4. CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO E PODER SANCIONADOR
As rotinas nem sempre lúcidas nos ofícios do Estado confundem gestão de pessoas com punir funcionários.
A Administração Pública não foi formatada para penalizar os seus agentes. O que existe é o dever de controle, o que é substancialmente diferente. Neste sentido, as autoridades, a começar pelas chefias imediatas, têm a obrigação de exercer a vigilância interna , muito bem descrita na obra de Hector Garcini Guerra, da Universidade de Havana5. A vigilância, aqui, nada tem de relação com acompanhamento ideológico, como a origem do jurista poderia sugerir. Trata-se de uma figura, bem recolhida do Direito Administrativo espanhol que, por sua vez, buscou-a nas clássicas lições de Henri Fayol6, o pai da Ciência da Administração.
“A primeira condição inerente ao chefe é a de ser bom administrador”, ensinou Fayol. E as suas preleções prosseguiam com o mapeamento das cinco funções que os chefes devem desempenhar em uma estrutura organizacional:
I. Prever e planejar (prévoir - visualizar o futuro e traçar o programa de ação);
II. Organizar (organiser - constituir o duplo organismo material e social da empresa);
III. Comandar (commander - dirigir e orientar a organização);
IV. Coordenar (coordonner - unir e harmonizar os atos e esforços coletivos);
V. Controlar (contrôler - verificar se as normas e regras estabelecidas estão sendo seguidas).
Frederik Taylor, outro recursor da administração em bases científicas, inseriu, a supervisão funcional, estabelecendo que todas as fases de um trabalho devem ser acompanhadas de modo a verificar se as operações estão sendo desenvolvidas em conformidades com as instruções programadas.
De acordo com a biografia escrita pelo autor português Paulo Nunes7 8, Taylor definiu 14 princípios geris sobre gestão 09, os quais foram desenvolvidos e aplicados nas atividades empresariais e nas organizações públicas. Dentre esses princípios, estão o pleno exercício da autoridade e a consciência de responsabilidade.
Não se pode admitir como regular uma estrutura administrativa altamente profissional (como se espera no Estado) em que as chefias não exercitam a autoridade legítima, ordenando, controlando e corrigindo; e que não tenham responsabilidade pelas suas omissões. Com efeito, todo chefe tem a obrigação de exercitar os três verbos: ordenar, controlar e corrigir. E deve fazê-lo com responsabilidade, para que a autoridade, antes de tudo, tenha força moral.
A omissão das chefias, no entanto, é recorrente; o desinteresse pelo controle efetivo reina aqui e acolá. Essas falhas, inerentes ao exercício da gestão, são lançadas depois dentro de processos disciplinares que passam a ser usados para encobrir a ausência de profissionalismo, de organização efetiva e de responsabilidade dos prepostos oficiais.
Nelson Rodrigues Breitman 10, em artigo elaborado em julho de 2008 para Jus Navegandi com o título “Prescrição disciplinar: uma abordagem didática, com base na jurisprudência”, escreveu com inquietação:
Desta forma, torna-se por demais draconiano o entendimento de que, mesmo que o titular do órgão tenha conhecimento do fato, o prazo prescricional ainda não estaria correndo, uma vez que o responsável pela apuração disciplinar (a unidade de Corregedoria) ainda não teria conhecimento (...).
Então, ainda que as competências para instaurar sindicâncias disciplinares ou processos disciplinares tenham sido retiradas dos titulares de órgãos ou unidades, em função da existência de uma unidade de Corregedoria, estes dirigentes mantêm o poder-dever de promover a apuração imediata de irregularidades cometidas por servidor lotado em sua repartição, ainda que de forma indireta, comunicando à autoridade competente para apuração. Não agindo dessa maneira, entende-se que o chefe da unidade estaria caracterizando a inércia da Administração.
Não se pode, portanto, no terreno do bom-senso, compreender que uma norma infra-legal (Portaria ou Decreto), ou um Parecer (Parecer AGU GQ-55), modifique a natureza de um instituto jurídico como a prescrição, que é de ordem pública.
Leve-se em conta que o poder sancionador do Estado é legítimo para alcançar agentes de caráter perverso, indivíduos de postura incompatível com a relevância dos compromissos públicos. Estes, sobretudo, devem ser os clientes dos processos disciplinares. Para tanto, precisam ser identificados pelo controle, alcançados em tempo razoável pelas autoridades superiores e sentenciados na forma da lei. O que não se admite é que os processos, em flagrante desvio de finalidade, sejam utilizados para encobrir a ineficiência daqueles que têm a obrigação do permanente controle, pela vigilância interna de que nos fala Garcini Guerra, ou supervisão funcional , a que se reporta Frederick Taylor.
A contagem do prazo prescricional a partir do conhecimento da autoridade com poder disciplinar não é interpretação em harmonia com a ciência. Presta-se tão somente para expressar o reconhecimento da falta de controle administrativo.
5.O SENTIDO PROTETOR DA NORMA
5.1 Relação com o Direito Penal
O Direito Disciplinar está intimamente ligado ao Direito Penal. Ambos existem com um sentido de proteção, associados a um fim que, por certo, não se esgota na burocracia inútil.
A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais, para a subsistência do corpo social; a missão do Direito Disciplinar é proteger os princípios norteadores da Administração Pública e a regularidade dos serviços. Este tem que ser o foco do resultado.
