Sumário: 1. Introdução. 2. Origem histórica – interpretação econômica do tributo. 2.1. O direito comparado. 2.2. O direito brasileiro. 3. Diferenças entre elisão e evasão fiscal. 3.1. Negócio jurídico indireto. 3.2. Simulação fiscal. 3.3. Abuso de forma. 3.4. Abuso de direito. 4. O planejamento tributário – economia fiscal lícita. 4.1. Conceito de planejamento tributário. 4.2. O direito ao planejamento. 4.3. Fundamentos para a prevenção de custo fiscal. 5. Norma antielisiva e os princípios constitucionais. 5.1. Princípio da estrita legalidade ou tipicidade cerrada. 5.2. Princípio da segurança jurídica. 5.3. Princípio do não-confisco. 6. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A referência básica dessa pesquisa cinge-se nas tentativas do legislador ordinário em instituir uma norma geral antielisiva, cujo arcabouço teórico fundamenta-se na interpretação econômica do tributo, como forma de estabelecer restrições ou limites a liberdade que o particular tem de autodeterminação nos atos e negócios jurídicos de repercussão financeira.
A elisão fiscal tem sido uma ferramenta necessária para a sobrevivência de diversos agentes econômicos no Brasil. Sua ocorrência pode ser vista como uma forma de superação das dificuldades enfrentadas pelo mercado e pelas crises oriundas da má governabilidade.
As condutas elisivas concretizam-se mediante uma análise prévia das atividades negociais com o enfoque nas possíveis hipóteses de incidência tributária, manejando assim o planejamento fiscal para a diminuição da carga de impostos, contribuições e taxas. Por essa razão é que sua prática é comum e recomendável, ao passo em que sua legitimidade é constatada na medida em que lhe falta ilegalidade na conduta. Ou seja: não há, na prática, a subsunção em hipótese normativa sancionatória.
É corrente a busca pela obrigação tributária mínima como forma de reduzir os custos e potencializar os lucros. Nesse contexto, surge a necessidade de elaboração de um estudo fiscal para a construção de um planejamento tributário, através do qual as hipóteses de incidência da norma não seriam prescrições dos fatos e atos da vida prática, evitando, com isso, a ocorrência do fato gerador da obrigação de pagar um dado tributo.
Para o estudo do tema posto na presente pesquisa, faz-se pertinente ressaltar os conceitos imprescindíveis para o enfrentamento do problema, cujo conhecimento é fundamental para a compreensão das questões envolvidas e para a visualização técnica mais adequada.
Outrossim, há de ser destacado o contexto histórico que permitiu o surgimento do instituto jurídico conhecido como elisão fiscal, bem como as doutrinas que pretendem a sua extinção. A origem retrata aspirações jurídicas calcadas em regimes políticos e modelos econômicos praticados em tempos não tão recentes. A construção doutrinária da interpretação econômica do tributo tem como protagonista precursor o alemão Enno Becker, que projetou suas idéias no direito positivo ao participar da elaboração do Código Tributário Alemão, no ano de 1919. Foi nessa época que foram traçadas as linhas que propiciaram a instituição de uma norma antielisiva no direito moderno.
Já na Itália surgiu a chamada interpretação funcional do direito tributário, que, segundo Nogueira (1982, p. 10), apresentou-se com a pretensão de “dar ao intérprete um campo de investigação bem mais amplo do que o previsto na doutrina da interpretação econômica”.
São muitos os conceitos trazidos pelas várias escolas doutrinárias, pelo que se impõe a compreensão dos diversos enfoques apresentados, em face da dificuldade premente de se chegar à uniformização.
Sob outro prisma da pesquisa, também se buscou esclarecer a confusão que alguns intérpretes fazem ao diferenciar elisão de evasão fiscal. São figuras distintas, mas que emergem da mesma origem doutrinária – só que cada uma imbuída de características, natureza e efeitos próprios. Sopesando as peculiaridades que envolvem os dois institutos, a contraposição torna-se extremamente importante para o presente estudo, pois se verifica que a confusão conceitual também permite a extrapolação dos limites do poder de tributar, uma vez que o resultado prático pode depender da análise da conduta para enquadra-la como elisão ou evasão fiscal.
