Por mais que o slogan “America First” pareça ultrapassado, o protecionismo trumpista continua vivo e fazendo estragos. Agora embalado em nova roupagem eleitoral, o velho projeto de tarifas punitivas ressuscita nos Estados Unidos e coloca o Brasil novamente no centro de uma equação geopolítica perversa: retaliar ou se submeter?
A falsa simetria da reciprocidade comercial
A mais recente ameaça de um “tarifaço” contra o aço e o alumínio brasileiros, articulada sob o discurso de defesa da indústria norte-americana, escancara uma assimetria incômoda nas relações comerciais internacionais. Desde 2018, sob o amparo da Seção 232 do Trade Expansion Act (1962), os EUA passaram a impor tarifas com fundamento em “segurança nacional”, ainda que os produtos atingidos não representassem qualquer ameaça real. Em março daquele ano, Donald Trump impôs tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio, atingindo diretamente o Brasil (maior exportador de aço semiacabado para os EUA na época).
A retórica da “reciprocidade”, usada por Trump e repetida em sua pré-campanha de 2024, é, na melhor das hipóteses, mal compreendida; na pior, profundamente hipócrita.
A reciprocidade como discurso vazio
O princípio da reciprocidade tem, de fato, assento no direito internacional e está presente em diversos acordos da OMC, como o GATT 1994 (artigos I, II e XXVIII), mas também é reconhecido no direito brasileiro, sobretudo no artigo 4º da Lei nº 9.019/95, que trata de medidas de defesa comercial. No entanto, reciprocidade com base em quê? Em termos objetivos de competitividade? Em estrutura tributária? Ou no calendário eleitoral de um candidato?
O que se observa é o uso político e arbitrário de medidas tarifárias, driblando a Organização Mundial do Comércio, cuja instância de apelação está paralisada desde 2019, justamente por bloqueios promovidos pelos próprios EUA. Isso mina a previsibilidade das regras multilaterais e promove uma volta ao bilateralismo coercitivo, onde economias emergentes como a brasileira têm menos margem de manobra.
O Brasil reage
Diante das ameaças, o Brasil acena com a chamada Lei da Reciprocidade. Trata-se de um instrumento legítimo, mas que não responde à pergunta essencial: qual é o nosso projeto de política comercial? O presidente Lula anunciou que sancionará a Lei da Reciprocidade Econômica, aprovada pelo Congresso em resposta às tarifas impostas pelos Estados Unidos. Ele destacou que o Brasil não aceitará medidas unilaterais de outros países, reforçando a soberania nacional. Em recente balanço comercial, os EUA registraram um superávit de US$ 7 bilhões em serviços com o Brasil.
Temos agido de maneira reativa, não estratégica. A recente resposta do Itamaraty que menciona “retaliações proporcionais” pode até ter apelo simbólico, mas sem uma estratégia comercial de longo prazo, capacidade institucional de negociação e força diplomática coordenada com parceiros regionais, é pouco mais que um gesto performático.
Uma crítica à inércia brasileira
O Brasil precisa romper com uma postura reativa, hesitante e fragmentada em relação ao comércio internacional. A política comercial, por aqui, segue tratada como assunto secundário, quando deveria ser eixo estruturante da política de desenvolvimento.
Sem uma presença assertiva nos fóruns internacionais, como a OMC, a ALADI, o Mercosul e os novos espaços plurilaterais (ex.: IPEF, CPTPP), ficamos à margem da reconfiguração das cadeias globais de valor.
Como lembra Rubens Ricupero, “a diplomacia comercial não é apêndice da política externa, mas seu coração econômico” (RICUPERO, A diplomacia na construção do Brasil, 2017). Sem coordenação entre Itamaraty, MDIC, ME e setor produtivo, continuaremos a reagir de forma episódica, sempre em desvantagem.
Protecionismo não se combate com improviso
O novo protecionismo norte-americano é um alerta. Ele revela as fragilidades de um sistema multilateral em crise, mas também expõe o despreparo dos países que ainda não compreenderam que política comercial é política de Estado, não apenas uma pauta técnica ou emergencial.
Reciprocidade exige visão estratégica, articulação internacional e fortalecimento institucional. O Brasil pode e deve defender seus interesses. Mas retaliação sem rumo, sem projeto, é só barulho de panela vazia.
Referências e Recomendações
Organização Mundial do Comércio. www.wto.org
GATT 1994, especialmente Art. I (NMF), II (Concessões Tarifárias) e XXVIII (Modificação de Concessões).
Lei nº 9.019/95 (Medidas antidumping e compensatórias).
Decreto nº 1.488/95 (Regulamentação da Lei da Reciprocidade).
Trade Expansion Act, Seção 232 – EUA.
RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016. Versal, 2017.
JAGUARIBE, Hélio. O Brasil e a inserção internacional: ensaios de política externa. Civilização Brasileira, 2001.