Conclusão
A trajetória da cannabis medicinal no Brasil não se resume a mudanças nas leis, mas envolve algo mais profundo: um apagamento intencional promovido pelo Estado e pela sociedade. A criminalização da planta, herdada de modelos internacionais sem lastro científico, construiu um cenário de silêncio e punição que marginalizou o uso terapêutico e impediu que ele fosse reconhecido como política de saúde. A partir dos anos 1930, o Brasil passou a adotar uma postura repressiva e excludente em relação ao uso da cannabis, pois em vez de considerar as evidências científicas que já apontavam os benefícios dos canabinoides, o país ignorou essas informações e escolheu um caminho de criminalização, dificultando ainda mais a vida dos pacientes.
Mesmo com todo o histórico de repressão, aos poucos o cenário começa a mudar, apesar da evolução ainda tímida e irregular, mas já é visível em alguns pontos. O aumento das ações judiciais, a concessão de salvo-condutos para cultivo doméstico, o debate em torno da regulação e as iniciativas de pesquisa pública indicam que o tema deixou de ser tabu absoluto. A atuação do Poder Judiciário, embora limitada e casuística, tem oferecido alguma proteção a pacientes que, até então, eram tratados como criminosos por tentarem garantir sua saúde.
Ainda assim, depender do Judiciário como porta de entrada para o cuidado não é solução justa, nem eficaz. A judicialização do acesso à cannabis revela, na verdade, o colapso de um modelo estatal que não oferece respostas consistentes onde deveria.
O caminho para superar esse impasse passa, necessariamente, pela formulação de uma política pública de saúde que reconheça a cannabis como medicamento. Isso exige uma legislação clara, técnica e acessível; exige que a Anvisa, o Ministério da Saúde e o Congresso assumam suas responsabilidades sem se esconderem atrás do discurso moralista ou do medo político. Mas exige, acima de tudo, escuta: escuta dos pacientes, das famílias, dos profissionais de saúde que vêm há anos enfrentando o preconceito institucional para garantir dignidade no cuidado.
Regulamentar o uso medicinal da cannabis no Brasil vai muito além de um ajuste técnico ou legal, é um ato de justiça. É uma reparação histórica, porque resgata práticas de cuidado que vêm de culturas ancestrais, que foram apagadas pelo discurso proibicionista. É uma reparação social, porque reconhece a dor dos pacientes que esperaram por anos por um tratamento digno, muitas vezes enfrentando barreiras legais, burocráticas e financeiras. E é uma reparação ética, porque confronta um sistema que, por décadas, ignorou a conexão entre saúde e liberdade, negando às pessoas o direito de escolher o próprio tratamento.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. STJ autoriza cultivo de cannabis para fins medicinais. Brasília: EBC, 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-11/stj-autoriza-cultivo-de-cannabis-para-fins-medicinais. Acesso em: 10 abr. 2025.
B ARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 1–18, 2011. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/3953/2742. Acesso em: 25 mar. 2025.
B ATISTELLA, Paulo. STJ tem alta exponencial de pedidos de salvo-conduto para plantio de maconha. Consultor Jurídico, 07 nov. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-07/stj-tem-alta-exponencial-de-pedidos-de-salvo-conduto-para-plantio-de-maconha/. Acesso em: 10 abr. 2025.
C ARLINI, Elisaldo Luiz de Araújo. A história da cannabis como medicamento: uma revisão. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 153–157, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbp/a/ZcwCkpVxkDVRdybmBGGd5NN. Acesso em: 11 abr. 2025.
C INTRA, Caio Henrique de Moraes. O uso medicinal da cannabis e o conflito entre direitos e normas. Revista Juris UniToledo, Araçatuba, v. 4, n. 1, 2019. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Rev-Juris-UNITOLEDO_v.4_n.1.09.pdf. Acesso em: 10 abr. 2025.
