8. DIREITO É REFLEXÃO E RENOVAÇÃO
8.1 Acima da lei, o direito
O Direito se renova. Questões como as uniões homoafetivas, que até há pouco tempo não estavam na tutela do Estado, ganharam outro contexto, tiveram acolhimento na sociedade esclarecida e os seus efeitos jurídicos foram redesenhados respectivamente pelos tribunais e pelo legislador. No início, a lei não mudou, mudou a interpretação. E assim pode-se relacionar um grande número de substanciais reformas que vieram no lastro do arejamento da Justiça.
Vale lembrar, à guisa de curiosidade, que foi a Carta de 1988 que assegurou no direito positivo o exercício do contraditório e defesa no processo administrativo disciplinar. As Constituições anteriores não contemplavam essa garantia elementar de uma relação processual, mas, ainda assim, na omissão da lei, o Judiciário nas décadas de 1960, 1970 e 1980 (em plenos “Anos de Chumbo”) passou a assegurar esse exercício, aplicando o direito na sua natureza de inteligência e justeza. É o que se espera que se faça em relação ao instituto da prescrição, na situação em exame, não o deixando ao alvitre de plantonistas do poder, ao critério de quem só enxerga a sujeira no quintal alheio e não percebe que o próprio, muito maior e visível, está infestado de moscas – ou, traduzindo, de quem apresenta aos servidores públicos federais a conta da própria incapacidade de exercer a vigilância interna ou a supervisão funcional.
Toda decisão adotada na Administração Pública Federal com lastro no raciocínio do Parecer AGU GQ-55 deve ser enfrentada. Para tanto, a Lei do Processo Administrativo – Lei nº 9.784/99 – dá a abertura:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito ;
grifamos)
Note-se que o primeiro critério da lei é “atuação conforme a lei e o Direito”. Ora a lei é um córrego, um rio; o direito é o oceano onde desembocam todas as vertentes do saber jurídico. Portanto, aqueles que operam no controle da disciplina precisam absorver os ares do oceano e compreender que, afora um mal redigido parágrafo da Lei nº 8.112, existe luz, existe vida. E tantos quantos patrocinam causas a favor de servidores atropelados pelo arbítrio, devem exigir que o DIREITO se afirme mediante a aplicação da norma jurídica nos padrões da ciência e dentro dos fins a que se destina.
8.2 Os comandos da Carta Política
Façamos, agora, o exame das referências da Constituição Federal.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Art. 5º (...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
O processo administrativo disciplinar é um constrangimento legal, desde que siga as regras do direito. Na medida em que se afasta do chamado devido processo legal arrasta consigo garantias dos cidadãos.
É sabido que os agentes da Administração somente podem fazer aquilo que a lei autoriza. E o art. 143. da Lei nº 8.112/90 não só autoriza como determina a abertura de processos disciplinares, mas isso não pode ser feito sem se levar em conta outros dispositivos da própria lei e outras referências do ordenamento jurídico. O art. 142, § 1º, enuncia que o prazo de prescrição “começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido”. Se não diz conhecido por quem, o intérprete tem que utilizar a interpretação mais favorável ao acusado, como já discorrido neste texto. Em síntese:
· Conhecido pelo primeiro preposto da Administração – que tem dever de noticiar (art. 116, VI e XII, da Lei nº 8.112);
· Conhecido por qualquer integrante das estruturas formais de controle (Controle Interno, Corregedorias, Controladoria), que são mantidas com recursos públicos para esse fim;
Ou, na interpretação mais avançada e de elevada sustentabilidade técnica, pode-se considerar que o prazo de prescrição começou a fruir a partir da ocorrência, como declaram vários estatutos relacionados a carreiras específicas ou aos servidores em geral em diversas unidades da Federação.
À margem desses indicativos teremos um processo disciplinar instaurado e instruído ilegalmente, compelindo o funcionário a FAZER O QUE NÃO É OBRIGADO POR LEI: i) comparecer a atos processuais; ii) dar explicações de fatos ocorridos há mais de cinco anos; iii) apresentar documentos que legislações fiscais e bancárias, por exemplo, tornam inexigíveis pelo prazo decorrido; iv) ser interrogado e apresentar defesa etc. E, se condenado, a continuar no martírio, com recursos administrativos que as autoridades levam dois anos para examinar; com mandados de segurança ou ações ordinárias, que podem exigir quinze anos de espera. Tudo ao custo de pecúnia, com comprometimento das suas rendas legítimas, com reflexo na subsistência da família e com profundo abalo moral e emocional. Eis uma situação típica de constrangimento ilegal.
Mas não é só:
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Art. 37. (...)
