Capa da publicação Elisão fiscal: o que diferencia da evasão?
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20/05/2025 às 08:06
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3. DIFERENÇAS ENTRE ELISÃO E EVASÃO FISCAL

Como já salientado, a compreensão do tema tratado na presente pesquisa demanda uma prévia análise conceitual de alguns institutos. In casu, é necessário trazer à baila a diferenciação existente entre elisão e evasão fiscal. São figuras distintas, mas que geram confusões constantes em face dos seus efeitos no mundo dos fatos e do direito.

De acordo com as definições de Ferreira (1961, p. 437), elisão significa “supressão, eliminação”. Quando se presta à mesma tarefa para a evasão, o autor se refere como sendo “ato de evadir-se; fuga; (fig.) subterfúgio, evasiva” (FERREIRA, 1961, p. 520, grifo do autor).

Seguindo esse caminho de definições, em consonância com a mais aplaudida obra da língua portuguesa, nada mais prudente que a busca conceitual das expressões insertas para cada um dos institutos, de maneira a reforçar o entendimento e, assim, dar mais subsídios para o raciocínio jurídico.

Dessarte, já que Ferreira (1961) define elisão como sendo sinônimo da idéia de supressão, eliminação, ao deparar-se com a conceituação da primeira (supressão), verifica-se que o autor se refere ao ato de suprimir, como o correspondente ao de “impedir que apareça; não deixar publicar; impedir a vulgarização de; omitir; cortar; eliminar; fazer desaparecer; cassar; anular; invalidar; extinguir; passar em silêncio; não mencionar” (FERREIRA, 1961, p. 1.134). Quanto à eliminar, o mesmo autor se refere como sendo o ato de “fazer sair do organismo; fazer sair; excluir; matar; suprimir; banir; p. matar-se” (FERREIRA, 1961, p. 437).

Analisando as definições de Ferreira (1961) atinentes à evasão, é possível encontrar em sua obra que subterfúgio significa “pretexto; ardil para se esquivar a dificuldades” (FERREIRA, 1961, p. 1.128), ou que subterfugir significa “[...] escapar ardilosamente; [...] ladear. (FERREIRA, 1961, p. 1.128). Já evadir tem como significado “escapar; desviar; iludir; sofismar; p. fugir às ocultas; escapar-se furtivamente; desaparecer; sumir-se; fugir da prisão” (FERREIRA, 1961, p. 520).

As direções dadas pela língua portuguesa fornecem uma base para se chegar ao entendimento segundo o qual há uma linha divisória entre ambas as figuras. Tanto a evasão quanto a elisão são meios de se desobrigar, ou deixar que uma determinada responsabilidade seja passível de ser efetivamente cobrada.

Ocorre que as características peculiares dão fundamentos diferenciados para cada um dos institutos. A elisão encontra guarida nas situações em que o sujeito tende a planejar os seus atos, manejando melhor a forma como irá conduzir os seus negócios, os caminhos que resolve trilhar ou as formas de que se vale para determinar o comportamento e sua própria vida.

A elisão, assim, reside melhor no campo da autodeterminação lícita dos atos, na medida em que ao sujeito é disponibilizada uma série de opções e caminhos, sempre pertencentes à licitude, possibilitando a escolha por aquele que melhor lhe convir ou que lhe seja menos gravoso. Daí é que se suprime; elimina; impede; não publique; não vulgariza; omita; corte; faça desaparecer; cassa; anula; invalida; extinga; bane; etc.

Diferentemente é o que ocorre quando se trata de evasão, cuja natureza revela alta carga de imoralidade ou falta de ética – por intermédio de atos que se prestam ao ardil; pretexto; subterfúgios; desvio; ilusão; sofismo; fuga às ocultas, da prisão.

Não há como negar que evasão imprime a idéia de ilegalidade, de ilicitude, de falta de juridicidade.

A doutrina de Fabretti (2005) é bem elucidativa. Segundo ele, a economia tributária resultante da adoção da alternativa legal menos onerosa ou de lacuna da lei denomina-se elisão fiscal, sendo ela legítima e lícita, pois alcançada por escolha feita de acordo com o ordenamento jurídico, adotando-se a alternativa legal menos onerosa (FABRETTI, 2005, p. 153).

Ainda, salienta o autor que a evasão fiscal, ao contrário da elisão, consiste em prática contrária à lei, geralmente cometida após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, objetivando reduzi-la ou ocultá-la (FABRETTI, 2005, p. 154).

Sustentando a linha de raciocínio segundo a qual a elisão não corresponde a uma conduta juridicamente censurável, torna-se valiosa a lição de Braga (2004, grifo aditado):

A teoria da interpretação econômica foi suplantada até mesmo no seu país de origem, não obstante as isoladas vozes que ainda a defendem. Entretanto, não se lhe pode subtrair o mérito de ter alavancado as discussões sobre o tema da evasão e da elisão fiscal. Muitas outras teorias seguiram-se à sua formulação, como a teoria elaborada nos Estados Unidos cujas bases assentam-se na idéia de ausência de propósito negocial.

Em fidelidade à tradição jurisprudencial, ou consuetudinária daquele país, a teoria do lack of business purpose, ou ainda, business purpose test, surge, pela primeira vez, no precedente, de 1935, no caso Gregory v Helvering, verdadeiro leading case no assunto. A teoria construída pela Supreme Court surge, não sem que antes seja afirmada, em caráter universal, a ausência de um dever cívico de pagar mais tributos.

Segundo o entendimento firmado no citado precedente, ‘o contribuinte tem direito de diminuir o montante do tributo que de outra forma seria devido, ou ainda, evitar totalmente a sua incidência, desde que se valha de meios legalmente permitidos’. O que definirá a abrangência da legalidade dos meios empregados será justamente a pesquisa sobre o seu intento negocial.

