4 PARÂMETROS PARA ATUAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL EM CASOS QUE ENVOLVAM PESSOA COM TRANSTORNOS MENTAIS OU EM SURTO PSICÓTICO
Trazemos algumas situações possíveis de ocorrerem envolvendo investigados em situação de surto psicótico, que devem ser consideradas pela Polícia Judiciária em sua atuação. Para tanto, levamos em consideração a questão da duração do surto psicótico. Não é objeto desse artigo adentrar em questões de técnica psiquiátrica, acerca da duração do surto psicótico, que pode durar de minutos a meses. Os surtos psicóticos que nos interessam nesse artigo são os que impactam em questões de segurança, quando o paciente coloca a si ou a outros em situação de risco. Por isso, tratamos mais de surtos psicóticos breves10, que são caracterizados pela presença de sintomas psicóticos como delírios e alucinações, porém dentro de um episódio autolimitado de curta duração.
A pessoa pode apresentar um ou mais sintomas psicóticos, como: delírios, alucinações, fala desorganizada, comportamento desorganizado e catatonia. É comum que a pessoa apresente também dificuldades cognitivas e dificuldades de regulação emocional, apresentando reações emocionais intensas e desproporcionais. O episódio pode ocorrer em qualquer idade, mas é mais comum que seja entre os 20 e 30 anos. Além disso, apesar de se tratar de um episódio de curta duração, os sintomas podem ser tão intensos que a pessoa pode representar risco para os outros e para si mesma, necessitando tratamento urgente.
Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), consta como “transtorno psicótico agudo”, sob o código F2311.
Trazemos a definição para adentrar nos temas abaixos, relacionados ao fim do surto ou a sua minoração. Ou seja, quando usamoos a expressão SURTO JÁ OCORREU, estamos delimitando o período da fase de surto em que o agente colocou a si ou a terceiro em risco direto e iminente, ou seja, que está em estado de excitação. Tal estado pode durar bastante tempo ou minorar, deixando o agente em estado de catatonia, por exemplo, quando já estará mais calmo, permitindo a ministração de medicamentos ou outras técnicas.
Vamos às situações:
4.1) Surto já ocorreu, e, durante esse, o agente praticou atos típicos, não estando mais em situação de flagrante delito.
Nesse caso, a Polícia Civil toma conhecimento do crime por registro de Boletim de Ocorrência pela vítima, ou instaura o Inquérito Policial de ofício. Deverá, nas providências preliminares, ouvir as vítimas (se possível), levantar aspectos relacionados à materialidade do crime (exame de corpo de delito, laudo cadavérico, perícia em objetos destruídos etc). Durante a oitiva da vítima, testemunhas e informantes, levantar informações sobre a saúde mental do investigado, descrevendo nos relatórios e peças a forma de sua conduta e se durante a prática do crime havia indícios de que estivesse em surto. Caso positivo, requisitar ao CAPS de referência e parentes próximos prontuários de atendimento médico, indicando se é acompanhado, se faz uso de remédios controlados e se há periculosidade concreta, o que indicaria a necessidade de internação involuntária, especialmente se houve a recomendação médica.
Caberia à Polícia Civil possíveis atos, dependendo do caso concreto:
a) requisitar medidas protetivas de urgência, com base no artigo 22 da LMDP, requerendo a fixação de medidas também a serem aplicadas ao investigado, como a obrigação de se submeter a tratamento médico e psiquiátrico;
b) requerer a decretação de prisão preventiva, caso haja elementos concretos para tanto, indicando, em todo caso, a situação de psicopatologia, acaso produzida nos autos, já que tal situação será considerada posteriormente em sede de incidente de insanidade mental e eventual aplicação de MEDIDAS DE SEGURANÇA PROVISÓRIAS, com encaminhamento a hospital psiquiátrico ou outra entidade adequada;
c) requerer a instauração de incidente de insanidade mental, com ou sem pedido de aplicação de medida de segurança temporária, dependendo do crime praticado e a periculosidade concreta, nos termos do artigo 149, § 1º, do Código de Processo Penal;
d) encaminhar cópia dos autos ao Ministério Público, para atuação civel, especialmente para que seja requisitada a INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DO PACIENTE, de natureza civil, sem prejuízo do acompanhamento da investigação criminal.
Acerca da possibilidade de aplicação de MEDIDA DE SEGURANÇA PROVISÓRIA, o Conselho Nacional de Justiça, CNJ, determinou, na Resolução Nº 487 de 15/02/2023, que:
Art. 13. A imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS, enquanto necessárias ao restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da Raps.
