Capa da publicação Minissérie "Adolescência": ecos da inocência perdida
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Minissérie "Adolescência": ecos da inocência perdida

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A violência juvenil pode ser resposta psíquica à exclusão, ao machismo internalizado e à ausência de rituais simbólicos saudáveis. Como o bullying, a misoginia e o patriarcado moldam a adolescência?

(Imagem: Jamie Miller: O protagonista de 13 anos acusado de assassinar uma colega de escola. Briony Ariston: A psicóloga que analisa Jamie em um dos episódios mais tensos)


Essa cena, à luz da psicanálise, pode ser interpretada como uma manifestação da luta interna do adolescente entre controle e impulsividade, frequentemente vista nessa fase da vida. Quando ele declara "eu estou no controle", pode estar tentando reafirmar um senso de domínio sobre uma situação emocionalmente desafiadora ou sobre si mesmo. No entanto, o ato de jogar o objeto no chão demonstra justamente uma falha momentânea nesse controle, revelando um conflito interno entre seus desejos inconscientes, suas emoções e suas tentativas conscientes de se regular.

Do ponto de vista freudiano, isso poderia refletir a tensão entre o "ego", que busca manter a ordem e o equilíbrio, e o "id", que representa impulsos instintivos e muitas vezes descontrolados. Além disso, o objeto lançado no chão pode simbolizar a externalização de sentimentos reprimidos, como raiva, frustração ou ansiedade, que ele não consegue expressar de outra forma.

É uma cena rica para reflexão sobre o impacto das emoções e dos conflitos psíquicos no comportamento.


HUMANOS

O MEIO (SOCIEDADE)

O meio — valores ideológicos [religiosos, políticos, econômicos, pseudociências (darwinismo social e eugenia).

ESPÉCIE HUMANA

A espécie humana é ser biológico. Necessidade de alimentos, abrigo, meios de proteção pessoal, familiar, de quem gosta ou de quem é aliado, o que for necessário para o seu conforto, proteção, desejos (imaginação pura além da realidade material, ou imaginação com base na realidade material, o se adaptar, como voar, mergulhar nas profundezas, ticar estrelas)

A VIRILIDADE MASCULINA

A virilidade masculina, frequentemente associada à força, proteção e capacidade de prover, também é um elemento central nessas dinâmicas. Mulheres que reconhecem e valorizam essas características podem usar isso como parte de sua interação, reforçando o papel do homem como parceiro desejável.

Pesquisas sociológicas discutem como a virilidade masculina está frequentemente associada a características como força, proteção e capacidade de prover. Esses traços são historicamente valorizados em muitas culturas, especialmente em contextos onde o papel do homem como protetor e provedor é central. Estudos também analisam como fatores biológicos, como níveis de testosterona, influenciam comportamentos associados à virilidade, incluindo confiança e dominância. Esses traços podem ser percebidos como atraentes por mulheres em contextos de seleção de parceiros.

Entre adolescentes, o "provar" da masculinidade muitas vezes está ligado a demonstrações de força, coragem ou habilidades, seja em esportes, desafios ou até mesmo em interações sociais. Esse comportamento pode ser influenciado por normas culturais que associam masculinidade à virilidade e ao domínio. A pressão para se conformar a esses padrões pode ser intensa, especialmente em grupos masculinos.

A mudança cultural ao longo do tempo proporcionou oportunidades (igualdade além da formal, a material) para o gênero feminino participar de esportes tradicionalmente vistos como "masculinos", como luta livre, boxe, futebol e outros que exigem força física e competitividade. Essa inclusão não somente desafia estereótipos de gênero, mas também destaca qualidades como garra, coragem e determinação, que sempre foram características humanas, independentemente do gênero.

Historicamente, as mulheres sempre demonstraram força e resistência, como na agricultura. Também eram responsáveis, na maioria, pela coleta de frutas, raízes, sementes, nozes e outros alimentos vegetais. Como a coleta é uma tarefa que exige atenção aos detalhes e conhecimento sobre o ambiente, as mulheres tinham um papel central nesse aspecto. Embora a caça maior fosse geralmente associada aos homens, as mulheres também participavam da caça, principalmente de animais pequenos ou na captura de presas menores. Os homens construíam, geralmente, os abrigos mais pesados, as mulheres contribuíam para a montagem e manutenção de abrigos, além de cuidar das crianças e dos idosos, o que demonstrava uma grande resistência física e emocional.

