Parâmetros para elaboração de protocolos de atendimento policial em ocorrência com paciente em surto psicótico

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13/04/2025 às 22:03
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5 CASUÍSTICA ACERCA DA INTERVENÇÃO POLICIAL EM CASOS DE SURTOS PSICÓTICOS

O objetivo do presente artigo é apenas trazer alguns parãmetros a serem considerados na elaboração de protocolos de atendimento de ocorrências envolvendo situações de surto psicóticos ou uso imoderado de drogas, lícitas ou ilícitas. As ocorrências com maiores chances de resultarem em tragédias, como morte ou lesão grave de policiais, vítimas ou do agressor, são dessa natureza.

O grande problema que verificamos, nessa questão, é a ausência de protocolo de atuação por parte das Polícias Militares e demais forças de segurança. E quando existem tais protocolos, costumam ser lacônicos ou meramente proibitivos, informando o que não pode ser feito, mas omitindo o objeto básico do protocolo, que é exatamente informar o que pode ser feito em cada situação teoricamente encontrada. A omissão não é permitida ao Policial, que tem o dever objetivo de atuar, conforme expressa determinação do artigo 301 do Código de Processo Penal (Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.).

A ausência de protocolos, a sua insuficiência e o treinamento inadequado, gera respostas incorretas por parte das forças de segurança, que, não raras vezes, usam de força desproporcional que o caso requer.

Visando dar respostas a essa omissão, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 958/2412, que estabelece normas gerais para abordagens policiais humanizadas a pessoas em crise de saúde mental. O texto determina que a abordagem policial de indivíduos acometidos, temporariamente ou não, por transtorno mental que prejudique sua autonomia, especialmente se em risco de morte ou colocando outra pessoa em risco, deverá ser segura, vigorosa e rápida, preservando a vida e a integridade física. O uso da força deverá ser diferenciado, com prioridade para a negociação, evitando ao máximo o uso de força letal.

O Projeto de Lei é, eminentemente, principiológico, mas, caso vire Lei, exigirá que cada entidade de segurança crie seus protocolos, com detalhamento acerca da operacionalidade.

Trazemos alguns pontos abaixo que precisam ser considerados na elaboração desses protocolos:

i) levantamentos prévios de informações acerca do local e pessoas presentes, indicando a presença de terceiros no local, conforme já tratado em tópicos anteriores. O conhecimento de tais dados deverá ter início logo no atendimento da ocorrência, devendo o operador dos telefones e rádios da PM (COPOM) ser treinado para aprender a captar informações básicas acerca do ânimo do agente agressor.

ii) ao identificar que se trata de situação de surto, acionar as equipes médicas, especialmente o SAMU e equipes do CAPS, mesmo que cientes da dificuldade de deslocamento, até mesmo para que os policiais envolvidos se resguardem ante eventual alegação de omissão. A recusa ou o não comparecimento de equipes de saúde ao local não exigem a Polícia da obrigação de atuar, por determinação expressa do artigo 301 do CPP, mas tal situação deverá constar em protocolos. Recomenda-se atuar, no caso, com apoio de familiar ou pessoa próxima ao agente em situação de surto, que pode servir como interlocutor e até mesmo, em última instância, auxiliar na contenção física-mecânica do agressor. Obviamente, tal apoio deverá ser analisado no caso concreto, evitando-se colocar esse terceiro em risco indevido (vide caso ELOÁ13).

iii) verificar se há terceiros (vítimas) envolvidos, com risco imediato a esses, especialmente se há tomada de reféns por parte do agressor (pessoa em surto), acionando as equipes de negociação, que tem as técnicas adequadas, incluindo uso letal da força (sniper) em casos extremos.

Acerca da negociação com tomador de reféns, especialmente em se verificando se se trata de agente em surto, comum em casos de violência doméstica e familiar, é recomendado o requerimento de apoio de psicólogo, para auxiliar na condução das tratativas. BIANCA SANT’ANNA DE SOUSA CIRILO14 afirma que, inegavelmente, a experiência nos demonstrou que o uso de técnicas de apoio a ocorrências com reféns possui sua eficácia e é útil ao processo de negociação de conflitos nestas situações tão singulares.