A perspectiva de Dória (apud BRAGA, 2004) também merece igual destaque – observe-se:

O segundo aspecto, de maior relevância, é o momento da utilização dos meios: na fraude, opera-se a distorção da realidade econômica no instante em que ou depois que ela já se manifestou sob a forma jurídica descrita na lei como pressuposto de incidência. Ao passo que, pela elisão, o agente atua sobre a mesma realidade antes que ela se exteriorize, revestindo-a da forma alternativa não descrita na lei como pressuposto de incidência. Com ligeira ampliação dos momentos em que a fraude se verifica, para incluir também a simultaneidade de sua ocorrência com a do fato gerador, pode-se afirmar que é hoje doutrinariamente pacífica a adoção desse critério formal distintivo entre fraude e elisão.

Note-se que este último posicionamento traz um método temporal de diferenciação entre elisão e evasão – esta batizada com o aspecto da fraude. E coaduna-se com a idéia posta de cada uma das figuras.

O ardil, o pretexto, os subterfúgios, a fuga às ocultas... todas essas características já são pacificamente entendidas como sendo ínsitas à idéia dada pelo vocábulo evasão, sendo coerente concluir que, se há fuga e subterfúgios, há intenção de fraude.

Noutro aspecto, a fraude se dá em momento que já não se é possível afastar a ocorrência do fato, porque antes dele somente há a previsão fática, através da qual não se pode olvidar os respectivos efeitos.

Penteado (1988, p. 6), ao fazer uma conceituação de elisão fiscal, pontifica que:

[...] entendemos apropriado definir a elisão fiscal como a conduta individual preventiva tendente, por processos sempre lícitos, a afastar ou retardar a incidência tributária ou, então, a tornar aplicável a mais favorável dentre várias, tendo em vista evitar a ocorrência de tributo ou reduzir ou retardar o impacto de seu pagamento [...].

Mais adiante, Penteado (1988, p. 9), salienta que:

O fim ou objetivo pretendido, por ser comum às duas figuras (elisão e evasão), não nos oferece elemento distintivo entre elas. Com efeito, tanto pela elisão como pela evasão, o que se busca, sempre, é alguma forma de economia fiscal. O objetivo, portanto, é de nenhuma serventia como critério diferenciador.

Tal critério deve ser buscado, primordialmente, no momento da implementação dos procedimentos escolhidos com vista a determinada economia fiscal, E, subsidiariamente, na licitude ou ilicitude de tais procedimentos.

Neste particular, tem sido aceita, quase sem contestação, a proposta de Rubens Gomes de Sousa que, com a objetividade que sempre o caracterizou, faz repousar, singelamente, a diferença básica e fundamental entre uma e outra figura no momento mesmo de sua verificação, antes ou depois da ocorrência do fato gerador do tributo considerado: se antes, a hipótese é de elisão; se depois, evasão terá ocorrido.

Naturalmente, pressuposto necessário dessa colocação é a licitude do próprio procedimento, do próprio negócio e da forma jurídica que o tiver revestido, sem o que a elisão não teria lugar, em momento algum. Note-se, portanto, que esse critério, por isso mesmo por nós considerado subsidiário, só tem valia para confirmar ou desqualificar, como elisivo, procedimentos aperfeiçoados antes da ocorrência do fato gerador. Pode se sobrepor ao critério tempo para estigmatizar, como evasão, procedimento ocorrido antes do fato gerador. Mas não serve para alçar à categoria de elisão procedimento ocorrido depois do fato gerador e, portanto, evasivo por definição.

É de se extrair dos ensinamentos contidos nas linhas do citado doutrinador, que a constatação da conduta tendente à economia fiscal, após a ocorrência do fato gerador, corrobora com o entendimento segundo o qual não se subsumiria à hipótese elisiva, mas tão somente evasiva – método subterfúgio.

Ademais, a ocorrência do fato gerador já propicia a validade dos seus efeitos, não tendo os atos prospectivos o condão de desvincular a ocorrência do fato de seus respectivos efeitos.

O próprio caput do art. 116, do CTN, já impede tal situação, estabelecendo que, “salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos” (BRASIL, 1966, grifo aditado).

Seguindo-se a conceituação para se encontrar a correta distinção entre elisão e evasão fiscal, para Fabretti (2005), esta última figura, “ao contrário de elisão, consiste em prática contrária à lei. Geralmente, é cometida após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, objetivando reduzi-la ou ocultá-la” (2005, p. 154).

Impende registrar, ainda, que a Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, prevê que certas condutas que produzem efeitos tributários constituem crime (BRASIL, 1990). Por óbvio, tais condutas pertencem às hipóteses de evasão fiscal.

Em caminho diverso ao majoritariamente adotado, quanto à diferenciação conceitual entre elisão e evasão fiscal, inclusive quanto aos respectivos efeitos, Machado (2006, p. 150, grifo do autor) entende que:

[...] elisão, é ato ou efeito de elidir, que significar eliminar, suprimir. E evasão é o ato de evadir-se, a fuga. Tanto se pode dizer elisão fiscal, no sentido de eliminação ou supressão do tributo, como evasão fiscal, no sentido de fuga a imposto. Elisão e evasão têm sentidos equivalentes. Se tivermos, porém, de estabelecer uma diferença de significado entre esses dois termos, talvez seja preferível, contrariando a preferência de muitos, utilizarmos evasão para designar a conduta lícita, e elisão para designar a conduta ilícita. Realmente, elidir é eliminar, ou suprimir, e somente se pode eliminar, ou suprimir, o que existe. Assim, quem elimina ou suprime um tributo, está agindo ilicitamente, na medida em que está eliminando ou suprimindo a relação tributária já instaurada. Por outro lado, evadir-se é fugir, e quem foge está evitando, podendo a ação de evitar ser preventiva. Assim, quem evita pode estar agindo licitamente.