G ASPAROTTO, Fabiano B.; GAMARRA, Camila J. A influência do Estado e os dilemas da democracia brasileira no uso medicinal da cannabis. Revista Orbis Latina, Foz do Iguaçu, v. 8, n. 1, p. 1-15, 2018. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/orbis/article/view/2170. Acesso em: 10 abr. 2025.
K AZMIERCZAK, Luiz Fernando; COSTA, Leonardo Bocchi; CORREIA, Carla Graia. Judicialização do acesso à cannabis medicinal no Brasil: o paradoxo do proibicionismo no controle de drogas e a efetivação do direito à saúde. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 14, n. 2, p. 55-76, 2024. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/8816. Acesso em: 10 abr. 2025.
M EDICINASA. O futuro do Cannabis no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. São Paulo, 2025. Disponível em: https://medicinasa.com.br/futuro-cannabis/. Acesso em: 10 abr. 2025.
O LIVEIRA, Roberta Viegas. A legalização do canabidiol no sistema jurídico brasileiro. Revista de Direito da Unigranrio, Duque de Caxias, v. 9, n. 1, 2016. Disponível em: https://publicacoes.unigranrio.edu.br/rdugr/article/download/5925/3010/15398. Acesso em: 10 abr. 2025.
Q UANTI. A regulamentação da cannabis medicinal no Brasil: marcos legais e avanços recentes. São Paulo, 2024. Disponível em: https://quanti.com.br/a-regulamentacao-da-cannabis-medicinal-no-brasil-marcos-legais-e-avancos-recentes/. Acesso em: 10 abr. 2025.
R EUTERS. Brazil agriculture agency plans long-term research into cannabis cultivation. Londres, 12 fev. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/markets/commodities/brazil-agriculture-agency-plans-long-term-research-into-cannabis-cultivation-2025-02-12/. Acesso em: 10 abr. 2025.
S ILVA, Emily Thalia Teixeira da; ALMEIDA JUNIOR, Luiz Domingues de. Uso medicinal da Cannabis sativa L. (Cannabaceae): aspectos biológicos e a legislação no Brasil. Revista Fitos, Rio de Janeiro, v. 16, n. esp., p. 1-16, 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/365269293_Uso_medicinal_da_Cannabis_sativa_L_Cannabaceae_aspectos_biologicos_e_a_legislacao_no_Brasil. Acesso em: 10 abr. 2025.
S OARES, Milena Karla. Ignorância e políticas públicas: a regulação de cannabis medicinal no Brasil. Boletim de Análise Político-Institucional, Brasília, n. 24, 2020. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10345/1/bapi_24_art5.pdf. Acesso em: 10 abr. 2025.
V IDOTTO, Cássio Herberts. O habeas corpus preventivo como instrumento descriminalizador do cultivo de cannabis sativa com fins medicinais. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228670. Acesso em: 10 abr. 2025.
Z UARDI, Antonio Waldo. History of cannabis as a medicine: a review. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 153–157, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbp/a/ZcwCkpVxkDVRdybmBGGd5NN. Acesso em: 10 abr. 2025.
Abstract: This article analyzes the evolution of cannabis law in Brazil, focusing on the legal reconstruction of the medicinal use of cannabis in the context of its historical criminalization and institutional erasure of its therapeutic value. The research is based on documentary and doctrinal analysis of the normative trajectory of the substance, addressing the impact of drug policy on regulation and the obstacles faced by patients and healthcare professionals. The study also examines judicialization as an alternative pathway to treatment access, especially through preventive habeas corpus, and discusses recent court decisions and public research initiatives that suggest a possible shift away from the prohibitionist model. It concludes that the lack of a specific legal framework compromises equitable access to cannabis-based treatments, and that public policies grounded in scientific evidence and aligned with constitutional fundamental rights are urgently needed.
Key words: Medicinal cannabis. Right to health. Judicialization. Public policy. Habeas corpus.