A autora ainda afirma que, em negociação de reféns costuma-se criar uma expectativa de que psicólogos façam previsões sobre a conduta de tomadores com fins de levá-los a desistir da ameaça, baseadas num tipo de saber psicológico considerado científico. A experiência nos demonstrou que, além da influência behaviorista, há também a contribuição da psicanálise freudiana, principalmente na elaboração da descrição dos perfis de tomadores, sumariamente agrupados em diferentes tipos, de acordo com a psicologia militar norte-americana. São eles: terroristas, indivíduos psicóticos, de sintomatologia depressiva, traços de personalidade mal adaptada.

Para a autora, a relevância, aqui, não seria descrever as características de cada um deles, porém destacar o problema da classificação sustentada numa intenção de previsibilidade do comportamento neste contexto. Os protocolos de gerenciamento de crise devem prever as situações, incluindo a indicação de uso de força em casos extremos, que deverá, sempre, ser devidamente documentada.

iv) isolar o local ao máximo, retirando do local pessoal não essencial, especialmente curiosos, possíveis causadores dos gatilhos gerados no paciente, imprensa e reduzindo a área de acesso livre do agente em surto.

Como já tratamos em tópicos anteriores, deve-se reduzir a área de liberdade do paciente em surto, tirando de perto pessoas que poderão sofrer agressões ou até mesmo agredir o agente (casos de linchamentos, por exemplo), e tirando de perto desse também objetos que poderão ser utilizados para auto ou héteroagressão. Ao reduzir a área de risco, haverá espaço para as negociações, com ou sem apoio de equipes de saúde, devendo o operador policial ter em mente que a contenção física-mecânica é a última etapa a ser considerada, quando as demais houverem falhado.

v) criação de protocolos de atuação com uso de armas não letais, como teasers e elastómero, para serem usadas excepcionalmente e como opção ao uso de armas letais.

O uso de armamento não-letal é na LEI Nº 13.060, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2014, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, em todo o território nacional, exigindo que todas as forças policiais tenham treinamento nesse tipo de arma. A PORTARIA INTERMINISTERIAL, do Ministério da Justiça, nº 4.226, de 31 de dezembro de 2010, estabelece que todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo.

O uso de força tem como princípios a excepcionalidade, o uso progressivo e a proporcionalidade. Na maioria dos casos envolvendo agentes em surto, armas não letais, como TEASERS (arma de eletrochoque) e elastômero (balas de borracha) são suficientes para conter o agressor.

Imagine-se uma situação com dois policiais atuando em caso de agente em surto, dando início a atos de héteroagressão. Um dos policiais poderá usar armamento não-letal, como teaser, enquanto o outro policial, dará a cobertura, usando armamento letal, a ser utilizado em caso de falha do primeiro equipamento. Os casos são inúmeros, mas deve se ter em conta que o uso de armamento não letal continua excepcional, não podendo ser a regra, aplicando-se em casos extremos e em opção ao uso letal de força, salvo casos excepcionalíssimos (uso de sniper, por exemplo).

vi) criação de protocolos de uso de algemas, devendo ser evitadas durante o período de surto, já que o agente poderá se machucar de forma grave, e, mesmo utilizadas após o controle dos surtos, que sejam devidamente documentadas, como exige a Súmula Vinculante número 11 (Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado).

vii) analisar a excepcionalidade da contenção física-mecânica, protraindo-se ao máximo tal intervenção, salvo necessidade urgente, e, ao fazer a contenção, ter cautelas para evitar possível acesso do agressor a armas de fogo em poder de agentes de segurança, já que existem inúmeros casos de agentes que tomam armas de policiais e causam transtornos graves, incluindo a morte de terceiros e a própria.