Explorando o campo do presente trabalho com mais profundidade, foi dedicado um capítulo específico para tratar de planejamento tributário, possibilitando a extração de noções básicas acerca da sua natureza jurídica e seus elementos, finalidades e modos de operacionalização envolvidos.
Já adentrando propriamente no conteúdo da hermenêutica jurídica, a análise dos textos normativos, alvo da discussão, passa a enfrentar a principiologia constitucional tributária e as suas respectivas dimensões e conteúdos axiológicos essenciais. Dessa forma, permite-se a visualização profícua das discussões travadas no seio da doutrina, ao passo em que se possibilita a construção de um referencial teórico íntegro e imbuído de juridicidade.
O estudo dos dispositivos considerados antielisivos encontra importância destacada nas relações da atualidade. Não só porque a elisão fiscal é prática corrente entre os agentes econômicos, mas, sobretudo porque são normas cujas diversas formas de interpretação ensejam insegurança jurídica e conseqüente desrespeito às garantias constitucionalmente consagradas. As razões disso são as conseqüências decorrentes da tentativa em se implementar uma norma geral antielisiva, mormente quando envolve diretamente as liberdades particulares e as limitações públicas enfrentadas pelo poder de tributar.
Nesse sentido, surge do problema a necessidade de um referencial exegético prático e coerente, imbuído de técnica lógico-jurídica e tomando por base a interpretação das normas, de forma contextualizada, sob a ótica macro-legislativa. Noutro aspecto, considerações principiológicas mereceram guarida como norte imprescindível para a concretização do presente estudo.
2. ORIGEM HISTÓRICA – INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO TRIBUTO
O estudo de temas relativos ao direito demanda sempre uma análise histórica de suas respectivas bases de origem. Na sistematização específica do ramo tributário, as normas antielisivas tiveram seus contornos iniciais com a emancipação da chamada teoria da interpretação econômica do tributo.
2.1. O DIREITO COMPARADO
Com o final da primeira guerra mundial, alguns fatos novos ensejaram a reavaliação do sistema de normas tributárias, seja porque a estrutura social já sofria uma abrupta mutação, seja em razão da pujança da época em prol do desenvolvimento econômico.
Nesse contexto, a teoria da interpretação econômica do tributo surgiu (no início do século passado) e teve como idealizador o alemão Enno Becker, como uma forma de repugnar as generalizações feitas à época, de que o direito tributário representava um ramo formalístico, engessado pela interpretação meramente restritiva de seus textos normativos (NOGUEIRA, 1982, p. 2). Isso porque o direito tributário germânico havia aderido à idéia-base de que a interpretação das normas tributárias seguia uma lógica única, segundo a qual não se permitia a extensão da incidência da hipótese legal do fato gerador aos atos praticados que não tivessem a respectiva prescrição normativa.
A incidência de um tributo somente ocorreria se o ato tivesse perfeito enquadramento legal – qualquer outro negócio jurídico praticado, cuja forma adotada seguisse os parâmetros traçados pelo direito privado e não fosse prescrição estrita da previsão legal, não se subsumiria, então, na incidência de qualquer tributo, por faltar-lhe o caráter gerador da respectiva obrigação.
Becker participou da elaboração do Código Tributário alemão em 1919, oportunidade em que propugnou suas idéias e fez constar daquele diploma dois dispositivos que positivaram a teoria da interpretação econômica do tributo. São eles:
§ 4.º Bei der Interpretierung der Steuergesetze muß man das Ziel, die wirtschaftliche Bedeutung und die Entwicklung der Umstände berücksichtigen.
§ 5.º Die Steuerpflicht darf weder durch Mißbrauch der Formen noch durch die Gestaltungsmöglichkeiten des Zivilrechts vermieden oder verhindert werden. (FERRAZ, 2001)
A tradução para o português é extraída da obra de Nogueira (1982, p. 2):
§ 4.º A interpretação das leis tributárias deve ter em vista o seu objetivo, seu significado econômico e o desenvolvimento das relações.
§ 5.º O débito tributário não pode ser objeto de evasão ou redução, mediante o abuso de formas jurídicas de direito privado.
