O poderio das empresas multinacionais em face dos Direitos Humanos.

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

5 O caso emblemático da empresa Texaco no Equador

Um caso bastante elucidativo de toda a matéria tratada neste artigo envolve a empresa de extração de petróleo Texaco no Equador.

A lide em questão foi motivada por uma parceria feita entre a Texaco e a estatal equatoriana PetroEcuador entre 1964 e 1992. O acordo previa que a Texaco exploraria as reservas de petróleo do país e em troca revenderia parte do produto extraído ao governo equatoriano com preço abaixo do valor de mercado. Nos anos 90 a Texaco chegou a mover várias ações na justiça equatoriana arguindo o descumprimento do acordo pelo governo, mas não obteve sequer uma sentença24.

A extração de petróleo realizada pela Texaco devastou o território de cinco povos indígenas e chegou ao Peru em áreas do baixo Rio Napo. Estima-se que a área afetada corresponda a 480.000 hectares de floresta amazônica, entre solo e rios. A atuação da empresa também teria causado uma série de doenças nos habitantes locais, como câncer e problemas dermatológicos e morte de animais, além da formação de inúmeras piscinas de dejetos tóxicos que contaminaram permanentemente o solo e a água25.

A concessão de exploração da Texaco acabou em 1992 e em 1993, mas de 30 mil indígenas propuseram uma ação coletiva contra Texaco nos Estados Unidos. A ação chegou a ser recebida, mas em 2002, em virtude da mudança de questões de competência, a justiça americana extingui a ação sem resolução do mérito26.

Ocorre que em 1995 a Texaco firmou acordo com o governo equatoriano dando quitação de todos os eventuais danos ambientais ocorridos pela exploração de petróleo na bacia do Rio Amazonas. Já no ano de 1998 foi firmado outro acordo entre as partes, cujo objeto era impedir que o Equador propusesse qualquer tipo de ação indenizatória conta a empresa27.

Em 2003 foi iniciado novo processo na justiça equatoriana, agora contra a Chevron, tendo em vista que ambas as empresas se fundiram em 2001. Durante essa ação, vários laudos periciais confirmaram a contaminação da região com substâncias cancerígenas e o desenvolvimento de várias doenças em pessoas locais em virtude do contato com esses compostos químicos.

Durante os trâmites da ação, a empresa Chevron pressionou o governo dos EUA para suspender eventuais acordos comerciais que tivesse com o Equador. Mas somente em 2011 veio a sentença na justiça equatoriana, a qual condenou a empresa americana ao pagamento de uma indenização de RS$ 9,5 bilhões de dólares em razão dos danos ambientais causados pela empresa. A Chevron não cumpriu a decisão e ainda acusou os autores da ação de extorsão28.

Ocorre que durante esta ação, o governo equatoriano decidiu dar suporte a seus autores (grupo de mais de 30 mil pessoas afetadas pelos danos da exploração). Ademais, este fato incitou a Chevron a instaurar procedimento de arbitragem contra o Equador no Tribunal Arbitral de Haia, em 2006, tendo como justificativa as ações movidas contra o governo equatoriano na década de 90, as quais o país nunca se pronunciou.29

Vale destacar que os procedimentos de arbitragem nestes casos são marcados pela renúncia dos Estados de suas prerrogativas nacionais e até mesmo internacionais, além de apenas as multinacionais poderem processar os Estados soberanos, os quais somente se defendem. Ademais, estes procedimentos não são transparentes e a escolha dos árbitros é feita conforme o interesse dos envolvidos, de forma que se questiona a imparcialidade do julgamento.

O procedimento de arbitragem seguiu paralelamente à ação ajuizada na justiça equatoriana. Porém, somente após a condenação da Chevron no Equador em 2011, foi que o tribunal arbitral começou a proferir liminares em favor da Chevron. No total, até o ano de 2013 foram proferidas quatro liminares que determinaram: fossem usadas todas as medidas possíveis para que a sentença proferida na justiça equatoriana não seja executada e que esta decisão deveria ser estendida até mesmo aos poderes legislativo, executivo e judiciário do Equador30.

Neste procedimento arbitral a Chevron buscou inverter os papeis com o Equador, pois acusava o país de lhe causar prejuízos estendidos e lhe cobrava uma indenização. Para isso, invocou acordos de investimento, como o Tratado Bilateral de Investidores firmado entre o Equador e os EUA. Ocorre que este trato foi assinado em 1993 e só passou a vigorar em 1997, sendo que a Texaco se retirou do Equador em 199231.