Por fim, complementando-se os itens vi e vii, que estão ligados, recomendamos aos autores dos protocolos de atuação policial em casos de surto psicótico, que sigam a orientação do COFEN, Conselho Federal de Enfermagem, que, através da RESOLUÇÃO COFEN Nº 746 DE 20 DE MARÇO DE 2024, de 03.04.2024, normatizou os procedimentos de enfermagem na contenção mecânica de pacientes.

O ideal, como sempre afirmamos, é que toda operação policial em situação envolvendo agente em surto tenha a participação de profissional de saúde, seja do SAMU ou CAPS. Mas, em casos que não seja possível, a autoridade policial não pode ser omitir, pelo seu dever legal de agir para salvar vidas, incluindo a vida do próprio agente-agressor.

Por isso, algumas regras previstas nos protocolos COFEN podem ser utilizadas, no caso excepcional de contenção física-mecânica, como a necessidade de uso de cinco pessoas (policiais e pessoas próximas ao agente-agressor), que visa garantir o uso rápido e proporcional de força, e o uso de lençóis para imobilização.

O agente de segurança também tem que ter em mente que a abordagem de pessoa em situação de surto é diferente da abordagem comum. Em uma situação de crime comum, quando o agente-agressor tem consciência da ilicitude de seus atos, ao ser confrontado por forças de segurança e verificando que está em desvantagem de força e numérica, cederá, rendendo-se e seguindo as normativas de segurança (deitando no chão, largando armas etc.). Já o agente em surto psicótico, exatamente por não ter tal consciência, tende a não se render e, quanto mais força é usada contra si, usuará mais força de resistência. Só para citar um exemplo de contenção incorreta de agentes em situação de surto é o USO DE GOLPES DE MATA-LEÃO ou GRAVATAS. Quanto mais força o policial usar para render o agente-agressor, mais esse usará força contrária, podendo, naturalmente, ter o pescoço quebrado. Por isso os protocolos de atendimento deverão prever até mesmo essas situações, indicando alternativas técnicas.


6 CONCLUSÃO

Em síntese, o artigo destaca a urgência de estabelecer protocolos de atuação para policiais em situações que envolvem pacientes em surtos psicóticos. O cenário atual evidencia que a falta de diretrizes claras pode resultar em abordagens inadequadas, levando a consequências trágicas, como mortes e lesões. Essas ocorrências não apenas afetam os indivíduos diretamente envolvidos, mas também geram repercussões sociais e políticas significativas, frequentemente amplificadas pela mídia. Portanto, é essencial que as forças de segurança reconheçam os surtos psicóticos como emergências médicas, exigindo uma resposta integrada que priorize tanto a segurança pública quanto o bem-estar do paciente.

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Além disso, o artigo enfatiza a importância de uma abordagem humanizada e informada por parte dos policiais. O treinamento adequado deve incluir a identificação de sinais precoces de surtos psicóticos e uma compreensão das implicações legais e éticas associadas à saúde mental. A implementação de protocolos abrangentes deve contemplar não apenas as fases críticas do surto, mas também os cuidados pós-crise, garantindo um monitoramento eficaz e intervenções que promovam a recuperação do paciente. Essa abordagem não só melhora a segurança dos envolvidos como também protege os direitos dos indivíduos em situação vulnerável.

Por fim, é evidente que muitos protocolos existentes são insuficientes ou meramente proibitivos, falhando em oferecer orientações práticas sobre como agir diante de tais situações. A criação e disseminação de diretrizes claras e detalhadas são cruciais para evitar tragédias futuras. Ao priorizar o treinamento contínuo e a elaboração de protocolos eficazes, será possível minimizar os riscos associados às intervenções policiais em casos de surto psicótico, promovendo um atendimento mais seguro e respeitoso para todos os envolvidos.


BIBLIOGRAFIA

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Sobre o autor
José William Pereira Luz

Promotor de Justiça do Estado do Piauí. Coautor do livro "Facções criminosas: análise jurídica e estratégias de enfrentamento", Editora Forum.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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