Introdução
O presente artigo analisa o caso de um juiz aposentado que, por décadas, utilizou uma identidade falsa, levantando questões complexas nas esferas penal, administrativa, civil e previdenciária. O magistrado, cujo nome verdadeiro seria José Eduardo Franco dos Reis, adotou o nome fictício de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, sob o qual obteve documentos oficiais, formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), foi aprovado em concurso público para juiz de Direito no Estado de São Paulo e atuou na magistratura por 23 anos, até sua aposentadoria em 2018. Em 2025, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) suspendeu administrativamente os pagamentos de sua aposentadoria, após a descoberta da fraude. O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou o magistrado por falsidade ideológica e uso de documento falso, crimes previstos nos arts. 299 e 304 do Código Penal.
Este artigo examina as possíveis penalidades nas esferas penal, administrativa e civil, a questão da manutenção da aposentadoria, o tratamento das contribuições previdenciárias vertidas durante o período de atuação como juiz e a eventual obrigação de devolver os valores recebidos como aposentadoria.
1. Penalidades nas Esferas Penal, Administrativa e Civil
1.1. Esfera Penal
O magistrado foi denunciado pelo MP-SP pelos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e uso de documento falso (art. 304 do Código Penal), em razão da apresentação de documentos falsos em situações como a compra de um veículo, a renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e a tentativa de obtenção de segunda via de RG em 2024. Cada um desses crimes é punido com reclusão de 1 a 5 anos e multa. Considerando que o réu é primário e que os crimes não envolveram violência, é provável que, em caso de condenação, as penas privativas de liberdade sejam convertidas em medidas alternativas, como prestação de serviços à comunidade ou pagamento de cestas básicas, conforme o art. 44 do Código Penal.
1.2. Esfera Administrativa
No âmbito administrativo, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional ( Loman, Lei Complementar nº 35/1979) prevê sanções disciplinares para magistrados, que incluem advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão (art. 42). Contudo, como o magistrado já está aposentado, a sanção mais plausível é a anulação de sua nomeação como juiz, com base no princípio da legalidade (art. 37 da Constituição Federal), uma vez que a investidura no cargo foi obtida por meio de fraude. A anulação do ato de nomeação implicaria a perda do direito à aposentadoria, pois o vínculo funcional seria considerado nulo ab initio. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admite a anulação de atos administrativos baseados em fraude a qualquer tempo, sem ofensa ao princípio da coisa julgada administrativa ( RE 598.099/MS).
1.3. Esfera Civil
Na esfera civil, o magistrado pode ser acionado para reparar danos causados ao Erário, especialmente em relação aos valores recebidos como aposentadoria. Caso a nomeação seja anulada, os pagamentos efetuados a título de aposentadoria serão considerados indevidos, sujeitando o magistrado à obrigação de restituí-los, acrescidos de correção monetária e juros, conforme o art. 876 do Código Civil e o art. 46 da Lei nº 8.112/1990 (aplicável por analogia).
2. Manutenção da Aposentadoria
A manutenção da aposentadoria é improvável. O TJ-SP já suspendeu cautelarmente os pagamentos, sinalizando a gravidade das acusações. A jurisprudência brasileira é rigorosa em casos de fraude em concursos públicos, especialmente quando há falsificação de documentos. Se a nomeação for anulada, a aposentadoria será automaticamente cancelada, pois depende da regularidade do vínculo funcional.
Em um cenário hipotético e improvável de manutenção da aposentadoria, ela seria registrada no nome verdadeiro do magistrado, José Eduardo Franco dos Reis, e não no nome falso, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece direitos adquiridos sob identidade fraudulenta. Contudo, dada a natureza da fraude, é difícil vislumbrar tal desfecho.
3. Tratamento das Contribuições Previdenciárias
Durante os 23 anos de atuação como juiz, o magistrado verteu contribuições ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) do Estado de São Paulo, gerido pela São Paulo Previdência (SPPREV), sob o nome falso. Em caso de anulação da nomeação, essas contribuições não terão validade no RPPS, pois foram feitas em um contexto de vínculo funcional nulo. Duas possibilidades se apresentam:
Devolução das contribuições: O magistrado pode pleitear a restituição das contribuições vertidas, corrigidas monetariamente, com base no art. 149 da Constituição Federal e na jurisprudência que veda o enriquecimento ilícito do Estado.
Transferência para o INSS: Teoricamente, as contribuições poderiam ser transferidas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para uma aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sob o nome verdadeiro. Contudo, isso exigiria um processo administrativo ou judicial para reconhecer o tempo de serviço e regularizar a identidade, dada a complexidade da situação.
O aproveitamento no INSS é uma possibilidade, mas dependeria de decisão favorável das autoridades competentes e da boa-fé das instituições envolvidas.
4. Devolução dos Valores Recebidos como Aposentadoria
Caso a nomeação seja anulada, é provável que o magistrado seja obrigado a devolver os valores recebidos como aposentadoria entre 2018 e 2025, estimados em aproximadamente R$ 3,95 milhões. A devolução seria exigida com base no princípio da legalidade e na vedação ao enriquecimento sem causa. Dois cenários são possíveis:
Devolução integral: O magistrado seria obrigado a restituir todo o montante recebido, corrigido monetariamente e acrescido de juros.
Devolução parcial: Poderia haver compensação com as contribuições vertidas ao RPPS, de modo que o magistrado restituísse apenas a diferença entre o que recebeu e o que contribuiu.
A ausência de devolução só seria cogitada em hipóteses excepcionais, como o reconhecimento de boa-fé, o que é improvável dada a natureza dolosa da fraude. O prazo prescricional para a cobrança seria de 5 anos, conforme o Decreto nº 20.910/1932, limitando a restituição aos valores recebidos nos últimos 5 anos antes da suspensão dos pagamentos.
Conclusão
O caso do juiz que utilizou uma identidade falsa por décadas é emblemático e levanta questões jurídicas de grande relevância. As penalidades nas esferas penal, administrativa e civil são severas, com destaque para a provável anulação da nomeação e a consequente perda da aposentadoria. As contribuições previdenciárias vertidas poderão ser devolvidas ou, em tese, aproveitadas no INSS, mas com dificuldades práticas significativas. Finalmente, a devolução dos valores recebidos como aposentadoria é quase certa, salvo em cenários excepcionais.
Este caso reforça a importância da integridade no serviço público e a necessidade de rigor na apuração de fraudes, especialmente em cargos de tamanha responsabilidade como a magistratura. O desfecho dependerá das decisões do TJ-SP e do Judiciário, mas o princípio da legalidade e a proteção ao erário público tendem a prevalecer.