As idéias de Enno Becker foram acolhidas por muitos juristas, levando a crer que o fato gerador do tributo deve considerar o aspecto econômico, ínsito à repercussão que o ato praticado teria na economia, reduzindo as diversas formas de atos e negócios jurídicos a um patamar comum, considerado a substância econômica – ainda que o legislador tivesse se referido à hipótese de incidência a apenas um ou outro. Segundo a teoria, todos os atos cairiam numa vala comum para deles serem extraídos os respectivos conteúdos econômicos e, assim, serem enquadrados na hipótese de incidência conforme a finalidade da norma. (MALKOWSKI, 2000, p. 45).
A norma jurídica tributária se afasta então de sua concepção originária, que regrava a interpretação restritiva, para abranger a interpretação segundo a sua finalidade, a fim de se extrair o conteúdo econômico dos atos e negócios praticados, olvidado-se a previsão da hipótese de incidência do respectivo tributo.
Até então, os juízes se atinham à interpretação rígida e fria da letra da lei. Nesse sentido, segundo Vanoni apud Nogueira (1982, p. 3):
O escopo da RAO1 era afirmar, de maneira indiscutível, a necessidade de se considerar, na integração da letra da lei, o objetivo do preceito, seu alcance econômico e as suas relações com o desenvolvimento das situações da vida prática.
[...]
[...] visa tão somente impor ao juiz, com a máxima evidência, o dever de desenvolver completamente o pensamento jurídico contido no direito tributário, e, assim fazendo, levar em conta os fins das leis tributárias e o seu alcance econômico, assim como as formas de que se revistam, no momento, as situações da vida prática.
A idéia também é defendida sob o entendimento de que a interpretação econômica é um instrumento de efetivação do princípio da isonomia, sob o fundamento de que “hipóteses economicamente iguais devem ser tratadas de forma igual” (MALKOWSKI , 2000, p. 46), operando-se aí uma forma de justiça social.
Seguindo a doutrina de Penteado (1988, p. 16), cabe transcrever a passagem de uma de suas obras:
O objetivo do tributarista alemão foi dar maior realce à substância econômica das relações de direito tributário, em contraposição ao formalismo conceitual das relações de direito privado, em uma época em que aquele ramo do direito surgia como ciência nova e autônoma. Argumentam os seguidores dessa doutrina – a partir do reconhecimento do tributo como um fenômeno de fundo econômico, na medida em que incide sobre fatos econômicos levando em conta a capacidade econômica dos indivíduos [...].
De outro lado, baseada em fundamentos diversos da teoria da interpretação econômica do tributo, a teoria da interpretação funcional tem nascedouro na italiana scuola2 de Pavia, sob o comando de Benvenuto Griziotti, e acarreta conseqüências práticas semelhantes.
Referindo-se à escola de Pavia, Pesenti (apud NOGUEIRA, 1982, p. 9) esclarece que:
Esta escola segue, como é conhecido, uma via lógica de extrema coerência, que procura estar sempre aderente ao fenômeno econômico-financeiro, que vem regulado pela lei. Por isso parte do conceito de ‘causa’ ligado ao princípio da capacidade contributiva, interpreta as leis segundo as suas relações causais ou funcionais e procede de modo que a norma jurídica seja adequada ao elemento econômico e político (de escolha fiscal) que é o seu real conteúdo.
A concepção trazida à baila pela teoria funcionalista amplia o campo de investigação do intérprete em relação à teoria germânica. Aqui, atribui-se à lei a integração do fato gerador com a ciência das finanças, obtendo o sentido da norma através de seu conteúdo econômico, através de elementos também políticos, conforme a conveniência fiscal.
A verdade é que ambas as correntes buscam uma identidade de efeitos econômicos dos fatos. O que se persegue é a caracterização do ato/fato jurídico de acordo com a previsão legal tributária, afastando-se de conceitos meramente jurídicos, para extrair uma interpretação da lei de acordo com a consideração econômica dos atos e negócios praticados.