A corte entendeu que o Equador teria se comprometido a oferecer aos investidores americanos a chance de se manifestarem em litígios em que se vissem envolvidos, ainda que essas contendas ocorressem após o ano de 1997. O Equador se defendeu alegando que nenhuma indenização era devida, pois as relações com a Chevron acabaram em 1995, antes da entrada em vigor do acordo em 199732.

O tribunal de Haia rejeitou esses argumentos e considerou que o Equador deveria indenizar a Chevron em US$ 96 milhões de dólares. O governo equatoriano recorreu, mas seus pleitos foram rejeitados em todas as instâncias33.

Em 2017, a Corte de Apelações do Tribunal Arbitral de Haia, em uma sentença parcial, confirmou sua competência para o julgamento da lide em questão, de forma que as liminares proferidas até então continuaram válidas, dando razão à empresa. Ademais, a corte também reconheceu a validade dos acordos firmados em 1995 e 1998, de forma que a empresa não devia mais indenizações ao país34.

Ocorre que após 2011, quando houve a condenação da Chevron na justiça equatoriana, a empresa “recorreu” levando a discussão do caso para a justiça americana no estado de Nova York. Nesta ocasião, a Chevron acusou o advogado dos moradores das áreas afetadas de corrupção, fraude, falsificação de provas e conspiração governamental, além de defender que não havia prova científica dos danos causados, também suscitou a validade dos acordos firmados em 1995 e 199835.

Este processo seguiu, até que em 2014 a justiça norte-americana proferiu sentença decretando que a decisão equatoriana era fraudulenta. Em 2016, esta decisão foi confirmada pelo Tribunal de Apelações dos Estados Unidos e a questão foi encerrada nos EUA. Enquanto isso, o advogado dos afetados pelos danos ambientais ajuizou ações de execução da sentença equatoriana em outros países como Brasil, Argentina e Canadá36.A justiça brasileira recebeu a ação, mas o Ministério Público Federal pugnou por sua não homologação. O caso foi decidido pelo STJ em novembro de 2017, situação na qual, por unanimidade, foi rejeitada a tentativa de execução da sentença no país37.


5 Pacto Global: da teoria à prática

O Pacto Global é um projeto da ONU que foi oficialmente lançado em 2000, através da iniciativa de Kofi Annan, ex-secretário geral da Organização, cujo objetivo era impulsionar a comunidade empresarial internacional a adotar em seus empreendimentos ações pautadas em valores fundamentais e globalmente aceitos, relacionados aos direitos humanos, ao meio ambiente e às relações de trabalho para tornar o mercado global mais inclusivo e justo.

Atualmente, mais de 12 mil organizações endossam o projeto, entre elas: empresas, organizações não governamentais e sindicatos. Estas organizações empenham-se em conduzir seu crescimento de forma responsável, de maneira que leve em conta aspectos sociais, ambientais e trabalhistas e não somente a busca incessante por lucros38.

Ocorre que o Pacto Global não é um dispositivo regulatório, com força cogente ou vinculativo, é na realidade uma iniciativa voluntária que busca promover diretrizes para o fomento do desenvolvimento sustentável e da cidadania, por meio de líderes corporativos comprometidos e inovadores.

Nesse sentido, a globalização também favoreceu o despertar de uma consciência coletiva global para a valorização da responsabilidade social corporativa. Esse pensamento incentivou grandes corporações a incluírem voluntariamente em seus regimentos internos ações em benefício de seu mercado consumidor. É por isso que a nova empresa globalizada adota uma discurso ético fundamentado na confiança, no respeito pelos direitos humanos, no cumprimento de suas obrigações e na preservação do meio ambiente39.

A responsabilidade social corporativa, do modo que é apresentada aos consumidores, quer estabelecer um novo equilíbrio entre mercado e democracia, porém, muitas vezes, as corporações continuam resguardando a lógica do mundo capitalista de forma mascarada, já que o cumprimento dessas diretrizes é condicionado à autorregulação e voluntariedade das próprias empresas.

A realidade tem demostrado que este discurso, não raramente, é falacioso. Algumas empresas utilizam da missão social que pregam como forma de marketing, ou seja, só querem atrair mais consumidores e ganharem prestígio. O resultado é uma disparidade entre a teoria e a prática, fator que evidencia ainda mais a necessidade de um instrumento regulatório com poder de fiscalizar e punir os abusos de direito das grandes corporações.