§ 1º A internação, nas hipóteses referidas no caput, será cumprida em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os HCTPs ou equipamentos congêneres, assim entendidas aquelas sem condições de proporcionar assistência integral à saúde da pessoa ou de possibilitar o exercício dos direitos previstos no art. 2º da Lei n. 10.216/2001.
Os tópico levantados meras orientações, que não afastam outras providências, sempre a depender do caso concreto. Mas é importante que o treinamento a agentes de Polícia Civil inclua protocolos a serem adotados em investigações envolvendo surtos psicóticos. Em tais protocolos e treinamentos, o policial deverá compreender que a atuação da Polícia Judiciária não se esgota na questão meramente criminal, já que, dentro de determinado contexto, especialmente em questão de violência familiar envolvendo pessoa com psicopatologia, a atuação criminal é excepcional.
Vítimas de agentes em surto psicótico, principalmente familiares, tendem a, ou não registrar as ocorrências, ou, quando registram, assinam termo de não representação criminal ou se retratam da representação apresentada, nos casos comuns de crimes de ação penal condicionada à representação da vítima, como ameaças, lesões leves, dano simples etc. Sem a representação criminal, o procedimento criminal será arquivado, e o agente, sem o devido acompanhamento, certamente voltará a ter novos surtos, com consequências que tendem a ser piores, como meras ameaças escalando para homicídios consumados ou tentados. Por isso é importante o trabalho coordenado entre a Polícia Judiciária, as entidades de saúde mental (CAPS) e o Ministério Público.
4.2) Surto ocorreu e durante esse período o agente praticou atos típicos estando em flagrante delito.
Essa é a situação mais comum envolvendo casos de agentes em surtos psicóticos. A vítima ou terceiros, que estejam sendo atingidos por atos violentos praticados por agente em surto, comunicam o fato, em regra, à Polícia Militar, que vai até o local e contém o agressor (agente), conduzindo-o, em seguida, para a Delegacia de Polícia, onde o Auto de Prisão em Flagrante (APF) é lavrado.
A atuação padrão da Polícia Civil é verificar se realmente é o caso de lavratura de auto de prisão em flagrante, para comunicação ao Juiz de Garantias, que realizará, dentro de 24hs, a audiência de custódia, para fins de homologar a prisão, relaxar o flagrante, acaso ilegal, conceder a liberdade provisória ou decretar a prisão preventiva, nas circunstâncias previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal.
A lavratura de APF passa, em regra, pela produção dos seguintes atos: a) oitiva dos condutores, ou seja, dos Policiais Militares que efetuaram a prisão, com suas circunstâncias; b) oitiva de vítima, sendo possível; c) interrogatório do autuado (o agente preso); d) juntada de provas materiais mínimas (imagens, documentos, vídeos, laudos periciais, exame de corpo de delito etc.); e e) relatório das peças com comunicação à autoridade judiciária, Ministério Público e Defensoria Pública.
A autoridade policial (Delegado de Polícia), naturalmente, ao produzir as provas preliminares acima, identificará se se trata de possível inimputável ou semi-imputável, ou se os fatos criminosos decorreram de surto psicótico, mesmo que já encerrado. Deverá verificar se ainda há necessidade de intervenção de equipes de saúde, e, havendo, deverá proceder à comunicação imediata a entidades psicossociais (CAPS, em regra), verificando se o autuado usa remédio controlado, e se a família pode auxiliar na ministração de tais medicamentos.
Aqui uma questão técnica a ser observada: o crime é definido, classicamente, como sendo FATO TÍPICO, ILÍCITO e CULPÁVEL. É uma espécie de QUEBRA-CABEÇAS, onde o agente (pessoa que pratica o crime) só poderá ser punido se o sistema repressor completar a junção de todas as peças. FATO TÍPICO é dividido em quatro aspectos: conduta (ato humano), resultado (jurídico ou natural), nexo de causalidade (a relação entre a conduta e o resultado) e tipicidade estrita (o fato tem que ser previsto em lei como crime). FATO ILÍCITO é o fato praticado sem justificativa legal, que ocorre, por exemplo, quando o agente pratica o fato típico em manifesta situação de legítima defesa (por exemplo, lesionando pessoa que lhe estava agredindo). E FATO CULPÁVEL é a exigência de que o agente (autor do fato típico e ilícito) tenha consciência do caráter ilícito do fato, por exemplo.