Observa-se que do entendimento esposado em sua obra se infere que há uma confusão acerca do significado de cada uma das figuras.

Ao passo em que dá definições próprias para cada um dos institutos, em consonância com os ensinamentos insertos na obra de Ferreira (1961), o referido autor caminha no sentido de reuni-las em um mesmo espaço para, então, tratá-las como sinônimos, concluindo que elisão e evasão são equivalentes.

No esforço de conferir diferenciação entre as figuras aqui tratadas, o autor entende que a elisão ocorreria quando analisada sob a ótica do fato gerador – do tempo em que ocorre –, sem considerar que sob o prisma temporal, a interpretação do ato é subsidiária, tal como Penteado (1988, p. 9) já pontificou com propriedade (vide passagem acima que trata da doutrina desse autor).

Com efeito, o prisma temporal para se diferenciar elisão de evasão fiscal só tem valia para confirmar ou desqualificar determinado ato como sendo elisivo ou evasivo.

Nesse sentido, a conceituação deve obedecer à natureza do ato, não apenas ao momento de sua prática.

Como já pinçado da obra de Machado (2006, p. 150), seu entendimento é que elisão configura eliminar o que já existe. Mas a eliminação do que já existe não importa em se eliminar a obrigatoriedade no pagamento do tributo, cujo supedâneo se dá em face da ocorrência do fato gerador.

O fato gerador não se elimina – ele faz parte do mundo dos fatos, cuja existência é irremediável. Não se volta no tempo para apagar um determinado fato, para fazer como se nunca tivesse existido.

A eliminação não é do fato ou da obrigatoriedade de pagar tributo. Elimina-se ou suprime-se a sua ocorrência como previsível no futuro. Efetivamente não se elimina ou suprime tributo – como deixa registrado Machado (2006, p. 150) na passagem acima transcrita. O que se elimina é a possibilidade da ocorrência do fato gerador de pagar o tributo – o que revela ser extremamente diferente da supressão do próprio tributo.

Dessarte, a fuga tributária, própria da evasão, não se verifica como conduta meramente preventiva. A própria idéia de fuga revela em seu contexto uma saída em debandada; um afastamento de um perigo iminente; uma tentativa de se ver livre de algo revelado, cuja ocorrência gerou a perseguição – da qual há a fuga. Não se foge para prevenir, mas sim para se livrar de um acontecimento.

Os tributaristas distinguem a elisão da evasão fiscal através de institutos jurídicos importados do direito civil, sendo os que mais ressoam no seio da doutrina os seguintes: negócio jurídico indireto, simulação, abuso de forma e abuso de direito.

Por esse motivo, torna-se pertinente o tratamento de cada uma das referidas figuras, no intuito de iluminar o campo de interpretação mais adequado pelo operador do direito. Assim, cumpre proceder ao estudo mais detalhado do tema, para elucidar os fatores válidos de diferenciação e, em seguida, cotejar o novel dispositivo, considerado antielisivo, com as demais normas do ordenamento jurídico.

3.1. NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO

Penteado (1988, p. 7) faz uma identificação jurídica de elisão decorrente de negócio jurídico indireto, fazendo empréstimo dos conceitos correspondentes do direito civil. Observe-se:

A elisão fiscal, por suas características e objetivo, configura-se como um negócio jurídico indireto. E isto, em absoluto, prejudica sua condição de negócio juridicamente válido e legítimo, ou o faz resvalar para a área pantanosa dos negócios simulados ou fraudulentos. Parece-nos ser esta sua mais adequada categorização jurídica, em consonância, aliás, com nossa melhor doutrina.

Seguindo essa linha, o aludido autor salienta que o conceito de negócio jurídico indireto é desenvolvido no direito privado, em razão da freqüência na sua utilização e aplicação, pontificando, em seguida, que a sua ocorrência se dá quando as partes recorrem a uma determinada modalidade típica (ou seja, legalmente prevista) de negócio jurídico, sujeitando-se a todas as suas formalidades e conseqüências, porém com vistas à obtenção de um resultado que, na prática, normalmente não seria atingido através desse negócio (PENTEADO, 1988, p. 7).

O autor ainda pondera que a existência de características próprias de negócio jurídico indireto não refuta, por si só, a validade do ajuste celebrado. Sendo válidas as formas e lícitos os fins obtidos (PENTEADO, 1988, p. 7), a finalidade atípica a qual imbuiu as partes a enveredar-se por caminhos indiretos é, juridicamente, irrelevante para o direito, sobretudo para o tributário.

Tendo essas premissas como norte orientador do presente quesito, é possível se refletir que o problema levantado com o negócio jurídico indireto reside na existência de licitude, ou não, dos fins alcançados com a sua prática, mormente quando se tratar de economia fiscal.

A idéia de negócio jurídico indireto é atraente para se proceder à visualização meramente acadêmica da evasão fiscal. Ao contrário do que o autor se esforça em fazer crer, negócio jurídico indireto não se afigura nos conceitos de elisão fiscal. A espinha dorsal desse tipo de negócio reside nas hipóteses de simulação – o que é rechaçado pela ordem jurídica (adiante tratada com mais propriedade).

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Note-se que o autor calcou toda a sua fundamentação na idéia de que a elisão fiscal, “por suas características e objetivo”, configura-se como um negócio jurídico indireto, daí argumentando, de forma simplista, que a conduta elisiva seria uma simulação.

O problema é que o esforço de distinção entre a conduta elisiva e evasiva adentra terrenos extremamente pantanosos. Na evasão, como visto, há a nítida intenção de fraudar, de enganar. Já na elisão, o negócio jurídico não é indireto, mas direto e legítimo, porque formulado ao alvedrio e livre disposição de vontade, para atingir o mesmo fim que se atingiria por caminhos outros, só que com a válida intenção de economizar, jamais de desonerar-se ou deixar de pagar.