Mesmo antes do sedentarismo, as mulheres desempenhavam funções que exigiam força, resistência, inteligência e organização, muitas vezes lidando com as condições ambientais mais desafiadoras, como o deslocamento constante e as mudanças climáticas. Assim, sua contribuição para a sobrevivência dos grupos humanos sempre foi fundamental.

O destaque atual dessas qualidades em competições esportivas reflete o reconhecimento do potencial feminino em todas as áreas, mostrando que habilidades como força e competitividade não pertencem exclusivamente a um gênero.

E que tal o perfume que “desperta paixões”? Sim, as publicidades exploram os “desejos inconscientes”. A bioquímica farmacológica faz também acontecer. O que impede homens e mulheres agarrarem-se nas vias públicas? Por exemplo, no documentário Hiper Mulheres.

O PATRIARCADO SEM PODER

Hiper Mulheres contém uma cena emblemática onde as mulheres da aldeia, no contexto do ritual Jamurikumalu, saem em um momento performático e simbólico para “buscar” os homens — e isso pode ser interpretado como uma encenação ritualizada de sedução ou convite sexual, mas não no sentido ocidentalizado da palavra, e sim nas tradições e mitologias próprias do povo Kuikuro.

Esse momento faz parte da cosmologia e da dinâmica simbólica da cerimônia, que envolve cantos, danças, atuações e inversões rituais de papéis. Não se trata de uma relação sexual explícita nem literal, mas sim de uma dramatização ritual de temas ligados à sexualidade, fertilidade, poder feminino e ancestralidade. As mulheres assumem papel ativo e simbólico. Há elementos de subversão simbólica das estruturas patriarcais usuais em muitas sociedades — aqui, as mulheres são protagonistas e lideram o espaço público e ritual.

No momento em que o coletivo é retirado da estrutura cotidiana e inserido num espaço de suspensão simbólica. As mulheres, ao cantar, tornam-se mediadoras entre o visível e o invisível. Um sentido de união e efervescência coletiva, especialmente entre as mulheres, cuja voz toma o centro, invertendo temporariamente o eixo patriarcal cotidiano. Os cantos e os gestos não são somente "folclore", mas repetem cosmologias, histórias e arquétipos femininos. A atuação torna-se uma renovação das forças vitais femininas da aldeia — o ritual não apenas marca a cultura, ele a reinscreve vivamente.

Do ponto de vista psicanalítico, o ritual pode ser lido como uma reintegração do feminino simbólico — um espaço onde o corpo da mulher, a voz da mulher e o desejo feminino encontram expressão cultural legítima. A própria organização do ritual evoca a função materna coletiva — onde a mulher é vista não apenas como reprodutora, mas como transmissora de cosmologias, mitos e linguagens.

Hiper Mulheres é um filme sobre o corpo que canta para não morrer. Sobre a comunidade que dança para não esquecer. Sobre a mulher que, mesmo doente, ainda move o mundo com sua voz. E sobre o tempo que, ao ser cantado, deixa de ser linha reta e se curva, se espirala, se renova.

Essa é uma das coisas mais tocantes e reveladoras em As Hiper Mulheres.

Não há conflito. Há cooperação ritual. Há diferença, sim — papéis distintos, funções diferentes — mas não há guerra. O masculino e o feminino não estão em oposição, estão em relação.

Enquanto no mundo ocidental contemporâneo vemos uma escalada de tensões entre movimentos como os “redpill” e as feministas — uma luta marcada por ressentimentos, disputas de poder, identidades feridas — no ritual Kuikuro vemos o oposto: a coexistência simbólica e complementar entre os gêneros.

No documentário Hiper Mulheres há o masculino como sustentação, não dominação. No ritual das hiper mulheres, os homens não tentam controlar o ritual feminino. Eles estão ali como apoio, como espectadores reverentes, e às vezes como instrumentistas que acompanham os cantos. Eles constroem o palco do sagrado — mas o centro é das mulheres. Isso é radicalmente diferente da lógica patriarcal que muitas vezes marca o Ocidente, onde o masculino histórico precisou reprimir, controlar ou apropriar-se do poder simbólico feminino (seja pela caça às bruxas, pela desvalorização das emoções ou pela exclusão da mulher do sagrado). Nos Kuikuro, o homem cede o centro em nome do coletivo. Ele reconhece o poder que emana das mulheres naquele momento. Isso não o diminui — ao contrário, o fortalece enquanto parte de uma totalidade.