De qualquer modo, é importante destacar que a assunção destas responsabilidades sociais, de forma espontânea, elucida perfeitamente uma nova visão de encarar o mundo capitalista. O filósofo Anthony Giddens, por exemplo, defende que o novo modo de encarar antigas questões sociais é consequência de uma modernidade reflexiva, que busca gerir as mais diversas situações de risco, em especial, aquelas geradas pelo uso desenfreado de recursos naturais para manutenção de um mercado consumidor insaciável40.

Esta mudança de pensamento social, impulsionada pelo fenômeno da globalização, redescobriu novos aspectos a respeito da cultura mundial, da política, das acepções empresariais e sociais, bem como do capitalismo. Assim, uma nova realidade está sendo criada através do mercado financeiro global, o qual revolucionou as comunicações.

É neste contexto que a nova empresa multinacional é considerada a origem da modernidade reflexiva, dada sua essência informacional. Estas empresas trazem em si um caráter ambivalente, já que ao mesmo tempo que é capaz de beneficiar toda uma comunidade, também é uma potencial criadora de situações de risco. Em outras palavras, as responsabilidades sociais assumidas pelas empresas multinacionais fazem parte de um novo modo de entender o mundo41.

Estas circunstâncias ilustram o lado positivo da globalização que, segundo Francisco Balaguer Callejón, busca enxergar o capitalismo como um instrumento à disposição da sociedade e da cidadania e não como um fim em si mesmo. É por este motivo que é necessária a criação de um mecanismo capaz de domesticar o capitalismo. Em outras palavras, a globalização deve passar por um processo de humanização, ou seja, suas práticas, principalmente aquelas inerentes ao mercado econômico mundial, devem ser pensadas a partir da premissa do interesse social e da valorização do ser humano42. Por conseguinte, é imprescindível que sejam pensados instrumentos capazes de redirecionar o mercado aos seus limites.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Neste sentido, a eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais ganha destaque expressivo. Como é sabido, esta teoria leciona que os direitos e garantias fundamentais não regulamentam somente as relações entre Estado e cidadão (relação vertical), mas recaem também nas relações firmadas entre particulares (horizontal), que se encontram em pé de igualdade formal43.

Assim, no que toca à relação entre empresas multinacionais e consumidores é perceptível que a trato entre ambos tem adquirido novos contornos, principalmente por conta da assunção de responsabilidades sociais por parte das empresas, as quais estão pautadas na valorização de direitos essenciais, assim como a valorização dada pelo mercado consumidor a essas práticas empresariais.

O alinhamento de todos estes mecanismos permitirá o desenvolvimento de novos valores, normas e procedimentos, os quais ensejarão uma sociedade integralmente orientada para a dignidade da vida humana.


6 Da necessidade de criação de um mecanismo vinculativo global.

O desenvolvimento possibilitado pela globalização reorganizou a dinâmica internacional, de maneira que as empresas multinacionais disputam espaço e importância com os estados soberanos. Em face disso, é preciso repensar a forma de compartilhamento das responsabilidades entre esses entes, principalmente no que toca ao respeito de direitos básicos dos indivíduos44.

Em virtude da nova dinâmica global, a necessidade de um mecanismo vinculativo que trate dos direitos humanos se torna cada dia mais necessário. Em razão de todos estes motivos que, desde 2014 foi iniciado um grupo de trabalho intergovernamental, que abrange também instituições governamentais com o objetivo de elaborar um Tratado de Direitos Humanos, ou seja, uma norma internacional, de cumprimento obrigatório, para regulamentar as atividades das empresas multinacionais que violem os direitos humanos, independentemente de onde estejam localizadas45. A comissão se reúne periodicamente e, neste momento, a ONU aguarda que a comissão apresente um rascunho do tratado.

A discussão acerca da responsabilização internacional das multinacionais por violações de direitos é antiga, e somente em 2011 foram criados os “Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos”, um desdobramento do Pacto Global, por um trabalho iniciado por John Gerard Ruggie durante seu mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU entre 2005 e 2011. A aprovação desses princípios teve grande aceitação no âmbito internacional, principalmente porque não são vinculativos, ou seja, suas diretrizes não possuem força cogente46.