§ 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
A Constituição, portanto, garante o estabelecimento de “prazos de prescrição”, o que deve ser entendido que, decorrido lapso de tempo fixado em lei, a Administração perde o direito-poder de ação disciplinar. É a afirmação constitucional da prescritibilidade. Mas o raciocínio que interpreta (interpreta, porque a lei não diz isso) que “A inércia da Administração somente é suscetível de se configurar em tendo conhecimento da falta disciplinar a autoridade administrativa competente para instaurar o processo” (Parecer AGU GQ-55) torna as ações disciplinares imprescritíveis, em afronta à Constituição da República.
A discussão acadêmica é vasta. A doutrina é praticamente unânime ao condenar a interpretação do arbítrio. No lado oposto estão defensores de um sistema inoperante, atrasado, que privilegia papéis com desprezo à dignidade das pessoas. Nesse cenário, não discutem, apenas teimam.
.9. CONCLUSÃO
No conjunto das ciências – Ciência da Administração e Ciência do Direito – não há espaço para a interpretação patrocinada nos pronunciamentos, atos, pareceres e decisões do Poder Executivo Federal quando aplica a regra da prescrição com prazo que leva ao infinito.
Conclusivamente, não existe outra interpretação que não seja a da prescritibilidade da infração disciplinar em cenário de lógica jurídica. A legalidade não implica apenas no cumprimento da lei lida, isolada, desfocada; mas na harmonização com os demais institutos jurídicos.
Pelo o que foi sustentado, o Parecer da Advocacia-Geral da União, que gerou a barafunda, não traduz o que a lei enuncia, mas coloca no texto o que o legislador não disse e acabou por induzir em erro nobres personalidades do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Pelo imbróglio ter origem em Parecer Vinculante, os quadros jurídicos da União são compelidos a defendê-lo ao extremo, como em guerra santa ancorada em dogmas. Até que, a exemplo do que fizeram alguns legisladores em outros entes da Federação, coloque-se definitivamente na Lei o ajuste necessário de forma a fechar as portas para o improviso de conveniência.
1 https://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2010.683-2003?OpenDocument
02 Disponível in https://jus.uol.com.br/revista/texto/11800/prescricao-disciplinar-uma-abordagem-didatica-com-base-na-jurisprudencia.
3 TJ MS 8595 (DJ: 07/04/2003) - Relator: Felix Fischer.
4 STJ MS 11974 (DJ: 07/05/2007) Relator: Laurita Vaz
5 Autor do clássico “Manual de Derecho Administrativo”, publicado em 1963 pela Universidad de La Habana, Facultad de Humanidades, Escuela de Ciencias Jurídicas.
6 Engenheiro de minas e administrador francês, Jules Henri Fayol foi um dos primeiros estudiosos a analisar a natureza da atividade de gestão e a formular uma teoria completa sobre as habilidades da chefias..
7 Frederick Winslow Taylor (Filadélfia, 20 de Março de 1856 — Filadélfia, 21 de Março de 1915) mais conhecido por F. W. Taylor, foi um engenheiro mecânico estadunidense, inicialmente técnico em mecânica e operário. Formou-se engenheiro mecânico e se dedicou a elaborar as bases da "Administração Científica", utilizando métodos científicos cartesianos.
8 Disponível in https://www.knoow.net/cienceconempr/gestao/fayolhenri.htm.
09 https://www.knoow.net/cienceconempr/gestao/gestao.htm
10 https://jus.uol.com.br/revista/autor/nelson-rodrigues-breitman
11 COSTA, José Armando da. Prescrição disciplinar. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
12 MALJAR, Daniel E., El Derecho Administrativo Sancionador – Ad-Hoc, Buenos Aires, 2004.
13 Entre outras decisões: STC 18/81, 29/89, 22/90, 246/91, 145/93, 12/94, 197/95, 7/98,
14 TSEE, Sala 3ª, en el Contencioso Administrativo – Sentencias del 14/11/85, 10/11/86 y 20/1/87.
15 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10ª Edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 39
16 SANTOS, Brasilino Pereira. O prazo da prescrição de punição disciplinar começa a correr do momento em que o fato se tornou conhecido? – disponível in https://jus.uol.com.br/revista/texto/2278.
17 Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 248.
18 JÚNIOR, José Cretella. Prática do Processo Administrativo, Editora Revista dos Tribunais, 1988.
19 Prática do Processo Administrativo, cit., p. 106.
20https://jus.uol.com.br/revista/autor/mauro-roberto-gomes-de-mattos - Prescrição do processo disciplinar começa a fluir da data do fato investigado. Disponível in https://jus.uol.com.br/revista/texto/6931.
21https://jus.uol.com.br/revista/autor/mauro-roberto-gomes-de-mattos - Artigo citado.