Dessa forma, a doutrina da interpretação econômica do tributo outorgava ao intérprete uma amplitude sem precedentes para o combate à elisão tributária, tornando sua prática praticamente impossível em face das conseqüências oriundas da fórmula que passa a considerar os atos pelo conteúdo econômico, não em razão da forma adotada pelo contribuinte.
2.2. O DIREITO BRASILEIRO
No Brasil, a teoria de interpretação econômica do tributo teve como baluarte Amílcar de Araújo Falcão (NOGUEIRA, 1982. p. 42). Segundo ele:
Depurada de excessos e impropriedades, que se encontram em certos autores, a chamada interpretação econômica da lei tributária consiste, em última análise, em dar-se à lei, na sua aplicação às hipóteses concretas, inteligência tal que não permita ao contribuinte manipular a forma jurídica para, resguardando o resultado econômico visado, obter um menor pagamento ou o não pagamento de determinado tributo.
Já Geraldo Ataliba (apud NOGUEIRA, 1982, p. 43) sustenta que:
[...] só tem cabimento quando se trata de manifesto abuso de forma ou de fraude, justificando o recurso à interpretação econômica para assegurar o princípio constitucional de igualdade de todos.
Dória (apud NOGUEIRA, 1982, p. 45) apresenta uma tese oposicionista bem estruturada, pontificando que:
O Direito pressupõe para sua realização um mínimo irredutível de formas, porque estas também integram a realidade da vida, e só reduzindo as estruturas reais a categorias formais é que o Direito pode adequada e eficientemente discipliná-las. A forma é suscetível de definição e nitidez de contornos, ao passo em que a massa crua dos fatos é quase sempre imprecisa, fugida, cambiante, rebelde à sistematização e unificação conceptuais, enquanto assim permanece. Arrasar as formas é destruir o direito, relegando a tutela das relações sociais ao arbítrio, incerteza e casuísmo das decisões do poder em casos isolados; convém ademais ressaltar que a tributação constitui modernamente um capítulo do Direito (tutela objetiva e coercitiva das relações sociais).
Nessa linha de raciocínio, o aludido jurista continua sob o enfoque da questão da suposta inaplicabilidade dos conceitos de Direito Privado na interpretação do Direito Tributário:
Uma das mais vagas enunciações do campo fiscal é a da ‘identidade do conteúdo ou efeitos econômicos’. O princípio não é nunca desdobrado analiticamente em seus elementos constitutivos, e inexistem diretrizes compreensivas e objetivas para sua aplicação concreta. É fórmula atraente na aparência, mas vazia de efetividade prática. Não surpreende que o seja, pois a superfície econômica que suporta toda a tributação é sempre a renda, numa de suas três vertentes fundamentais (renda auferida – imposto sobre a renda propriamente; renda poupada – impostos sobre o patrimônio. Renda dispendida – impostos sobre a circulação das riquezas). Ora, se o legislador, por hipótese, ao instituir uma tributação nominalmente sobre as vendas, tinha no âmago de seu espírito a intenção de atingir realmente a circulação das riquezas, que lhes está subjacente, por que não estender, pergunta-se, o ônus fiscal a todos os outros atos que envolvem idêntica circulação (troca ou escambo, dação em pagamento, conferencia de bens ao capital de sociedades, importação, exportação etc.). Seria lógico admitir que o legislador, querendo atingir todo o gênero, mencionasse tão somente uma de suas espécies quando, livre de quaisquer peias, poderia referir o gênero ao invés da espécie? Tão inepto é o legislador que precisa socorrer-se do aplicador para a articulação correta da mens legis?
Está claro que estas são considerações absurdas, aptas entretanto a realçar, por isso mesmo, as conseqüências de total incerteza advindas da pretensão de eliminar genericamente as hipóteses de elisão fiscal, pela delegação de poderes virtualmente legislativos ao intérprete e aplicador, autorizados a decidir segundo a preponderância econômica dos fatos, descartando-lhes a exteriorização formal.