Martins e Menezes (2000, p. 68) fazem uma breve distinção entre negócio jurídico indireto e simulação, a saber:

Note-se, por oportuno, que o negócio indireto difere, significativamente, da simulação. Nesta última hipótese, as partes não desejam o que foi pactuado no plano jurídico, mas uma outra realidade, que remanesce subjacente. No negócio indireto, ao invés, o que foi pactuado corresponde fielmente à vontade dos contratantes, além do que, neste caso, a finalidade visada não é ilegal, apesar dela ser alcançada por vias oblíquas.

Nesse exato momento é possível visualizar com mais clareza o tamanho do problema enfrentado. Às vezes imperceptível, a linguagem utilizada para tratar da distinção entre a elisão e a evasão fiscal, eventualmente oculta impropriedades que podem ser cruciais para induzir o leitor a uma conclusão equivocada. E pior: incutir a idéia de que tal conclusão seria a consentânea com a ordem jurídica.

Cumpre ponderar que “deixar de pagar” pressupõe ilícito, uma vez que revela em seu contexto a idéia de inadimplemento de obrigação contratual ou, no caso em tela, legal. Na mesma medida, “desonerar-se” também pressupõe idéia semelhante (ilícito), eis que quem se desonera é porque já se encontrava, de alguma forma, onerado.

Na elisão fiscal, o contribuinte sequer está onerado ou obrigado ao pagamento do tributo, tampouco sendo cobrado de uma exação cujo fato gerador é meramente hipotético (caso pratique uma conduta prescrita em norma tributária).

Não se pode objurgar o fato de que a linguagem com que alguns jurisconsultos tratam do assunto pode levar os desavisados a conclusões das mais trágicas. Imprescindível, então, que seja traçada a correlação lógica dos efeitos decorrentes de cada instituto, ao passo em que, nesse empenho, se promova a distinção técnica mais apurada.

Para ilustrar, saindo da seara tributária e já invadindo o campo do direito penal, é célebre a interminável discussão acerca das diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente. São figuras distintas, mas que a diferenciação de cada uma também gera confusões de conseqüências devastadoras.

Importante lembrar que a elisão fiscal é o efeito do planejamento tributário, que é uma maneira de, cuidadosamente, estabelecer os caminhos a serem trilhados para se atingir uma menor carga tributária.

É evidente que terceiros, alheios à relação traçada por um planejamento tributário, ao fazer uma primeira análise sobre os negócios e caminhos ali empreendidos, na maioria das vezes concluem que não adotariam os mesmos passos. Isso porque a análise de uma hipótese concreta por um terceiro e, conseqüentemente, despido do estudo dos riscos e ônus decorrentes da atividade econômica, decerto não conduziria à conclusão idêntica daquele que procedeu ao planejamento tributário, elaborado de forma criteriosa e analítica.

Essa situação ocorre muito nos casos em que alguém, sem previamente estar esclarecido, se depara com uma atividade econômica precedida de um planejamento tributário. Como resultado, o sujeito conclui prontamente que agiria de maneira diversa para se atingir o mesmo objetivo – só que provavelmente com uma carga tributária superior.

Vincular os atos do contribuinte à forma “esperada”, ao negócio que “geralmente“ seria implementado, ao contrato “mais comum” etc., seria caminhar em sentido diametralmente oposto ao da liberdade que o particular tem de conduzir os seus atos da maneira que melhor lhe convir ou menos oneroso for.

O particular não pode ter os seus atos jurídicos desconsiderados à graça do auditor fiscal – que, diga-se an passant, em última análise é a autoridade administrativa a que se refere a norma acoimada de antielisiva, e que, muitas vezes, investe seus esforços na vã aflição de fazer gerar receitas ao seu amo (o Estado).

Tal liberdade, inclusive, encontra baluarte na livre iniciativa, que, dada a sua importância, nada mais é do que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pregado pela Carta Política (CF) de 1988 em seu art. 1., inciso IV, com o seguinte teor:

Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Brasil, 1988, grifo aditado).

Ao revés, é pertinente a seguinte indagação: como compatibilizar a idéia de desconsideração do ato, na hipótese de alguém investir vultosos recursos num negócio cuja forma adotada gere uma alta repercussão fiscal, mas que poderia ser menor se empreendido através da forma geralmente adotada pelos gestores ou administradores médios? Seria possível a transmutação da forma utilizada pelo particular, para impedir que o Poder Público se locuplete sob a égide da ignorância alheia, reduzindo aí a carga tributária? A administração fiscal já não estaria recolhendo os tributos validamente, ou estaria a comungar com o enriquecimento sem causa?

E aí se perfaz a árdua tarefa de diferenciação entre economia fiscal legítima (elisão fiscal) e a supressão ilegítima da carga tributária (evasão fiscal).

O “divisor de águas” dessas duas figuras é sensivelmente tênue, de modo que demanda a adoção de critérios sólidos e válidos de diferenciação. Do contrário, a falta de compreensão e da capacidade de diferenciação pode gerar conseqüências extremamente injustas.

É muito importante que o intérprete passe a munir-se de subsídios que lhe possibilitem a precisão na análise do caso a caso. Elisão fiscal não se confunde, de hipótese alguma, com simulação fiscal, dissimulação, ou outras condutas afeitas à fraude.

3.2. SIMULAÇÃO FISCAL

O Código Civil brasileiro dispõe, em seu art. 167, sobre a invalidade do negócio jurídico simulado. De acordo com o § 1. do referido dispositivo, a simulação ocorrerá quando:

I - apresentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas àquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

(BRASIL, 2002).

Trata-se, assim, de negócio jurídico pactuado com a intenção de camuflar a realidade das coisas, ocultando a vontade real da vontade declarada no instrumento contratual.

