Da (i)legalidade da cláusula de raio no Direito Brasileiro.
Conforme visto anteriormente, o propósito da cláusula de raio é impossibilitar o desvio de consumidores do negócio shopping center, de maneira que ele se favoreça do tráfego de pessoas atraídas pelos lojistas. É sob esta justificativa que habitualmente a cláusula de raio é estendida aos sócios/ parceiros do lojista, a fim de que se garanta sua efetividade22. Ocorre que a combinação de todas estas circunstâncias faz com que a cláusula de raio tenha diferentes repercussões no âmbito jurídico, seja ele civil-empresarial ou concorrencial.
Direito civil-empresarial
No que toca à legalidade da cláusula de raio no aspecto civil-empresarial, vale destacar que nesta seara devem ser analisados o princípio da boa-fé objetiva, da liberdade contratual, da função social do contrato e da equivalência material, bem como aspectos relacionados à sua licitude, e provável caráter abusivo, ou sua ilicitude.
O uso do princípio da boa-fé objetiva, esculpido no art. 422. do Código Civil Brasileiro, auxiliará na interpretação da referida cláusula na medida em que balizará se as condutas perpetradas pelas partes foram pautadas na moralidade, “nos padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”23.
Outro ponto importante a ser considerado no estudo da licitude ou ilicitude das disposições da cláusula de raio diz respeito ao princípio da liberdade contratual, previsto no art. 421. do CC. Vale destacar que, embora a liberdade de contratar seja plena, pois não há no ordenamento jurídico vedações ao ato de se relacionar com o outro, a liberdade contratual encontra limitações no que diz respeito objeto do contrato.
É neste sentido que o conteúdo do contrato estará limitado à sua função social. O princípio da função social do contrato estabelece que os interesses pessoais das partes devem ser exercidos conforme os interesses da sociedade, pois somente assim o contrato será compatível com os preceitos da ordem econômica e social, previstos no art. 170. da Constituição Federal.
Ademais, este dispositivo preconiza que qualquer atividade econômica, da qual os contratos são instrumento, está submetida à primazia da justiça social24. Logo, as disposições contratuais devem ser interpretadas no sentido que melhor favoreça o interesse social, situação que também inclui a proteção da parte mais vulnerável do contrato, mesmo que não se trate de um contrato de adesão.
Em relação ao princípio da equivalência material, vale salientar que ele também servirá de guia para a análise da cláusula de raio, pois sua função é averiguar a preservação do equilíbrio entre direitos e deveres das partes no contrato. Assim, o fator relevante é constatar se antes, durante, ou após a execução do contrato houve/há vantagem excessiva para uma das partes ou desvantagem exagerada para a outra, cotejada objetivamente, nos termos das regras de razoabilidade25.
Ocorre que, embora cada um destes quesitos tenha sua importância individual no estudo da cláusula de raio no que toca às consequências cíveis-empresariais, é sabido que todos eles servem de argumento para a legalidade/ ilegalidade ou, caso seja legal, do caráter abusivo da referida disposição contratual.
Ainda no âmbito do direito civil-empresarial, a doutrina diverge quanto à legalidade ou ilegalidade da cláusula de raio nos contratos de locação de shopping center. A doutrina minoritária, a exemplo de Gladston Mamede26, defende a ilicitude da cláusula de raio sob duas justificativas. A primeira delas está calcada no fato desta disposição ir de encontro aos preceitos da Constituição Federal dispostos no parágrafo único do art. 170.
Tal situação se deve ao fato de que a cláusula de raio restringe a livre iniciativa do locatário, ou seja, restringe o seu direito de exercer livremente atividade econômica semelhante à desempenhada no shopping center em determinada área. Assim, o espaço de atuação do locatário fica restringido no mercado e consequentemente a função primordial da iniciativa privada na produção ou circulação de bens e serviços também se restringirá, fato que finda por interferir na ordem econômica27.
O segundo argumento utilizado para justificar a ilicitude da cláusula de raio é que, por ela ser comumente estendida aos demais sócios do locatário, viola o princípio basilar de distinção entre a pessoa jurídica assinante do contrato de locação e pessoa de seus sócios, fato que também acaba violando o direito dos demais sócios à livre iniciativa28.
Por outro lado, a doutrina majoritária defende a licitude da cláusula de raio, conforme bem assinala Alexandre Ferreira de Assumpção Neves29, ao citar em sua obra Pedro Paulo Salles Cristofaro e Ladislau Karpat. Esta corrente doutrinária defende a licitude da cláusula de raio, pois ela tem o propósito de preservar o tenant mix cuidadosamente elaborado do empreendimento, de modo a se evitar o desvio de clientes.
Outra justificativa para o uso da cláusula é a proteção que ela dá antecipadamente ao shopping center, beneficiando os lojistas que integram o corpo do negócio ao assegurar que o estudo de viabilidade econômica do empreendimento (fator que atraiu os lojistas) não será alterado. Ademais, há quem classifique a cláusula de raio nos contratos de locação em shopping center como uma disposição inerente a este tipo de contrato.
