O antropocentrismo é uma forma de ver o mundo em que ao ser humano é atribuída uma posição de centralidade, em que tudo o que existe gira ao seu redor. É uma visão usada até hoje para legitimar ações humanas que subjugam a natureza aos seus desígnios, pois esta não passa de um objeto de apropriação, cuja única finalidade é satisfazer as necessidades humanas, independentemente das consequências. É uma forma egoísta de se relacionar com a natureza e com os demais seres vivos 1.
A Constituição de 1988 estabeleceu limites ao egoísmo humano em relação à natureza, firmando um compromisso intergeracional, já que o meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser defendido e preservado para as presentes e futuras gerações. Outro freio ao egoísmo humano é dado em relação aos animais não humanos, pois para assegurar a efetividade deste direito fundamental são constitucionalmente vedadas as práticas que provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade (Art. 225, inciso VII do § 1º da CF/88).
Assim, esses avanços normativos trazidos pela Constituição foram afirmados na prática jurisprudencial nos julgamentos dos casos da Farra do Boi 2, da Briga de Galo 3, da proibição de testes em animais 4, e do abate de animais em situação de maus-tratos 5. Contudo, a Emenda Constitucional nº 96, de 2017, marcou o início desse retrocesso, numa clara reação do Congresso Nacional aos julgados do Supremo Tribunal Federal sobre leis estaduais que disciplinavam a vaquejada e que foram declaradas inconstitucionais.
A Constituição de 1988, com a aprovação Emenda Constitucional nº 96, de 2017, explicitamente coloca os animais não humanos numa posição de subserviência aos desígnios humanos, numa guinada antropocêntrica que marca um retrocesso, não apenas na defesa dos direitos dos animais, mas no próprio aperfeiçoamento da humanidade.
Assim, a preocupação humana com os animais não humanos para o texto constitucional parece existir apenas enquanto estes nos trazem uma utilidade, um conforto como os animais domésticos, e desde que não sejam obstáculos às atividades econômicas como as vaquejadas ou rodeios. Além disso, a redação da Emenda Constitucional nº 96, de 2017, contém um “escape antropocêntrico” autorizador da prática de maus tratos aos animais, porque para essa norma “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais” se forem reconhecidas como patrimônio cultural brasileiro.
A aprovação desta Emenda pelo Congresso Nacional mostrou o quanto a visão antropocêntrica permeia o nosso modo de pensar e de compreender o mundo, pois o grande apelo para a retomada dessas práticas culturais que causam maus tratos aos animais não humanos como a vaquejada é que elas promovem a geração de emprego e renda com os eventos que são realizados. E a este argumento agregaram um outro, mais sofisticado, que é associar essas supostas práticas esportivas ao patrimônio cultural para que este as legitime.
Os idealizadores desse “escape antropocêntrico” intencionalmente ignoram o fato de que nem toda manifestação cultural deve ou pode ser reconhecida como patrimônio cultural, pois estão fora desse campo de reconhecimento e valorização aquelas formas de criar, fazer e viver que atentem contra os direitos humanos, dentre os quais se incluem o meio ambiente ecologicamente equilibrado, cuja concretização é incompatível com práticas cruéis contra os animais, o que ocorre com a vaquejada.
A Constituição de 1988 tenta contemplar as mais diferentes visões de mundo, e representa um avanço na defesa do meio ambiente e dos animais não humanos, mas a balança antropocêntrica da justiça sustentada pelo guardião da Constituição não teve dúvidas, ou mesmo voto divergente, e reconheceu a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96, de 2017, no julgamento da ADI nº 5.728. Um verdadeiro retrocesso que traz novamente à cena um antropocentrismo egoísta e insensível, que enxerga valor apenas no humano.
Notas
1 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
2 Conferir o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário (RE) 153531.
3 Conferir o julgamento pelo STF das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADI de Santa Catarina (ADI 2514), do Rio Grande do Norte (ADI 3776) e do Rio de Janeiro (ADI 1856).
4 Conferir o julgamento pelo STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5995.
5 Conferir o julgamento pelo STF da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 640.