Há a simulação sob a perspectiva da pessoa, figurada na parte contratante, que, de fato, não é aquela que deva efetivamente usufruir os resultados oriundos do negócio jurídico firmado. Não é, na realidade, o titular do direito de empreender os esforços e obter os ganhos diretos do contrato. Por esse artifício, se busca tão somente encobrir a pessoa que se pretende conferir, transferir, transacionar ou alienar direitos. É a figura do “testa de ferro”, portanto.

Segundo Gutierrez (2001, p. 90):

A doutrina distingue, ainda, a simulação absoluta da relativa. A simulação é considerada absoluta quando não há relação negocial efetiva entre as partes. As partes celebram um negócio jurídico apenas aparentemente, pois, na realidade, este não existe. O ato é fictício, inexistente, subsistindo só na aparência, já que as partes não têm intenção de efetuar ato algum.

[...]

Na simulação relativa, dois negócios se sobrepõem: o simulado ou aparente, que não espelha o íntimo querer das partes o dissimulado, oculto ou real, que as partes efetivamente desejam celebrar. A dissimulação oculta ao conhecimento dos outros a existência da verdadeira relação jurídica havida entre as partes. Este tipo de simulação é o mais encontradiço no âmbito do direito tributário. Corresponde à dissimulação onde se oculta o conhecimento dos outros uma situação existente.

[...]

A simulação relativa pode ser subjetiva ou objetiva. No primeiro caso, a simulação se dá quanto à pessoa que figura no negócio. A parte que figura no ato não é aquela que deve aproveitar seus resultados. Já, na hipótese, uma interposição de pessoas.

Inegável que a simulação é o meio através do qual, em conluio, duas ou mais pessoas agem para, ocultando a realidade dos fatos e valendo-se de métodos dissimulados, ludibriar ou prejudicar direitos de terceiros.

Se o fato gerador tributário é suprimido levando em consideração tais premissas, haverá de ser perfeitamente encaixado na hipótese em que o negócio jurídico pactuado não poderá surtir seus respectivos efeitos, sendo caracterizado como fato gerador.

Tal conclusão é possível levando-se em consideração que o Estado é terceiro interessado indireto no resultado econômico de uma atividade em cujos atos subsumem-se numa hipótese de incidência tributária.

Em segundo momento, porque não se pode admitir, em direito, que um ato simulado possa prejudicar o direito de alguém, porque sua a prática já é a própria ilicitude e a ordem jurídica tende a invalidar os efeitos dele decorrentes.

No esforço de esclarecer a questão, Martins e Menezes (2000) pontificam que “a simulação é a modalidade de ilícito tributário que, com maior freqüência, costuma ser confundida com a elisão” (MARTINS; MENEZES, p. 163).

A simulação importa na existência de duas realidades distintas – uma aparente e outra correspondendo com a verdade ocultada pelas partes contratantes, esta inicialmente não perceptível. A primeira diz respeito à realidade jurídica, que se emoldura diante dos efeitos decorrentes do negócio jurídico celebrado entre os partícipes do engodo. Já a segunda somente vai se restringir a tais partícipes do negócio jurídico pelo qual se pretende ocultar a verdade.

Martins e Menezes (2000, p. 163) esclarecem que:

A causa da ocultação está sempre voltada para a obtenção de algum benefício que não poderia ser atingido pelas vias normais, o que demonstra tratar-se de um ato antecipadamente deliberado pelas partes envolvidas, que se volta para um fim específico.

Ocorre que, no direito tributário, o espectro material da realidade sobrepõe a estrutura jurídica travada entre os contribuintes, sendo possível a administração pública lançar o tributo de ofício, a teor do inciso VII, art. 149, do CTN, que prevê tal situação “quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação.” (BRASIL, 1966).

Tanto a simulação quanto a má-fé, na formação dos atos e negócios jurídicos, devem ser constatadas mediante a compulsão de provas, através das quais seja possível extrair conclusão inequívoca de tal situação.

Como os autores deixaram bem claro, inicialmente todos aqueles que se depararem com os efeitos decorrentes do negócio jurídico, açoitado de simulado, não extrairão qualquer conclusão acerca dos seus vícios e defeitos, nem tampouco que o quanto ali estipulado não quer corresponder com a realidade ou sequer com a vontade das partes contratantes.

Daí concluir-se que, então, o fato de o negócio jurídico ser simulado somente será constatado mediante uma investigação aprofundada, para então se avaliar ser possível, ou não, a correspondente invalidação.

3.3. ABUSO DE FORMA

Considere-se que os negócios jurídicos são celebrados quando há a contraposição de interesses e a manifestação de vontade da respectiva celebração. Em seu turno, a manifestação da vontade é revelada através da forma adotada pelas partes contratantes.

É comum a manifestação de vontade através de simples gestos, palavras ou sinais mímicos – a exemplo do sujeito que estende a mão para um ônibus que trafega em uma determinada via, como sinal de aceitação do contrato de transporte coletivo ora oferecido.

São várias as formas que o Direito disponibiliza para a consecução dos negócios pretendidos pelos particulares. E não poderia ser diferente, porque a própria realidade dos fatos e das idéias renova-se cada vez mais rápido em face da riqueza de situações criadas no cotidiano, de modo que o engesso das formas prejudicaria a própria evolução das relações jurídicas travadas numa multifária e multifacetada sociedade.

Segundo Beviláqua (1980, p. 142), “forma é o conjunto das solenidades, que se devem observar para que a declaração da vontade tenha eficácia jurídica.”

O abuso de forma consiste na situação em que o sujeito resolve praticar algum ato, utilizando-se de instrumentos e meios distintos daqueles que são geralmente eleitos na sociedade.

Trata-se da adoção de instrumentos cuja forma caracteriza-se pela anormalidade, em face daquilo que se busca alcançar com a vontade das partes. É o meio destoante daquilo que se espera do homem médio.