A autoridade policial, ao receber o autuado, deverá analisar se os dois aspectos da classificação acima estão presentes. Verificando que os fatos narrados não são fatos típicos ou que o autuado praticou o fato sob manifesta causa de exclusão de ilicitude (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou estado de necessidade), não lavrará o flagrante, colocando imediatamente o autuado em liberdade, se este estiver sob sua tutela. Por outro lado, não cabe ao Delegado de Polícia a análise acerca da CULPABILIDADE, ou seja, do terceiro elemento da classificação do crime.
Expliquemos melhor esse ponto: ao receber um autuado e verificando que há indícios de que esse tenha agido em surto psicótico, sem consciência da ilicitude do seu ato, deverá, se preenchidos os demais requisitos (fato típico e ilícito), lavrar o auto de flagrante delito, podendo, como já citado anteriormente, requerer a instauração de incidente de insanidade mental, quando a culpabilidade será analisada. Estamos resumindo a discussão sobre culpabilidade, como é óbvio, apenas aos casos de inimputabilidade e semi-imputabilidade, já que os demais aspectos, como coerção moral irresistível, inexigibilidade de conduta diversa etc., são estranhos ao presente trabalho.
O principal ponto levantado acerca dessa situação é a necessidade da autoridade policial documentar toda a ocorrência, indicando a motivação do crime, que é um dos elementos da CONDUTA. Geralmente, a partir da documentação da motivação, chega-se a referências relacionadas à psicopatologia e eventuais surtos psicóticos, entendo, inclusive, quais os GATILHOS que geraram o surto. Essas informações serão essenciais para a análise por parte do Juiz de Garantias, Ministério Público e para a defesa técnica, servindo de baliza, também, para o acompanhamento das equipes de saúde na fase pós surto.
4.3) Surto ainda está ocorrendo e a Polícia Judiciária é acionada.
Aqui, o surto ainda está ocorrendo. Fazemos remissão ao afirmado acerca da duração do surto, deixando claro que estamos delimitando o surto ao período de excitação ou reação violenta, que exige, em regra, a atuação das forças de segurança. Como algumas situações de surto duram horas ou dias, é possível até mesmo que a Polícia Militar, após prender o agente em flagrante, o entregue em delegacia de polícia para lavratura de APF ainda nesse estado. Em ocorrendo isso, a autoridade policial deverá encaminhar, imediatamente, o preso para nosocômio, e, não havendo vaga para internação adequada, isolá-lo em lugar mais seguro possível, seja para si ou outrem, evitando, sempre que possível, o uso de algemas e o isolando de outros presos.
É possível que a Polícia Judiciária seja notificada para atuar, ainda na residência do agente, sendo que, nesse caso, deve seguir todas as orientações aplicáveis à polícia ostensiva.
Por fim, é possível que o surto impeça a apresentação do autuado a audiência de custódia. A citada audiência deverá ser realizada dentro de 24 horas da prisão e, como o surto poderá durar mais tempo que esse prazo, mesmo que minorado (quando o agente sai do estado de excitação e passa ao estado de catatonia, com ou sem medicação), tal ato poderá ser prejudicado.
Entendemos que, mesmo nessa situação, a custódia deverá ser realizada, servindo o ato para que Juiz de Direito, Ministério Público e defesa acompanhem a situação, fazendo os requerimentos e determinações de praxe, como possível aplicação de medida de segurança temporária, requerimento de encaminhamento a CAPS etc.
Essa é a determinação do Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução Nº 487 de 15/02/2023, que dispõe: Art. 4º Quando apresentada em audiência de custódia pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial identificados por equipe multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, caberá à autoridade judicial o encaminhamento para atendimento voluntário na Raps voltado à proteção social em políticas e programas adequados, a partir de fluxos préestabelecidos com a rede, nos termos da Resolução CNJ n. 213/2015 e do Modelo Orientador CNJ.
Por fim, recomendamos que, ao ser determinado a soltura do agente autuado, ou por relaxamento da prisão em flagrante, por ilegalidade, ou por ausência de requisitos para a decretação da prisão preventiva, que a autoridade policial entregue o agente a pessoa da família, para que o acompanhe nos estabelecimentos de saúde adequados.
Para concluir esse tópico, lembramos que a atuação da Polícia Civil em casos envolvendo transtornos mentais exige sensibilidade e conhecimento específico. É fundamental que os policiais sejam treinados para identificar sinais de surto psicótico e entender as implicações legais e éticas relacionadas à saúde mental. O objetivo deve ser sempre garantir não apenas a segurança pública mas também proteger os direitos dos indivíduos envolvidos, promovendo intervenções adequadas que priorizem cuidados médicos quando necessário.