Antropologicamente e psicologicamente, isso é riquíssimo. O feminino é fonte de saber, é agente do mito, é corpo cósmico — e isso é respeitado. Isso rompe com a tradição judaico-cristã que associou a mulher à queda, à tentação, à culpa (Eva, Pandora etc). Enquanto a mentalidade “RedPill” só se afirma atacando, desvalorizando e controlando o feminino (como se o sucesso masculino dependesse do fracasso da mulher), nas culturas indígenas como a dos Kuikuro, o masculino coexiste com o feminino em termos simbióticos. O canto feminino é público, é escutado, é valorizado. Não há um “medo” do que a mulher possa dizer ou representar. Enquanto o “feminino falante” no Ocidente sempre causou desconforto — da histeria freudiana até os ataques a figuras feministas.

Nos Kuikuro, a fala feminina é medicina, é rito, é legado.

A guerra de gêneros, ou “Guerra dos Sexos” (heteronormativos), no Ocidente, não é “natural”, nem inevitável. É histórica, construída, e pode ser desconstruída. As Hiper Mulheres é um lembrete vivo de que é possível uma relação entre homens e mulheres que não seja baseada em competição, controle ou medo. Mas em troca, respeito e reconhecimento simbólico mútuo. É isso que incomoda tanto: a existência de sociedades onde o poder feminino não é uma ameaça — mas uma dádiva. É importante falar sobre a mulher idosa no documentário.

Esse ritual, pedido por uma mulher idosa que se aproxima da morte, não é um espetáculo de vaidade feminina. É uma invocação do tempo. Uma reinscrição do mito.

É o feminino em sua potência simbólica máxima — cantando, dançando, resistindo. Ali, o feminino não precisa gritar para ser ouvido. E o masculino não precisa dominar para ser reconhecido. Cada um sabe de seu papel numa ordem simbólica que integra ao invés de separar. Isso é o que mais contrasta com o mundo “RedPill”, enquanto fora do ambiente das Hiper Mulheres os homens são ensinados a odiar o feminino que não controlam, nos Kuikuro, o homem participa do sagrado que é feminino — sem perder nada da sua própria força.

Talvez o problema do nosso tempo, conflituoso por construções ideológicas de divisões entre homens e mulheres, e que a mulher é culpada pela desgraça da humanidade — Eva comeu a maçã e Adão e Eva perderam o Paraíso — não seja o feminismo. Mas sim a ausência de rituais que nos ensinem como ser homem diante da potência do feminino.

E, principalmente, como ser mulher sem ter que se masculinizar para sobreviver — na reflexão, as publicidades, os filmes, para garantir uma “igualdade” entre homens e mulheres, as mulheres agem como os homens, a “pura testosterona”, pelo uso de símbolos, compensatórios, como Edward Bernays fez. Tais símbolos de “igualdade” está no hábito de fumar, de beber bebida alcoólica, de agir como fera enlouquecida por ter um homem que não deixou livre a passagem para ela.

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Essa falsa simetria entre os gêneros construída a partir de símbolos compensatórios — muitas vezes impostos pelas indústrias da publicidade, do entretenimento, da cultura de massa. E sim, Edward Bernays, o pai das relações-públicas e da manipulação simbólica de massas, está diretamente ligado a isso. Mas talvez o ponto mais delicado desta conversa seja esse: Como ser mulher — profundamente, ancestralmente mulher — sem ter que se masculinizar para sobreviver? Porque o que chamamos de “igualdade” hoje, muitas vezes não é integração simbólica. É somente imitação de um modelo masculino de poder, desejo e expressão.

Na ausência de rituais femininos coletivos, de sabedorias ancestrais, de escuta simbólica da mulher como corpo-templo, as campanhas publicitárias ofereceram outra saída. Uma saída com gosto de cigarro aceso e copo de uísque. Com slogans de “liberdade” colados na pele, mas sem raiz no simbólico. Foi assim que Edward Bernays, nos anos 1920, convenceu mulheres a fumar em público. Transformou o cigarro em símbolo fálico de emancipação. “Torches of freedom”, ele chamou.