Porém, ainda que haja divergências doutrinárias sobre a licitude ou não da cláusula de raio no âmbito do direito civil-empresarial, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, já pacificou o tema por intermédio do Informativo de Jurisprudência 585 em 2016.
De acordo com o STJ, os contratos que envolvem shopping center estão repletos de cláusulas extravagantes (res sperata, aluguel percentual, 13° aluguel, fiscalização contábil do locador sobre o locatário, impossibilidade de cessão/ sublocação do espaço locado, etc.), dentre as quais se insere a cláusula de raio, sendo que todas essas determinações objetivam o sucesso e a viabilização administrativa e econômica do empreendimento.
Assim, dadas as inúmeras particularidades levadas em consideração para garantir o sucesso do centro comercial, é inquestionável que a cláusula de raio seja especialmente apropriada neste tipo de negócio, até mesmo porque serve para preservar os interesses comuns de locador e locatários. Ademais, é direito do locador, no exercício de seu direito à propriedade, estabelecer limites e regras para a permissão de seu uso por terceiros.
Além do mais, o julgado do STJ faz questão de evidenciar que não se pode afirmar de modo genérico e categórico a ilegalidade da cláusula de raio, ainda mais porque sua previsão em contrato visa garantir a própria implementação e viabilidade do negócio. Por outro lado, também se destaca que essa previsão contratual não viola princípios da ordem econômica, já que seu objetivo é servir à logística do centro comercial30. Por fim, firmou-se a seguinte tese:
DIREITO EMPRESARIAL. LEGALIDADE DE CLÁUSULA DE RAIO EM CONTRATO DE LOCAÇÃO DE ESPAÇO EM SHOPPING CENTER. Em tese, não é abusiva a previsão, em normas gerais de empreendimento de shopping center ("estatuto"), da denominada "cláusula de raio", segundo a qual o locatário de um espaço comercial se obriga - perante o locador - a não exercer atividade similar à praticada no imóvel objeto da locação em outro estabelecimento situado a um determinado raio de distância contado a partir de certo ponto do terreno do shopping center.31
Ademais, não é porque os contratos são celebrados entre pessoas que exercem atividade econômica que não se discutirá eventual existência de cláusulas abusivas no negócio. Assim, é possível se deparar com contratos de adesão nestas situações que, embora não se relacionem com consumo, o locatário não tem poder de negociar cláusulas substanciais do contrato.
Serão considerados contratos de adesão, no contexto das locações em shopping center, todos aqueles em que não for dado ao locatário a possibilidade de alterar cláusulas operacionais do shopping (como por exemplo: horário de funcionamento, segurança, custeio de serviços coletivos, etc.), assim, mesmo que o locatário tenha certa margem de negociação sobre a cláusula de raio, isto não transformará o contrato, por si só, em um contrato negociado32.
A prática tem demostrado que, em regra, não é dado aos locatários de shopping center o poder de se imiscuir em questões relacionadas ao seu funcionamento/administração (cláusula operacionais), fato que transforma estes contratos, em sua maioria, em contratos de adesão. Tal situação possibilita a inserção de disposições contratuais que, embora sejam lícitas, tenham conteúdo abusivo33.
A cláusula de raio inserida em contrato de adesão será considerada abusiva, no contexto civil-empresarial, sempre que estabelecer prestações iníquas entre as partes. Esta situação poderá estar caracterizada sempre que a cláusula de raio for conjugada com a cláusula de aluguel percentual34, explicar-se-á melhor.
O aluguel percentual, dentre outras coisas, é estabelecido como forma do locatário remunerar as atividades realizadas pelo locador/empreendedor, das quais será beneficiário, como por exemplo, atrair clientela em razão das comodidades que o shopping dispõe ao consumidor.
A cláusula de raio, por sua vez, é estabelecida com o fim de manter o tenant mix do shopping atrativo, mas o faz à medida que impossibilita que os locatários estabeleçam lojas semelhantes nas proximidades do shopping. Em outras palavras, o tenant mix continua atrativo por conta de vedações contratuais e não unicamente pelos esforços contínuos do locador em garantir o interesse dos clientes no empreendimento.
Logo, tendo em vista que a presença/ausência de clientela é um dos riscos do negócio shopping center, a desproporção das obrigações contratuais se estabelecerá a partir do momento em que o locador cobrar aluguel percentual tendo como justificativa principal a manutenção do mix do shopping atrativo, já que dessa forma quer eliminar um risco do denógio vedando que os locatários tenham lojas semelhantes em determinado raio e não por consegui-lo como consequência de sua própria atuação.