Por esse raciocínio, a interpretação econômica, portanto, tratar-se-ia de método interpretativo de normas tributárias em face dos fatos, quando analisados pelo aplicador Estado-Administração ou magistrado. Verifica-se, nessa linha, que sua utilização poderia se dar quando encarada a hipótese em que o particular utiliza-se de forma jurídica anormal ou atípica, assim considerada quando, para o caso concreto, o adequado, normal e comumente esperado fosse a utilização de outra forma jurídica, cuja incidência tributária seria gerada pela respectiva ocorrência prática. Admitir-se-ia, também, a utilização desse método de interpretação, quando verificada a ocorrência da simulação do Direito Privado, calcada no abuso de forma.
Coelho (2005), um dos doutrinadores mais em voga na ciência tributária contemporânea, em obra que homenageou ao jurista Mário Moacyr Porto, deixa lições que merecem destaque. A saber:
O constitucionalismo atingiu no Brasil nível excelente, especialmente em matéria tributária, com plena entronização dos princípios da legalidade formal e material, da anualidade, da anterioridade e da espera nonagesimal (postergadores da incidência da lei fiscal após publicada, em homenagem ao princípio axiológico da não-surpresa), da igualdade, da capacidade contributiva, do não-confisco e das proibições constitucionais de incidência (IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS). Por outro lado, além do monopólio da jurisdição, nenhuma relação jurídica ou ameaça de lesão a direitos, principalmente aos direitos e garantias individuais, pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Quis a Constituição que o Estado-Administração catasse a obediência estrita à lei (legalidade), obrigando-a, ademais, a se pautar pelos princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade e proporcionalidade, entre outros, como os da verdade material e da motivação do ato administrativo. (COELHO, 2005, p. 604-603).
Em descompasso com a realidade do direito estrangeiro, tanto a Constituição Federal da República Federativa do Brasil quanto o Código Tributário Nacional (CTN) deixaram de albergar a teoria da interpretação econômica do tributo (BRASIL, 1988, 1966), ficando sua respectiva concretização prática prejudicada em face da falta de compatibilidade com o sistema jurídico em vigor.
O Capítulo IV do CTN trata da interpretação e integração da legislação tributária. Nos arts. 109. e 110 do aludido diploma, o legislador deixou evidente que é vedada a alteração, pela legislação tributária, dos institutos de direito privado (BRASIL, 1966). Portanto, a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos jurídicos de direito privado não podem ser objeto de alteração pela legislação tributária.
Vide os mencionados artigos – in verbis:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias (BRASIL, 1966).
O teor dos apontados dispositivos revela uma tímida inspiração na teoria da interpretação econômica do direito tributário. Isso porque trata da interpretação e integração da legislação tributária, restringindo suas conseqüências de forma a respeitar o alcance e o conteúdo dos institutos de direito privado.
A verdade é que o Direito é uno. A ramificação da ciência, para atender com mais especificidade a algumas relações jurídicas, não implica, de hipótese alguma, que um ou outro ramo assuma autonomia plena, a ponto de se conferir aplicabilidade sob um regime completamente alheio ao sistema jurídico como um todo, sobrepondo-se em detrimento dos princípios decorrentes de outras realidades (até porque o Direito é a ficção do mundo real).
Essa conclusão é necessária para conter a avidez daqueles que tomam posições doutrinárias que geram certa incoerência no sistema, propugnando a independência completa de um determinado ramo do Direito, em cuja relação jurídica estejam submetidos, ao alvedrio único de se locupletar com base na referida interpretação libertária.
Ocorre que não se depreende, contudo, que o poder de atribuir efeitos fiscais a atos e negócios jurídicos não tributáveis foi outorgado ao interprete. O foi ao legislador – a quem incumbe a tarefa de aprovar normas que gerem tributação. E isso está expressamente contido no texto do inciso I, art. 150, da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados e ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (BRASIL, 1988).
Nesse ponto de discussão, Machado (2006, p. 129-130) pontifica o seguinte:
Se determinado conceito legal de Direito Privado não for adequado aos fins do Direito Tributário, o legislador pode adaptá-lo. Dirá que, para os efeitos tributários, ou para os efeitos deste ou daquele tributo, tal conceito deve ser entendido desta ou daquela forma, com esta ou aquela modificação. Essa interpretação é obra do legislador e não do intérprete, pois este não pode, a qualquer pretexto, modificar a lei. Se o conceito não é legal, mas apenas doutrinário, pode o intérprete adapta-lo aos fins do Direito Tributário.