O sentido subjetivo que reside no conceito do abuso de forma é a sua marca peculiar. O que se avalia é o caminho seguido por aquele que contrata ou pratica um determinado ato, para atingir um objetivo que seria facilmente atingido através de meios outros, mas que assim o fez para obter um resultado ilícito.

Amaro (1998, p. 51, grifo do autor), em obra que abriga os textos referentes ao XI Congresso Brasileiro de Direito Tributário, realizado pelo Instituto Geraldo Ataliba (IDEPE), conceitua o abuso de forma da seguinte maneira:

Tema conexo é o ligado ao questionamento do abuso de forma, que traduziria modo de evasão de tributo. O abuso de forma consistiria na utilização de uma forma jurídica atípica, anormal ou desnecessária para a realização de um negócio jurídico que, se fosse adotada a forma ‘normal’, teria tratamento tributário mais oneroso. Para não haver o alegado abuso, a instrumentação utilizada para o negócio jurídico deveria conter-se dentro dos limites ‘normais’ de uso do instrumento adotado.

Essa Posição deixa ao arbítrio do aplicador da lei a decisão sobre a ‘normalidade’ da forma utilizada. O problema deixa de ser de legalidade da forma, mas de ‘normalidade’, o que agride os postulados da certeza e da segurança do Direito, pois sempre que certa forma fosse adotada pelo contribuinte para implementar um negócio ele teria que verificar se aquele modelo é o que mais freqüentemente se utiliza para a realização daquele negócio. O critério jurídico seria substituído pelo critério estatístico e as variadas formas que o Direito criou para instrumentar as atividades econômicas dos indivíduos seriam reduzidas a alguns poucos modelos que fossem ‘validados’ fiscalmente. Dizer que a forma lícita utilizada pelo contribuinte é abusiva mal disfarça uma contradição.

O que se deve observar é se a forma foi adotada para seguir um caminho modo tortuoso, de difícil manejo ou mais trabalhoso, somente sendo assim perceptível através do resultado obtido ou esperado antes da sua prática – pois partindo do resultado é que se pode verificar se poderia ser atingido de outras formas.

Nesse sentido, o resultado ilícito atingido por um caminho tortuoso de formas adotadas é que vai dar a aplicabilidade ao instituto do abuso de formas. Quando se tratar de resultado lícito, condizente com o sistema jurídico, não há que se perquirir a abusividade dos caminhos adotados.

A elisão fiscal, por se concretizar no planejamento tributário, assim entendido como o estudo prévio e analítico acerca dos caminhos que devem ser adotados para a consecução da economia tributária, demanda, necessariamente, uma eleição de formas juridicamente disponíveis.

E não é pelo fato de o contribuinte eleger uma ou outra forma para compor o planejamento tributário que o seu caráter irá ser abusivo e, por via de conseqüência, contrário à ordem jurídica.

Considerando essas premissas, são irrelevantes as formas que o contribuinte resolve adotar para a concretização do planejamento tributário, formulado de forma lícita. Já quando se tratar de evasão fiscal, por guardar um nódulo ilícito em sua prática, o abuso de forma, então, fica evidente quando atingida a economia de tributos por caminhos não muito comuns à prática do resultado aparentemente desejado.

Trazendo alguns dados históricos acerca do abuso de formas, Rolim (2001, p. 142-144, grifo do autor) comenta acerca da doutrina que dá prevalência à substância em detrimento da forma:

A doutrina na substância sobre a forma surgiu nos Estados Unidos, no leading case ‘Gregory v. Helvering’, decidido em 7.1.1935, como alternativa à aplicação analógica da lei, que em princípio é proibida pela tradição da commom law [...]. No caso, a forma adotada pelo contribuinte numa reorganização societária era um artifício ou um disfarce para ocultar o seu real caráter, fazendo parte de um plano preconcebido não para reorganizar a estrutura societária, mas tão somente para transferir parte de ações de uma empresa ao contribuinte sem incidência do imposto, através da criação artificial de uma outra companhia que deixou de existir logo após a consumação daquele plano. De fato, entendeu a Suprema Corte que tinha havido ‘uma elaborada e tortuosa forma de transmissão disfarçada de reorganização societária’. Assim, a forma artificial contrária à substância dos fatos ocorridos não poderia subsistir, ainda que conduzida toda a transação de acordo com os termos da lei, pois não estaria em consonância com a intenção do legislador.

Explicitando o assunto com nítida propriedade, Marins (2002, p. 39-40) afirma o seguinte:

Quando a utilização de um direito ou de uma forma jurídica, mesmo que lícita, tem por finalidade causar lesão a terceiro, pode estar caracterizado o abuso de direito. Essa teoria conduziu, como já vimos, à noção do abuso de forma consagrada na Reichsabgabenordnung de 1919 (Ordenação Tributária Alemã) como sucedâneo da idéia da interpretação econômica, para fins tributários, dos atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte.

A teoria do abuso de forma insere-se em um terreno correlato ao do abuso de direito. Sampaio Dória criticou duramente a teoria do abuso das formas: ‘O problema é que esta teoria do abuso das formas ainda é mais ambígua do que a teoria da interpretação econômica, porque essa teoria parte do pressuposto de que fórmula juridicamente válida é a que normalmente se utiliza para a realização de um negócio. Então, entramos no problema de saber qual forma normal – A ou B –, mas em sua essência o direito permite uma alternativa, uma série de opções, para a realização de um mesmo negócio, de uma mesma realidade econômica e se formos verificar que um ato é legítimo porque é normal ou não, estaremos caindo em critério, totalmente, empírico.’ Esta avaliação recairia em campo totalmente subjetivo. Assim, conclui que essa teoria ‘deveria ser abandonada, porque introduz uma incerteza muito grande em todo o campo tributário’.