Destaca-se que a cláusula de raio, ainda que limitada temporalmente, também não deve ser interpretada como um mecanismo de compensação aos investimentos feitos pelo empreendedor do negócio ou no estudo de sua viabilidade econômica, já que são devidamente compensados com o pagamento da res sperata. Por conseguinte, uma vez constatada a presença de cláusulas abusivas, incumbirá ao prejudicado provocar o Poder Judiciário, requerendo sua interferência na relação contratual, de modo que o equilíbrio entre as partes seja estabelecido35.
Por outro lado, caso o contrato de locação seja um contrato propriamente negociado, não há que se caracterizar a cláusula de raio como abusiva, a não ser que durante a vigência do contrato de locação haja fato superveniente que desequilibre as obrigações das partes, circunstância que pode ocasionar a revisão do contrato ou sua resolução.
Logo, na visão cível-empresarial, a análise abstrata da cláusula de raio deve ser entendida como legal, já que não há qualquer empecilho normativo quanto à sua previsão, fato que privilegia a liberdade contratual das partes.
Porém, caso o estudo da presente disposição contratual seja feito em face de um caso concreto, deve-se levar em consideração a verificação acurada de inúmeros fatores, como: a natureza do contrato de locação firmado (adesão ou paritário); o poder de negociação das partes; a boa-fé objetiva; as circunstâncias fáticas do negócio etc. Somente após a consideração precisa desses elementos será possível concluir pela legalidade ou não da cláusula de raio, ou por sua abusividade ou não, caso seja legal.
Direito concorrencial
Se, de um lado o direito civil-empresarial analisa a legalidade da cláusula de raio levando em consideração as circunstâncias da contratação e o exercício do direito de empresa dos contratantes, o direito concorrencial cuidará da regulamentação do exercício desta atividade, de modo que os sujeitos participantes não possam coibir a atuação e o correto tráfego de bens e serviços de outras empresas.
A livre concorrência é um dos princípios constitucionais da ordem econômica, disciplinado no art. 170, IV, da Carta Magna e “visa a resguardar a disputa entre agentes econômicos no mercado”36. Ademais, a livre concorrência é fato que interessa diretamente ao consumidor, embora não seja o destinatário direto da legislação concorrencial, mas sim seu destinatário final, uma vez que a livre concorrência importa em liberdade de escolha ao consumidor e eficiência econômica 37.
No âmbito do direito concorrencial, a cláusula de raio é vista com ponderação pelas autoridades antitruste. Em regra, são consideradas lícitas, mas desde que cumpram determinados pressupostos38.
É neste contexto que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE ganha destaque, visto que sua função primordial é zelar pela livre concorrência no mercado, além de fomentar e disseminar sua cultura, através de ações preventivas, repressivas ou educacionais/pedagógicas39.
A jurisprudência do CADE, conforme assinala André Luiz Santana Cruz Ramos40, tem defendido a licitude das cláusulas de raio, desde que os seguintes requisitos sejam atendidos: (i) que a cláusula seja uma estratégia auxiliar do empreendimento; (ii) que ela seja um instrumento de viabilidade do negócio; (iii) que se submeta às exigências mínimas estabelecidas pelo CADE, no que toca ao limite temporal e territorial da cláusula.
As exigências mínimas estabelecidas pelo CADE em relação ao limite territorial são: (i) se o raio de exclusividade do shopping center tiver até 2km de distância, a cláusula será considera lícita; (ii) caso a distância estabelecida esteja entre 2km e 5km, as circunstâncias do negócio devem ser analisadas (densidade populacional, busca por evidências de propósito anticoncorrencial, valor do investimento para a construção do negócio, os impactos para a economia da região, o poder de mercado do empreendedor nos limites do raio, etc.); (iii) acima de 5km a cláusula de raio é considerada ilícita41.
Já em relação ao limite temporal de validade da cláusula de raio, o CADE tem firmado entendimento de que são razoáveis até cinco anos de exclusividade territorial, porém, caso seja estipula lapso temporal superior se faz necessário analisar alguns requisitos para que se determine a legalidade ou não da referida cláusula. São eles: (i) eventual ampliação da área útil do shopping; (ii) prazo de retorno para o investimento feito; (iii) análise se o prazo foi estipulado objetivando lesar concorrentes já situados nas proximidades ou futuros concorrentes; (iv) os investimentos realizados pelo empreendedor para tornar a área do shopping economicamente atrativa42.
Caso o CADE constate abuso de poder econômico na fixação da cláusula de raio será aberto inquérito administrativo para apuração dos fatos. Ademais, tendo em vista que esta autarquia faz julgamento puramente técnico, não serão levados em consideração aspectos inter partes que possam caracterizar a abusividade da cláusula.
Por conseguinte, uma vez que determinada cláusula de raio é submetida à análise do CADE, a autarquia decidirá por sua validade após estudo acurado do mercado local, levando em consideração os aspectos já mencionados, assim como a existência ou não de poder econômico do agente. Assim, com base nos critérios técnicos territoriais e temporais, busca-se por violações à ordem econômica ou atitudes potencialmente violadoras.