimento de intervenções humanitárias e a ideia de uma ordem internacional baseada em princípios universais como formas de imperialismo moral que desrespeitam a soberania dos Estados. Para Schmitt, essas mudanças representam uma "desespacialização" do direito internacional, onde a territorialidade perde sua centralidade.
O “Novo Nomos da Terra”. Schmitt especula sobre como seria o novo “nomos” em um mundo transformado pela tecnologia e pela globalização. Ele prevê uma ordem multipolar, onde diferentes centros de poder competem pela hegemonia. Além disso, ele antecipa a importância do espaço aéreo, do cosmos e, potencialmente, do ciberespaço na definição de uma nova ordem jurídica internacional. Essa nova ordem, no entanto, é vista por Schmitt com pessimismo. Ele acredita que a perda da territorialidade como fundamento do direito internacional leva a uma era de incerteza e instabilidade, onde as regras claras do “Jus Publicum Europaeum” são substituídas por um sistema mais fluido e menos previsível.
A obra de Schmitt é profundamente influente, mas também controversa. Sua associação com o regime nazista e sua defesa de um Estado forte levantam questões sobre o viés ideológico de suas teorias. No entanto, suas ideias sobre a territorialidade, a soberania e a ordem espacial continuam a ser debatidas e estudadas no campo da teoria política, do direito internacional e da geopolítica. Schmitt critica o universalismo liberal, argumentando que o direito internacional é sempre moldado por interesses geopolíticos concretos, e não por princípios abstratos. Ele enfatiza a importância do conflito e da decisão política na formação da ordem internacional, rejeitando a ideia de uma "paz perpétua" proposta por pensadores como Immanuel Kant.
Século XXI. A “Nova Ordem Mundial”
A ascensão da “extrema-direita”, em vários países (Estados), e as transformações geopolíticas recentes podem ser analisadas à luz das ideias de Carl Schmitt, especialmente a partir do conceito de “Nomos da Terra”. Schmitt oferece uma estrutura teórica útil para entender como mudanças políticas, econômicas e culturais podem levar ao surgimento de uma “Nova Ordem Mundial”, marcada por realinhamentos de poder, redefinições de soberania e novas disputas territoriais (físicas ou simbólicas).
A crise da “Ordem Liberal” (neoliberalismo) e o surgimento de “Novas Forças”. Schmitt argumenta que toda ordem internacional está sujeita a crises e transformações. A ordem liberal pós Segunda Guerra Mundial, baseada em instituições multilaterais (como a ONU), globalização econômica e direitos humanos universais, está enfrentando desafios significativos. A ascensão da extrema-direita em vários países pode ser vista como uma reação, pelo “backlash” a essa crise, com movimentos que rejeitam o universalismo liberal e defendem a soberania nacional, a identidade cultural e a proteção de fronteiras.
Como dito, Schmitt era crítico do universalismo liberal, que ele via como uma imposição de valores abstratos que ignoram as particularidades culturais, históricas e territoriais. A extrema-direita, em muitos casos, ecoa essa crítica, rejeitando a globalização e defendendo um retorno a identidades nacionais e soberania estatal. Para Schmitt, a soberania está ligada à capacidade de tomar decisões em momentos de crise. A extrema-direita frequentemente se apresenta como uma força decisiva, capaz de restaurar a ordem em meio ao caos percebido (seja econômico, valores de patriarcado, de heteronormatividade, misógino, xenófobo, migratório ou cultural).
Um dos pilares do “Nomos da Terra” é a ideia de que a ordem política e jurídica é baseada na “territorialidade”. A extrema-direita, em muitos casos, enfatiza a importância das fronteiras nacionais, do controle migratório e da proteção do território contra influências externas. Schmitt via a divisão e a apropriação do espaço como fundamentais para a ordem política. A extrema-direita frequentemente defende políticas de controle de fronteiras e restrições à imigração (fronteiras e identidade nacional), refletindo uma reafirmação da territorialidade como base da soberania e da identidade nacional. A ascensão da extrema-direita pode ser vista como parte de um movimento mais amplo de “desglobalização”, onde a prioridade é dada aos interesses nacionais em detrimento da cooperação internacional. Isso se alinha com a visão de Schmitt de que a ordem internacional é sempre moldada por interesses concretos e disputas de poder.
A Multipolaridade e a Fragmentação da Ordem Global
Schmitt previu que o mundo poderia se mover em direção a uma ordem multipolar, onde diferentes centros de poder competem pela hegemonia, a fragmentação da “Ordem Global” aos direitos humanos (direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais). A ascensão da extrema-direita, em vários países (Estados), pode ser interpretada como parte desse processo, com o enfraquecimento da hegemonia liberal liderada pelos Estados Unidos e o surgimento de novos polos de poder.
A extrema-direita defende, frequentemente, o nacionalismo em oposição ao globalismo, o que pode levar a uma fragmentação da ordem internacional atual, os direitos humanos (direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais). Isso se alinha com a ideia de Schmitt de que a ordem mundial é sempre contestada e redefinida por atores que buscam impor sua visão de “nomos” — nessa questão, o “backlash”. Com o conflito há o realinhamento. A ascensão da extrema-direita pode levar a novos conflitos e realinhamentos, tanto nos países (entre grupos políticos e sociais) quanto entre nações (em disputas por recursos, influência e poder). A extrema-direita frequentemente rejeita valores universais, como direitos humanos e multiculturalismo, em favor de uma visão mais particularista, baseada em identidades nacionais, religiosas ou culturais. Isso se conecta à crítica de Schmitt ao universalismo liberal e sua ênfase na importância das particularidades históricas e territoriais. A busca e o resgate pela “Identidade e Cultura” — a preservação de identidades culturais e tradições nacionais, rejeitando a homogeneização trazida pela globalização.
Schmitt via o cosmopolitismo como uma ameaça à soberania e à ordem baseada na territorialidade. A extrema-direita critica as elites cosmopolitas e defende um retorno a valores locais e nacionais (nacionalismo, a identidade do povo em determinado território). A ascensão da extrema-direita pode ser vista como uma resposta a conflitos sociais, econômicos e culturais, com líderes, populistas, que se apresentam como capazes de tomar decisões duras para restaurar a ordem. Assim, a extrema-direita se declara como uma força decisiva em meio a crises percebidas, como a imigração em massa, a desigualdade econômica ou a perda de identidade cultural.
A distinção entre “inimigo” e “amigo” é central no pensamento de Schmitt — inimigos, comunistas; amigos, não comunistas. A extrema-direita constrói narrativas que identificam “inimigos” (como imigrantes, elites globais ou minorias) como uma forma de consolidar seu poder e mobilizar seus apoiadores. O conceito de “Nomos da Terra” de Carl Schmitt se encaixa bem para analisar a ascensão da extrema-direita e as transformações geopolíticas atuais. A rejeição ao universalismo liberal, a reafirmação da soberania e da territorialidade, a fragmentação da ordem global e a ênfase no conflito e na decisão são elementos que Schmitt previu e que estão se manifestando no cenário político atual. No entanto, é importante lembrar que Schmitt era uma figura controversa, e suas ideias foram usadas para justificar regimes autoritários, como o nazismo. Ao aplicar seu pensamento ao contexto atual, é crucial manter uma visão crítica e refletir sobre os riscos de uma ordem internacional baseada em exclusão, conflito e autoritarismo. A ascensão da extrema-direita pode ser vista como parte de um novo “nomos” — na realidade é “restauração” de “nomos antidireitos humanos” — em formação, mas cabe a questionarmos que tipo de ordem está sendo construída e quais são suas implicações para a justiça, a democracia e os direitos humanos.