CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo analisar criticamente o sistema brasileiro de precedentes e seus reflexos sobre a coisa julgada nas relações tributárias de trato continuado. O ponto de partida foi a constatação de que a “jurisprudência lotérica” sempre foi um problema estrutural do sistema jurídico brasileiro, comprometendo a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais. Com o CPC/2015, buscou-se implementar um modelo de precedentes obrigatórios, no qual se tem dito que aproxima-se do stare decisis e da Common Law, mas a importação abrasileirada de institutos revelou-se problemática.
O estudo demonstrou que, no Brasil, os precedentes não se firmam por sua força argumentativa ou pela responsabilidade dos julgadores em garantir coerência e integridade ao Direito, mas sim por imposição normativa. O problema não está na ideia de precedentes em si, mas na forma como esse sistema tem sido utilizado pelas Cortes de Vértice. Ao invés de garantir previsibilidade, o modelo brasileiro transformou o STF e o STJ em verdadeiros produtores de normas, conferindo-lhes um poder que, na prática, os aproxima do legislador.
A maneira como tem sido compreendido o sistema de precedentes obrigatórios, ao invés de promover coerência e estabilidade, tem sido utilizado como um mecanismo de poder pelas Cortes Superiores. Sob a justificativa de uniformizar a jurisprudência, STF e STJ passaram a formular “teses jurídicas” vinculantes, que, muitas vezes, funcionam como normas gerais e abstratas, afastando-se do conceito tradicional de precedentes. Essa prática desvirtua a própria essência do Direito, uma vez que a vinculação a decisões anteriores deveria ocorrer pela força de sua argumentação e consistência, e não por uma imposição normativa.
Analisou-se a noção de paradigma e como sua alteração repercute nas concepções fundamentais sobre Direito, Estado e sociedade. Os problemas dos diversos paradigmas foram brevemente assinalados, adotando-se o pós-positivismo como premissa e estabelecendo o marco teórico como o Direito como integridade (Dworkin), o qual conduz a uma acepção substancial da decisão judicial que deve levar a uma única decisão correta. Essa ótica foi relacionada com o funcionamento do sistema judiciário brasileiro, que parece seguir uma perspectiva próxima ao realismo jurídico e a decisão concebida como ato de vontade. Apontou-se que há uma tendência a que se crie um “leviatã hermenêutico”, atribuindo às Cortes de Vértices a tarefa conclusiva da interpretação, apontando-se seus problemas.
A análise das Teses nº 881 e 885 do STF revelou um aspecto ainda mais preocupante desse fenômeno. Com base no entendimento de que decisões posteriores do STF podem fazer cessar a eficácia da coisa julgada em relações de trato continuado, rompeu-se um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. A lógica subjacente a esse raciocínio equipara o precedente judicial a uma lei nova, permitindo que um julgamento posterior elimine os efeitos de decisões transitadas em julgado.
Essa concepção não apenas esvazia a garantia constitucional da coisa julgada, mas também gera insegurança para contribuintes e empresas, que se veem à mercê de constantes reviravoltas jurisprudenciais. O argumento de que a mudança jurisprudencial deve prevalecer em nome da isonomia e da coerência do sistema ignora que a própria segurança jurídica também é um valor fundamental do ordenamento jurídico.
Além do aspecto normativo, a questão deve ser analisada sob uma perspectiva hermenêutica e teórica. A ascensão do neoconstitucionalismo e do decisionismo judicial transformou o papel dos tribunais, conferindo-lhes um protagonismo antes impensável. A interpretação constitucional passou a ser conduzida com base em princípios vagos e argumentos pragmáticos, muitas vezes sem o devido compromisso com a integridade do sistema jurídico. A ideia de que precedentes criam normas gerais e abstratas reforça essa tendência, permitindo que tribunais atuem como verdadeiros legisladores positivos.
A forma como o sistema jurídico brasileiro tem sido moldado para privilegiar a autoridade das Cortes Superiores em detrimento da coerência normativa é preocupante. O direito como integridade, conforme proposto por Dworkin, exige que as decisões judiciais sejam interpretadas dentro de um contexto sistemático, respeitando a estabilidade e a previsibilidade das normas jurídicas. Quando precedentes se tornam um instrumento de poder, ao invés de um mecanismo de coerência, perde-se a própria essência do Direito como prática interpretativa e argumentativa.
Diante desse cenário, conclui-se que o modelo atual de precedentes no Brasil carece de uma fundamentação mais sólida e de um compromisso real com a segurança jurídica. Para que o sistema de precedentes cumpra sua função adequadamente, é necessário que haja uma mudança na cultura jurídica, com um compromisso efetivo das Cortes Superiores com a coerência, a integridade e a estabilidade do ordenamento.
A cessação da eficácia tributária em relações de trato sucessivo não deve ser vista como normal ou como um avanço, mas como um sintoma de problemas profundos, que não foram enfrentados. Houve o enfretamento de um efeito do problema brasileiro, mas não de sua causa. Arvorar-se as Cortes Superiores como legisladores positivos não é uma opção possível no Estado Democrático de Direito. Além disso, se a segurança jurídica, aqui representada pela coisa julgada, continuar sendo tratada como um valor secundário, o próprio conceito de Estado de Direito será esvaziado, e o processo individualmente proposto pelo cidadão será apenas uma “brincadeira”, pois o que valerá mesmo será a “decisão definitiva” do editor da sociedade e “guardião da Constituição”. Lembre-se que o legítimo guardião da Constituição não é seu dono, mas seus depositário; ele deve protegê-la a aplica-la e não transformar em pretexto para veicular sua vontade.
O desafio, portanto, não está apenas na regulamentação dos precedentes, mas na reconstrução de um modelo que respeite a autonomia das decisões judiciais, sem transformar os tribunais superiores em leviatãs jurídicos que estabelecem novas normas no ordenamento jurídico. O problema, mais que de instrumento (ordenamento, regras e sistema de justiça) é cultural, e só será resolvido com alteração da postura de todos, inclusive das Cortes de Vértice, que devem entender que o Direito não é o que elas dizem que ele seja, e que todos, inclusive tribunais de sobreposição, têm direito e estão jungidos à estabilidade, coerência e integridade. Existem, sim, decisões judiciais que não condizem como Direito! Direito e decisão judicial não são sinônimos! O decido conforme minha consciência deve ser abandonado de uma vez por todas.
Ao final, concluímos que o caminho para um sistema de justiça mais sólido passa, necessariamente, pela reafirmação do valor da estabilidade jurídica e pelo resgate da verdadeira função dos precedentes: garantir coerência, e não instituir um novo modelo de instabilidade institucionalizada.
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