Estes princípios47 detalham a forma que os Estados e as corporações devem implementar os seguintes pilares: proteger (é responsabilidade dos Estados evitar os abusos das corporações), respeitar (é dever das empresas se responsabilizar por toda a sua cadeia produtiva, atuando com zelo para prevenir os riscos e minorar os impactos negativos de suas atividades) e remediar ( indicando a necessidade de estabelecer meios de reparação às vitimas em caso de violação).

É por isso, que fica a cargo dos Estados soberanos zelar pela proteção, respeito e reparação de eventuais violações dos direitos humanos perpetradas pelas corporações multinacionais nos limites de sua jurisdição. Ocorre que, pelo fato dessas empresas terem filiais/subsidiárias em vários países e sede em outros, elas facilmente conseguem escapar de acusações e deixam a mercê de reparação os bens jurídicos violados.

Foi por conta dessas situações que a necessidade de criação de um instrumento de proteção/defesa dos direitos humanos, cogente para as multinacionais em nível global tem se tornado cada vez mais necessário. Ademais, a participação dessas empresas em defesa desses direitos pode acelerar o progresso de efetivação dessas garantias.

A elaboração de um tratado internacional em matéria de direitos humanos também serve para expor situações absurdas de violações de direitos humanos cometidas pelas multinacionais e que ficam impunes. É sabido que o direito internacional cuida precipuamente da atuação dos Estados, e não de corporações, porém a ausência de normas cogentes em matéria de direitos humanos em relação as multinacionais, em razão de seu poder econômico e político, é uma grande lacuna do direito internacional na atualidade.

Ocorre que, em virtude da importância e do grau de abrangência que um tratado dessa espécie possui, pressupõe-se que este instrumento cogente demorará anos para ser finalizado e mais algum tempo para ser posto em prática. Outro fator que não contribui para a celeridade do projeto é o fato de muitos opositores estarem prontos para boicotá-lo, ou seja, os grandes acionistas e beneficiados do sistema capitalista.

Ademais, deve-se cogitar também que muitas corporações, provavelmente, não queiram assinar o tratado. Ocorre que a matéria dos direitos humanos diz respeito a valores essenciais da pessoa humana e relacionados a garantia de uma vida digna, ou seja, são questões inerentes à própria condição de ser humano. Por este motivo, os direitos humanos acabam sendo verdadeiro jus cogens, ou seja, uma lei peremptória, geral, com capacidade de compelir as mais diversas entidades, devida a importância que sua matéria traz, sendo, portanto, impossível de se desvencilhar.

A existência desses obstáculos só reforça a necessidade de um instrumento internacional em matéria de direitos humanos, pois hoje o cenário é de falta de leis, políticas e ações práticas capazes de coibir os abusos. A situação é tão periclitante em alguns Estados que o fato de ser ativista ambiental pode ser um rico para sua própria vida.

A título de exemplo, a ONG Globalwitness calculou que no ano de 2014 cerca de 116 pessoas morreram defendendo terras e recursos naturais, sendo que a maioria dos casos ocorreram na América do Sul e na américa central48. Relatórios do ano de 2017 divulgados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Anistia Internacional e da ONG Front Line constataram os quatro países campeões de homicídios de ativistas: Brasil, Colômbia, Filipinas e México. Ademais, o Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos constatou que só em 2016 foram mortos no país 66 ativistas49.

A importância de um tratado para a defesa dos direitos humanos é indiscutível na atual dinâmica do mundo globalizado, porém outro instrumento igualmente importante seria a criação de um tribunal internacional para dar, de fato, efetividade a esse sistema. Para que esta corte tenha eficácia, é necessário que inúmeras variáveis sejam levadas em consideração, como: representação legal e assistência às vítimas, a função dos Estados soberanos durante o processo, validade de provas, modo de execução das decisões, etc50.

Este tribunal teria papel determinante na quebra da arquitetura legal da impunidade e traria segurança jurídica para a aplicabilidade e respeito aos direitos humanos estabelecidos em um tratado internacional. A existência dessa instituição certamente traria melhorias expressivas ao direito internacional além de possibilitar proteção aos direitos humanos e às vítimas de abusos cometidos pelas multinacionais, possibilitando sobremaneira a punição concreta dessas corporações.

Sobre a autora
Patrícia do Nascimento Delgado

Advogada, formada pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB e aluna do curso de pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário, no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB/ICPD.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos