Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da tese do marco temporal para fins de demarcação de terras indígenas. Trata-se de um momento histórico de reinterpretação constitucional à luz da dignidade da pessoa humana, dos direitos originários dos povos indígenas e da justiça intertemporal. A decisão proferida no âmbito do Recurso Extraordinário 1.017.365/SC representa um marco paradigmático na jurisprudência da Corte Constitucional brasileira. Com base em fundamentos constitucionais, históricos e antropológicos, o artigo perpassa os argumentos centrais debatidos, além de apresentar uma crítica fundamentada à tentativa de positivação do marco temporal por meio de proposta legislativa.
INTRODUÇÃO
“Não se trata de concessão do Estado. É reconhecimento de um direito originário”. A frase, extraída do voto do Ministro Edson Fachin, relator do Recurso Extraordinário n. 1.017.365/SC, resume a linha axial da recente guinada jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal sobre a questão fundiária indígena. No centro da controvérsia, estava a tese do marco temporal: a ideia de que apenas as comunidades indígenas que estivessem ocupando a terra em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição Federal – ou que estivessem litigando judicialmente ou em conflito comprovado sobre ela, teriam direito à demarcação.
Tal critério, amplamente defendido por setores do agronegócio, foi por muitos anos um fator de limitação prática do direito dos povos originários. A decisão do STF, ao rechaçar essa interpretação, reafirma a Constituição Cidadã de 1988 como um pacto fundado na justiça histórica e no pluralismo.
O DIREITO CONSTITUCIONAL DOS POVOS INDÍGENAS ÀS TERRAS
O artigo 231 da Constituição da República é a pedra angular do direito territorial indígena. A norma é categórica ao dispor:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
É crucial compreender a natureza originária desse direito. Como ensina José Afonso da Silva (2005, p. 824), “não se trata de uma aquisição por concessão estatal, mas de um reconhecimento de uma situação preexistente à própria formação do Estado brasileiro”.
A doutrina consagra, portanto, a ideia de que tais terras não pertencem aos indígenas por força de um ato do Estado, mas por sua relação histórica, espiritual e cultural com o território. Nesse sentido, o território é mais do que espaço físico: é a base da identidade e da existência coletiva dos povos indígenas.
A TESE DO MARCO TEMPORAL E SUA CONSTRUÇÃO JURISPRUDENCIAL
A tese do marco temporal teve sua origem mais influente no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR), em 2009. À época, o STF fixou 19 condições para a demarcação, entre as quais o entendimento de que seria necessário comprovar a ocupação da terra indígena na data da promulgação da Constituição de 1988.
Tal tese, embora não vinculante, passou a ser invocada amplamente pela Administração Pública e pelos tribunais. Entretanto, diversos constitucionalistas alertaram para sua inconsistência dogmática. Para Eloísa Machado (2021), “o marco temporal inverte a lógica do artigo 231 e transforma o reconhecimento de um direito originário em uma prova de posse recente”, o que violaria frontalmente os princípios da dignidade da pessoa humana e da função social da terra.
O JULGAMENTO DO STF NO RE 1.017.365/SC: UMA RUPTURA COM O PASSADO
No julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discutia a posse tradicional do povo Xokleng sobre terras em Santa Catarina, o STF finalmente se debruçou de forma definitiva sobre o marco temporal.
O relator, Ministro Edson Fachin, foi incisivo:
“O reconhecimento do direito à terra independe da demonstração de uma disputa possessória em 5 de outubro de 1988, sob pena de negar a própria essência da proteção constitucional”.
Acompanharam a posição do relator os Ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Rosa Weber, Gilmar Mendes e Luiz Fux, formando maioria para declarar a inconstitucionalidade do marco temporal.
Foi reconhecida a tese de que os direitos territoriais indígenas devem ser analisados à luz da tradicionalidade da ocupação, e não de uma data fixa. Além disso, admitiu-se que o esbulho, o deslocamento forçado e a expulsão histórica são obstáculos que não podem prejudicar o reconhecimento do direito à terra.
REFLEXOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DA DECISÃO
A decisão do STF provocou reações intensas no cenário político. Em resposta, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei nº 2.903/2023, posteriormente sancionado com vetos pelo Presidente da República, tentando restaurar o marco temporal por via legislativa.
Contudo, tal tentativa encontra barreiras constitucionais intransponíveis. A jurisprudência do STF é clara no sentido de que normas infraconstitucionais não podem contrariar interpretação fixada pela Corte sobre dispositivos constitucionais (vide ADI 1946, rel. Min. Celso de Mello).
A manutenção da tese do marco temporal, por meio de legislação ordinária, representaria verdadeira afronta ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, cláusulas pétreas protegidas pelo artigo 60, §4º, da CRFB.
UMA JUSTIÇA INTERTEMPORAL: DIREITO, MEMÓRIA E DIGNIDADE
A superação do marco temporal representa mais do que uma guinada interpretativa: é um gesto de justiça intertemporal. Como ensina Boaventura de Sousa Santos (2007), “não há democracia plena sem o reconhecimento dos saberes, das práticas e dos direitos dos povos silenciados pelo projeto colonial e monocultural do Estado moderno”.
A decisão do STF aproxima o Brasil dos compromissos internacionais assumidos, especialmente a Convenção nº 169 da OIT, que garante aos povos indígenas o direito à terra, à consulta prévia e à autodeterminação cultural.
É, enfim, um avanço civilizatório. Um movimento que redimensiona o papel do Poder Judiciário como guardião de uma Constituição que é, ao mesmo tempo, promessa e memória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao declarar a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o caráter contramajoritário dos direitos fundamentais. Mais do que isso, reforçou a centralidade do artigo 231 da Constituição como uma cláusula de reparação histórica e proteção da diversidade cultural.
O desafio que se impõe agora é garantir a efetividade da decisão. A demarcação das terras indígenas deve ser realizada com respeito aos direitos ancestrais, à dignidade das comunidades e ao pacto democrático de 1988.
Como disse o Ministro Barroso, “não se pode exigir que a vítima prove o esbulho de sua própria terra quando foi silenciada pela força do tempo e do açoite”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
FACHIN, Edson. Voto no RE 1.017.365/SC. Supremo Tribunal Federal, 2023.
MACHADO, Eloísa. O Direito à Terra como Direito Fundamental. São Paulo: Juruá, 2021.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.051/2004.