E assim, o ato de fumar deixou de ser “masculino” — virou gesto político de afirmação feminina. Mas era só teatro. Era só manipulação simbólica de massa — o inconsciente coletivo feminino em busca de reconhecimento de sua dignidade, não menos, não mais.

O mesmo se repete hoje, quando vemos o feminino encenando uma masculinidade raivosa, testosterônica, como se o poder estivesse somente na força, no ataque, na negação do outro. Como se para ser mulher plena, fosse preciso performar o arquétipo do homem guerreiro — não o da mulher sábia, não o da curandeira, não o da voz ancestral. Nos filmes, nas séries, nas redes sociais, a mulher é forte quando grita, quando bate, quando revida. No entanto, o que se perdeu nisso tudo foi o espaço do feminino que cura, que gera, que canta para transformar — não para dominar.

As Hiper Mulheres nos devolve essa possibilidade, a mulher não precisa se masculinizar para ter poder. Porque seu poder não vem da imitação do outro, mas do enraizamento em si. Naquele ritual, as mulheres não precisam se provar, não precisam se equiparar.

Elas simplesmente são — e ao serem, sustentam o mundo. Essa é a verdadeira revolução simbólica: não a troca de papéis, mas a restauração do sentido profundo de cada um.


CRIMINALIDADE

Criminalidade Normal e a Perspectiva Sociológica

A “criminalidade normal” como algo que é aprendido e normalizado em determinados contextos culturais e históricos. Isso é uma referência à ideia de que certos comportamentos que, sob uma perspectiva moderna, podem ser considerados crimes ou aberrantes, na realidade podem ser parte do cotidiano de uma sociedade. O exemplo do Império Romano, onde a violência de jogar cristãos aos leões era uma forma de entretenimento, é um bom exemplo de como normas sociais e culturais determinam o que é considerado aceitável ou não, isto é, o que é crime?

A questão do sadismo recreativo é interessante. A violência como entretenimento ou como uma forma de "controle social" não é um fenômeno exclusivo do passado; ela também se reflete em muitas formas de consumo de mídia hoje, como filmes, videogames e outras formas de entretenimento que envolvem violência explícita. Esse "normalizar" da violência está, muitas vezes, ligado à construção de certos estereótipos culturais e à forma como as sociedades constroem a ideia do que é moralmente aceitável. Na “sublimação”, um dos mecanismos de defesa do ego (Repressão, Negação, Projeção, Racionalização, Deslocamento, Formação Reativa, Sublimação, Regressão, Compensação, Identificação, Introjeção, Isolamento, Anulação, Idealização, Clivagem), a canalização das energias emocionais, consciente ou inconsciente para um fato humano aceitável na sociedade.

Criminalidade Neurótica e o Patriarcado

A ideia de "criminalidade neurótica" remete a comportamentos que não só rompem com normas sociais e jurídicas, mas que também podem ser sintomáticos de uma distorção ou uma psicologia disfuncional, como no feminicídio. O feminicídio, como uma forma de violência extrema contra a mulher, muitas vezes é a expressão de uma defesa do ego masculino numa construção patriarcal. Isso está profundamente ligado à história da construção das identidades de gênero e à forma como os homens, em muitas culturas, foram educados para ver as mulheres como propriedades ou como seres subordinados.

O patriarcado não é apenas uma estrutura social que privilegia os homens em termos de poder político e econômico, mas também uma estrutura psicológica e cultural que molda os comportamentos dos indivíduos. Essa estrutura é reforçada por valores religiosos e simbólicos, como a ideia de que o homem é o ser principal ou superior, enquanto a mulher, em muitas narrativas, é vista como a responsável pela tentação ou queda (como no caso bíblico de Eva e a maçã). Isso cria um sistema de crenças profundamente enraizado que, para muitos homens, justifica ou naturaliza a violência contra as mulheres. A defesa da honra, para o crime de feminicídio, é o resultado de valores religiosos e simbólicos, como a ideia de que o homem é o ser principal ou superior, enquanto a mulher, em muitas narrativas, é vista como a responsável pela tentação ou queda