Seguindo essa esteira de interpretação, verifica-se ser inegável que o caminho traçado pela tese do abuso de forma não se adapta ao conceito de elisão fiscal, porque traz, em seu ninho valorativo, questões ligadas à dissimulação, ao ardil, a subterfúgios etc., bem afeitas às questões que envolvem mais propriamente o conceito de evasão fiscal.

De forma a arrematar esse entendimento, Rolim (2001, p. 149) salienta o seguinte:

[...] volta-se à indeterminação e à incerteza quanto à distinção entre elisão fiscal legítima e evasão fiscal, ou simplesmente elisão fiscal inaceitável, mesmo quando se recorre a conceitos de abuso de direito, prevalência da substância sobre a forma, intenção negocial, fraude à lei, tanto no âmbito de normas legislativas quanto da jurisprudência. Quanto maior a precisão destes tipos, menos a margem à incerteza e à possibilidade de arbitrariedade por parte do intérprete da lei ou das próprias regras surgidas da jurisprudência.

Como já tratado em linhas anteriores, notadamente na seção que trata do negócio jurídico indireto (3.1), a tese do abuso de forma não é passível de concretização para efeitos de invalidar um planejamento tributário, porque a forma “esperada”, ao negócio que “geralmente“ seria implementado, ao contrato “mais comum” etc., seria caminhar em sentido diametralmente oposto ao da liberdade que o particular tem de conduzir os seus atos da maneira que melhor lhe convir ou menos oneroso for, ao passo em que entraria em choque direto com os princípios da segurança jurídica e da livre iniciativa, fundamentos da Republica Federativa do Brasil.

3.4. ABUSO DE DIREITO

No direito civil, dentre os atos configurados como ilícitos, está aquele praticado com abuso de direito.

O art. 187 do Código Civil brasileiro trata dessa forma de ato ilícito, dispondo o seguinte:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (BRASIL, 2002).

A ilicitude no exercício abusivo de um direito é a consagração da máxima segundo a qual nenhum direito é absoluto. A citada norma estabelece o exercício responsável do direito, impondo ao seu titular limites na boa-fé, bons costumes e, relativamente ao próprio direito, nos fins sociais e econômicos através dele perseguidos.

Diante desse espectro, abuso de direito é uma figura calcada na análise dos resultados advindos do exercício irregular do direito – se há violação da finalidade do direito que foi conferido ao seu titular.

Saliente-se que, de acordo com o citado dispositivo civil, a aferição do abuso de direito é possível independentemente da existência, ou não, de culpa do titular. Trata-se, portanto, de um ilícito autônomo, de natureza objetiva.

Já o art. 188 do Código Civil prevê hipóteses excludentes da configuração do ato ilícito – especialmente no o inciso I, há a previsão de que o exercício regular de um direito reconhecido não configura ilícito. Observe-se:

188. Não constituem atos ilícitos:

I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; (BRASIL, 2002, grifo aditado).

Não há previsão expressa, em nenhum texto legal, conferindo ao particular o direito à elisão fiscal. Por outro lado, o dispositivo acima transcrito não se refere a direito conferido de forma expressa, mas impõe tão somente a observação do reconhecimento do direito.

Nesse contexto é que se é possível invocar a elisão fiscal como um direito, uma vez que o sistema jurídico tributário não proíbe sua prática, apesar de não prevê-la de forma expressa.

E o reconhecimento do direito à economia fiscal (ou elisão fiscal) é algo amplamente difundido e reconhecido no mundo jurídico nacional, apesar das intempéries empreendidas por alguns doutrinadores, que forçam a equiparação da conduta elisiva com a conduta evasiva – tal como já amplamente demonstrado em linhas passadas.

Ademais, o mencionado parágrafo único do art. 116. do CTN não proíbe a conduta elisiva – e nem a ela expressamente se refere. A previsão instituída pela referida norma cinge-se na possibilidade de desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária (BRASIL, 1966).

Sobre o tema, Venosa (2003, p. 609) pontifica o seguinte:

O fato de a matéria estar inserida no capítulo dos atos ilícitos em nada prejudica. De fato, se o abuso de direito não constitui propriamente um ato ilícito e transcende os limites da responsabilidade civil, razão prática impõe que as conseqüências do abuso sejam as mesmas da reparação por responsabilidade civil. A boa-fé objetiva, como cláusula aberta, é um dos elementos a serem analisados na conceituação do abuso. Esse conceito de boa-fé se mostra presente em ouras situações do novo Código, como um critério para a interpretação dos negócios, bem como para a análise dos contratos. Juntamente com a boa-fé, avulta de importância o critério do julgador no caso concreto pois, ao concluir pelo abuso de direito, verificará ele se, além de transgredir a boa-fé objetiva aceitável na hipótese, a conduta excedeu os limites estabelecidos para o fim econômico ou moral do direito que se discute, além dos bons costumes, também citados no texto legal.

O novo Código, de forma elegante e concisa, prescinde da noção de culpa, no art. 187, para adotar o critério objetivo-finalístico. É válida, portanto, a afirmação apresentada de que o critério de culpa é acidental e não essencial para a configuração do abuso. [...].

Já analisando o exercício regular de um direito, há de se concluir que sua acepção pressupõe a não violação, no gozo de um determinado direito, dos direitos alheios.

Nesse sentido, é possível se afirmar que o exercício de um direito para fins exclusivos de pagar menos tributos configuraria abuso de direito.

Citando Greco (1994, p. 103), Sobrinho afirma que, se ao lado da auto-organização para fins de pagar menos tributo, houver também uma finalidade empresarial, o abuso de direito não existirá (SOBRINHO, p. 26).