Se um conceito jurídico, seja legal ou doutrinário, é utilizado pela Constituição, não poderá ser alterado pelo legislador, nem muito menos pelo intérprete. O art. 110. do CTN determina que ‘a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de Direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituição dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias’. Não pode a lei, vale repetir, nem muito menos o intérprete. A razão é simples. Se a Constituição referiu0se a um instituto, conceito ou forma de Direito privado para definir ou limiar competências tributárias, obviamente esse elemento não pode ser alterado pela lei. Se a Constituição fala de mercadoria ao definir a competência dos Estados para instituir e cobrar o ICMS, o conceito de mercadoria há de ser o existente no Direito Comercial. Admitir-se que o legislador pudesse modificá-lo seria permitir ao legislador alterar a própria Constituição Federal, modificando as competências tributárias ali definidas.
Seguindo essa linha de pesquisa, reforça-se a idéia de que no sistema jurídico tributário brasileiro não vigora a teoria da interpretação econômica do tributo, tal como idealizada na origem, mormente quando se depara com a força da estrita legalidade em matéria tributária, cânone de natureza constitucional, a teor dos artigos 5.º, inciso II, e o já citado 150, inciso I, ambos da Constituição Federal – o primeiro, in verbis:
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, ,à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (BRASIL, 1988).
A mais recente manifestação da chamada teoria da interpretação econômica no ordenamento jurídico nacional é observada com a edição da Lei Complementar n. 104. (BRASIL, 2001). Esse diploma alterou o CTN em seu art. 116, aditando o parágrafo único (BRASIL, 1966) e gerando grandes debates no seio da doutrina. Observe-se o teor:
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (BRASIL, 1966, grifo aditado).
O espírito inovador esboçado pela norma (denominada por muitos como antielisiva) carrega em seu âmago uma tarefa espinhosa no sistema jurídico tributário brasileiro – qual seja: a de enfrentar as sólidas bases de interpretação, sobretudo no que tange às hipóteses de incidência, sedimentadas e protegidas por um arcabouço constitucional de garantias aos contribuintes.
Tais garantias se justificam em razão de fundamentos óbvios, que reviram as páginas da história do país registrando os caminhos traçados pelos tortuosos regimes políticos, sempre produzidos por cenários em que seus protagonistas acabavam propiciando a quebra das garantias e facilitando as instabilidades, daí gerando transformações de incerteza, insegurança jurídica e a proliferação de golpes, quase sempre instaurados à guisa de malfadadas subversões democráticas e disfarçados pela promessa de um futuro próspero e mais justo para a sociedade.
A doutrina responde com veemência a iniciativa do legislador. Parte da doutrina tributarista sustenta simplesmente estar a norma recém ingressada fazendo parte de um ordenamento que não lhe é possível conferir aplicabilidade, seja por questões de ordem constitucional, seja em razão da falta de adequação com todas as demais normas jurídicas – aqui já partindo para a interpretação sistemática do direito tributário constitucional e infraconstitucional.
Nada obstante a existência de ilustrações da teoria da interpretação econômica no direito comparado, a positivação do direito tributário no Brasil não albergou norma semelhante, de sorte que ainda ficou preservado o princípio da estrita legalidade do direito tributário.
Somente após muitos anos de aperfeiçoamento técnico-jurídico, quando temas primários já vinham sendo superados e deixando a pauta de discussões doutrinárias, o aludido diploma complementar então é subitamente aprovado pelo Congresso Nacional e seu conteúdo retoma o foco dos estudiosos e aplicadores do direito.
Ao compasso da atual ordem de idéias, cumpre desenvolver um raciocínio crítico analítico, capaz de precisar a que sorte foi embutida a disposição, considerada antielisiva, no ordenamento jurídico brasileiro, ao tempo em que se torne possível compreender a relação que tal norma estabelece com as demais normas, constitucionais e infraconstitucionais.
Para tanto, antes se deve buscar compreender em que efetivamente consiste a tão comentada elisão fiscal e em que contexto se insere tal conceito, para então, aí sim, se fazer a correlação jurídica mais adequada na atual ordem legal e constitucional.