O Corpo e a Cultura

O que define a feminilidade — seja ela europeia, indígena ou trans —, é o ponto essencial das questões de gênero. A feminilidade não é uma essência fixa; ela é construída socialmente e varia enormemente de cultura para cultura. A maneira como as mulheres se vestem, adornam seus corpos, ou se comportam, é uma construção cultural que se reflete nos valores e nas normas de suas respectivas sociedades. Por exemplo. Temos o Kilt (saia de lã xadrez), o uso ocorre em cerimônias, casamentos, celebrações culturais e militares. O significado é a identidade nacional e símbolo dos clãs das Highlands. No sudeste asiático, a indumentária “Sarong / Sampot / Longyi”. É um tecido enrolado no corpo, amarrado na cintura. O uso ocorre na Indonésia, Malásia, Mianmar, Camboja e Tailândia. Nos EUA, no Brasil, na Europa, a indumentaria é uma “saia”. E a “saia” é usada por homens. Aliás podemos dizer que as “cangas”, usadas por mulheres nas praias, sob uma perspectiva antropológica e comparativa, sim, podemos dizer que sarong, sampot e longyi são tecidos retangulares amarrados ao corpo de maneira semelhante à canga de praia, mas com diferenças culturais, simbólicas e contextuais importantes. A “canga” é indumentária feminina para se usar nas praias. Porém fora inspiradas nas vestimentas afro-indígenas e adaptadas para os “civilizados de “arranha-céus”?

No século XX, com a urbanização das praias (Copacabana, Ipanema, Santos etc.), a moda praiana ganhou sofisticação. A canga surge como peça funcional, leve, tropical e “exótica”, mas agora reconfigurada para o olhar burguês e cosmopolita, em sintonia com o corpo feminino sensualizado. É vendida em butiques, estilizada com padrões gráficos, slogans turísticos ou padrões indígenas esteticamente apropriados. A canga é um exemplo de ressignificação cultural: elementos de culturas subalternizadas (indígena, africana) são adaptados e consumidos pelas elites urbanas. Ao ser incorporada na moda de praia, a canga perde parte do significado original e se adapta ao imaginário da mulher livre, bronzeada, urbana e sensual, valorizada no litoral brasileiro. É também um exemplo de hibridismo cultural e de como a moda traduz as tensões entre tradição e modernidade, periferia e centro, natureza e cidade.

A canga é símbolo do "tropicalismo civilizado" — um corpo feminino moldado entre o “natural” e o “urbanamente desejável”. Por isso, as pessoas devem pensar, pela “maiêutica socrática”, o que representa essa peça, além da função prática, para compreender a canga como símbolo híbrido entre culturas afro-indígenas e o ideal urbano de corpo feminino.

É importante observar que o Brasil fora “colonizado” — um romance de “a civilização chegou” —, da colonização, o corpo feminino negro e indígena como fetiche exótico nos relatos coloniais. A sensualização da mulher tropical como "selvagem domável". E o início da apropriação estética sem reconhecimento cultural. Além da apropriação cultural, o simbolismo do corpo feminino disponível à contemplação (mas controlado pelo olhar masculino e burguês — “Olha que coisa mais linda). A música “Garota de Ipanema” é praticamente a tradução sonora do olhar burguês e masculino sobre o corpo feminino tropical, especialmente aquele que se desloca livremente entre o mar e o concreto dos prédios.

A célebre frase da canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes:

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça,

É ela, menina, que vem e que passa...”

Parece, à primeira vista, um elogio romântico. No entanto, sob a lente da antropologia crítica e dos estudos culturais, revela-se como expressão do olhar objetificante e normativo sobre o corpo feminino, situado no espaço simbólico da praia — entre o “natural” e o “civilizado”.

A garota de Ipanema não fala, não interage, apenas “passa” — como se fosse parte do cenário. Ela é contemplada como coisa linda, mas essa “coisa” é um corpo — “cheia de graça”, no duplo sentido: estética e submissa. O sujeito poético da canção é masculino, e o corpo feminino está ali para ser visto, desejado, mas não sujeito de si.

Nos anos 1960, a praia carioca já havia se tornado símbolo da modernidade brasileira. A garota idealizada é jovem, branca, esguia, frequentemente associada à elite da zona sul — ou seja, um corpo racializado e classista. Ela representa o ideal de feminilidade tropical domesticada: natural, mas elegante; livre, mas comportada; sensual, mas contida.

A canga surge nesse mesmo contexto como símbolo de feminilidade tropical, moldável, “livre”, mas sempre dentro dos padrões estéticos vigentes. A mulher que usa canga está,ao mesmo tempo, expondo o corpo (como signo de liberdade sensual) e se cobrindo (como marca da decência na cidade). Como a garota de Ipanema, ela também “passa” — ela é o espetáculo da paisagem. A música, como a canga, compõe o imaginário nacional da mulher brasileira como corpo entre o prazer do olhar e a conformidade social. Esse corpo é tropical, porém burguês; é livre, porém moldado; é "cheio de graça", mas não de voz.