No entanto, há de se esclarecer que tal afirmação de Sobrinho (2001, p. 26) somente pode persistir se a palavra empregada para a aludida finalidade não se restringir aos fins empresariais, conquanto não haver limitação de tal prática ao mundo dos negócios (onde residem as práticas do direito empresarial). Isso se dá pelo fato de que nem sempre os negócios jurídicos de repercussão financeira são praticados em decorrência de uma atividade empresarial.

Martins e Menezes (2001, p. 69) refletem sobre o tema e entendem o seguinte:

Nesse novo contexto, independentemente de inovações legislativas, os planejamentos tributários encontrariam limites na figura do abuso de direito, que como ressalta o próprio autor, não guarda correspondência com a ‘interpretação econômica’, já analisada.

Segundo a tese do abuso de direito, os contribuintes continuariam a ter liberdade para organizar os seus negócios, das formas mais vantajosas e adequadas possíveis, desde que os procedimentos efetuados neste sentido não tenham por objetivo exclusivo a economia de tributos.

O abuso de direito possui elementos subjetivos, compreendidos como a avaliação da finalidade econômica ou social, boa-fé e bons costumes, os quais as questões tributárias também se submetem. A conduta elisiva não se configura nas hipóteses de má-fé ou de transgressão dos bons costumes. (MARINS, 2002, p. 38-39).

Ademais, quanto aos bons costumes a prática vem revelando uma situação bem favorável à elisão fiscal. Não no que concerne às condutas vergastadas pela ordem jurídica – verdadeiros ilícitos. Para estas situações já se prevê claramente a evasão fiscal como figura antagônica da elisão. Trata-se, então, de condutas cujo cerne se verifica na prática lícita da economia fiscal, a qual, inclusive, é amplamente aceita pelos particulares.

Se ofendesse os bons costumes, a elisão fiscal seria considerada por uma outra perspectiva, resplandecendo a necessidade de toda a sociedade contribuir para a manutenção do Estado e, com isso, para a concretização dos direitos fundamentais. Quem deixa de pagar um tributo por meio de um subterfúgio espúrio, por exemplo, é facilmente taxado de “sonegador”, sendo censurado pela sociedade em geral. Não é o caso.

Mas o debate em torno do tema não reside nas questões que envolvem a moral ou boa-fé tributária, mas sim no que se refere a finalidade econômica buscada pela elisão fiscal.

O Código Civil (BRASIL, 2002) considera ato ilícito aquele que excede manifestamente os limites impostos para seu fim econômico ou social. E torna-se importante tratar com mais precisão sobre esse ponto, porque a elisão fiscal diz respeito estritamente às questões que envolvem a economia de tributos.

Marins (2002, p. 38-39) trata do assunto com propriedade ao afirmar que:

Será a busca pela elisão um ‘excesso manifesto ao seu fim econômico’, para fins da tipificação do ilícito civil? Será a economia tributária, a elisão fiscal, ‘excesso manifesto ao seu fim social’? Em casos verdadeiramente extremos – manifestamente excessivos – acreditamos que sim, mas na generalidade dos casos não pois, como leciona Ulhôa Canto: ‘O contribuinte que escolhe o modo de atingir resultados econômicos ou financeiros segundo o critério de suportar o melhor ônus fiscal que a lei permita não evidencia, só por isso, falta de civismo ou de espírito público.’

A verdade é que as premissas levantadas pela doutrina sobre a tese do abuso de direito, possibilita sua aplicabilidade somente em casos extremos, quando da análise dos resultados decorrentes do exercício do direito seja possível verificar a extrapolação dos limites passíveis de repercussão no direito tributário, assim considerados quanto ao fim econômico ou quanto ao fim social.

Considerando isso, convém salientar que o exercício abusivo do direito para desconsideração dos atos, para efeitos tributários, afigura-se na hipótese em que não há, no contexto da celebração do negócio jurídico, o vínculo que assegura o fim econômico perseguido na base da manifestação de vontade das partes contratantes. Em outras palavras, além de prejudicar terceiros (Fisco), o abuso do exercício de um direito deve albergar-se na exclusiva intenção de pagar menos tributos.

Evidente que a elisão fiscal vai gerar a redução da carga tributária. Mas não é só por isso que a conduta elisiva caracterizar-se-ia em um abuso de direito.

Quando se analisa o viés do Estado, conclui-se que permanece subjacente a sua capacidade de tributar em face das prescrições estabelecidas na legislação em vigor. Por outro lado, a intenção de pagar menos tributos é evidente no planejamento tributário. É justamente por isso que sua prática é recorrente na avaliação para implementação dos negócios de repercussão financeira.

O que ocorre com o abuso de direito, então, é a verificação da auto-organização com o intuito estrito e exclusivo de economia fiscal, ao passo em que há, incurso, o prejuízo alheio como repercussão lógica e imediata do exercício do direito. As repercussões diferidas, mediatas e não diretamente ligadas ao contexto em que se buscou celebrar o negócio jurídico, não configura prejuízo intencional, mas tão somente em efeito decorrente do planejamento tributário.

Entretanto, não há como adiar o fato de que o abuso de direito representa um solo bem mais amplo e geral para a prática de um ilícito, do que os outros institutos pela doutrina considerados como facilitadores da distinção entre elisão e evasão fiscal (negócio jurídico indireto, simulação e abuso de forma).

O negócio jurídico indireto, a simulação e o abuso de forma são formas de ilícitos praticados sob a égide do exercício de um direito conferido pelo próprio sistema. E quando o exercício de um direito se configura, em seu conteúdo, num ilícito, não se pode considerar que tal direito foi exercido de forma regular, mas sim abusiva.

Noutras palavras, as hipóteses em que se verificar a prática de um negócio jurídico indireto, uma simulação ou um abuso de forma, haverá, portanto, um abuso de direito.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STRAND, Daniel Senna. Normas antielisivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7993, 20 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113401. Acesso em: 5 dez. 2025.

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