A MERCANTILIZAÇÃO DO EXÓTICO FEMININO, TURISMO SEXUAL E RESSIGNIFICAÇÃO DO CORPO TROPICAL

A partir dos anos 1960 e 70, com o fortalecimento da indústria do turismo no Brasil, o corpo feminino tropical — especialmente o corpo negro ou mestiço — passou a ser instrumentalizado como parte da propaganda estatal. A Embratur, órgão oficial de promoção do turismo, promoveu campanhas que associavam diretamente o Brasil ao erotismo das praias e das mulheres. Os cartões-postais vendiam imagens de nádegas femininas à beira-mar, cobertas parcialmente por cangas finas, biquínis ou até sem nada — como se o corpo da mulher brasileira fosse um cartão de visita da nação, um convite visual para o consumo estrangeiro.

Esse corpo era despido de subjetividade e cultura própria, tornava-se paisagem sexualizável, servia ao olhar masculino branco ocidental, marcado pela lógica do exótico, do primitivo e do sensual. Esse processo se intensifica com o turismo sexual, especialmente no Nordeste e nas grandes capitais litorâneas. O corpo feminino brasileiro — especialmente o da mulher pobre, negra ou mestiça — passa a ser associado à disponibilidade, à sensualidade e ao prazer sem culpa.

O CORPO RACIONALIZADO COMO CATARSE DA LIBIDO PATRIARCAL

Esse processo se intensifica com o turismo sexual, especialmente no Nordeste e nas grandes capitais litorâneas. O corpo feminino brasileiro — particularmente o da mulher negra, mestiça e pobre — passa a ser associado não apenas à sensualidade, mas à disponibilidade naturalizada, como se sua função social estivesse atrelada ao prazer alheio.

Esse imaginário tem raízes profundas nos processos colonizadores, nos quais as mulheres não europeias — africanas, indígenas e mestiças — foram historicamente tratadas como repositórios de libido dos homens europeus. Essa dinâmica reflete a dualidade moral típica da tradição patriarcal eurocêntrica, que construiu a mulher europeia burguesa como a esposa recatada, educada para a maternidade e a moral cristã, enquanto relegava às mulheres colonizadas o papel de objeto de saciedade sexual, desprovidas de humanidade plena.

Essa oposição moral remonta à lógica das sociedades cristãs e islâmicas patriarcais, nas quais a mulher respeitável é aquela que está sob a guarda masculina — seja do pai, do marido ou da Igreja — enquanto as mulheres de culturas “polígamas” (sejam poligínicas ou poliândricas) são vistas como “pervertidas”, fora do modelo de pureza sexual.

Ora, o homem burguês europeu — e também o homem não burguês que internalizou esse sistema eurocêntrico — precisava encontrar meios de extravasar sua libido, mesmo sob as restrições do casamento monogâmico. Atualmente são os sites pornográficos, as revistas pornográficas, as Baby Sugars — nesta, a escolha de uma que esteja dentro dos padrões de beleza estética feminina; um troféu.

Assim surgem os lupanares (bordéis) como espaço institucionalizado de catarse sexual: o homem podia ter relações extraconjugais desde que não deixasse de prover financeiramente sua esposa e seus filhos. Esse desejo burguês domesticado encontrava nas casas de prostituição, e mais tarde nas viagens a países tropicais, uma válvula de escape aceitável socialmente — mesmo sob a crítica formal da Igreja Católica. Afinal, a confissão religiosa e o arrependimento ritual serviam como “pagamento simbólico” pelo pecado, enquanto o sistema jurídico frequentemente respaldava até mesmo o direito marital à relação sexual forçada no casamento.

Portanto, a mulher tropical — com seus trajes leves, seus corpos sob o sol e sua presença nos cartões-postais e nas músicas — torna-se símbolo da catarse sexual da modernidade patriarcal. Não se trata apenas da sua imagem, mas da forma como o capitalismo moderno transforma o desejo masculino em mercadoria e o corpo da mulher racializada em território colonizável — seja pelo turismo, pela publicidade ou pela moral sexual camuflada de exotismo.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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