Ora, se Administração leva mais do que cinco anos para adotar uma providência, a irregularidade mudou de eixo e passou a ser a ineficiência do sistema de controle ou a letargia dos trâmites internos. Quando uma notícia sai da mesa de um gerente de operações, por exemplo, e leva mais de 60 meses para atravessar um corredor, subir um andar e chegar à autoridade com poder disciplinar, o que está errado é o modelo. Esta passou a ser a irregularidade a ser conhecida e enfrentada. O bem maior a ser protegido é a eficiência do serviço; e essa apatia institucional será punida com a perda da possibilidade de o Estado agir contra terceiro, como forma de obrigar as chefias a exercerem o seu papel e os gestores a verdadeiramente administrarem estruturas.
Perceba-se, portanto, a proporção de valores. Qual é, aqui, o bem maior de interesse público a ser protegido? O interesse de punir um funcionário isoladamente por suposta infração cometida há mais de cinco anos ou o direito de o povo ter uma Administração séria, profissional, organizada e eficiente?
5.2 A desproporcionalidade de tutela
No mesmo cenário do sentido de proteção da norma jurídica, há que se considerar a desproporcionalidade que a interpretação oficial (Governo Federal) atribui, por exemplo, no enfrentamento de um crime contra a vida e no enfrentamento de uma infração disciplinar.
Viu-se, nos meandros oficiais, o argumento de que é o conhecimento da autoridade com competência de ação que deve marcar o prazo, pois de outra forma favoreceria o servidor faltoso que poderia escamotear provas até o alcance da prescrição. Ora, se um homicida que age com todos os agravantes, da futilidade à torpeza, da crueldade à impossibilidade de defesa da vítima, esconder as provas e o crime só for descoberto depois de vinte anos, o Estado, incapaz de investigar, perdeu a capacidade de agir e punir. Mas, no terreno do absurdo, tem-se a possibilidade de um ilícito funcional ter ocorrido em 1999 e somente em 2025 a autoridade com poder disciplinar receber a notícia na sua mesa. Desconsidera-se, segundo os procedimentos na esfera federal, toda a falta de acompanhamento e controle e instaura-se ação disciplinar e pune-se funcionário, numa flagrante desproporção de tutela.
A lucidez convoca para a avaliação do seguinte quadro: o Estado é um só. O mesmo Estado com poder de punir o homicida é o que tem o poder de penalizar servidor; o mesmo Estado que perde em certo tempo a capacidade de ação contra o criminoso é o que, por igual inércia, perde a possibilidade de sancionar funcionário. Não há explicação, nos terrenos do direito e da lógica, a adoção de tratamento diferenciado, desproporcional e absurdo.
6. A FORMA DO CONHECIMENTO DO FATO
Outra questão é a forma pela qual pode ocorrer o conhecimento do fato. O mais usual é, evidentemente, a comunicação por escrito físico ou por meio eletrônico, oriunda de representações ou denúncias; ou, ainda, de atividades investigativas que em geral redundam em um desses modelos, como um Relatório de Auditoria ou Correição, por exemplo. Nesse sentido, confira-se o julgado a seguir:
STJ MS 8259 (DJ: 17/02/2003) Relator: Hamilton Carvalhido
Ementa: [...] 11. Os fatos atribuídos ao impetrante, apesar de terem sido praticados há vários anos, só foram conhecidos pela Administração Pública após a conclusão do Relatório de Correição nº 016/2001, em 27 de abril de 2001. A portaria instauradora do processo administrativo disciplinar (Portaria Conjunta nº 50) foi publicada em 19 de outubro de 2001, interrompendo o curso da prescrição, [...]. (grifo nosso)
Entretanto, outras formas também devem ser consideradas, como observa José Armando da Costa11, que discorre com propriedade sobre o conhecimento dos fatos por meio da mídia, no caso dos chamados "fatos notórios":
Notícias sobre corrupção e improbidade política e administrativa, caindo assim no domínio do conhecimento comum da comunidade nacional, e às vezes internacional, chegam a configurar o conceito jurídico de fato notório . E, por isso mesmo, não deixam margem para que as autoridades administrativas das repartições referentes justifiquem as suas omissões sob o pretexto de que desconheciam tais denúncias. Posto que o notório se define como público e do domínio de todos , não mais assiste razão à autoridade administrativa que, sob qualquer pretexto, queira delas se esquivar. Isso porque tais matérias, uma vez veiculadas em jornais, revistas, rádio, televisão e outros meios de comunicação social, não podem mais ser desconhecidas da administração. Principalmente quando tais irregularidades, no todo ou em parte, tenham tido como cenáculo o próprio interior das repartições públicas. (grifo nosso)
Não é desprezível, ainda, a hipótese de que o fato pode se tornar conhecido durante o curso de um PAD, instaurado por conta de outras irregularidades. Aqui, a instrução faz sobressair um fato novo, que relaciona outro funcionário. Fica entendido, então, que este fato superveniente tornou-se de conhecimento de prepostos da Administração, membros de um colegiado processante, profissionais com discernimento sobre o ilícito, e não se pode conceber que não comece nesta data a fruir o prazo para que o Poder Público reaja (sem prejuízo de se considerar outra hipótese, a de que a prescrição se conta da data da ocorrência).
7. OUTRAS QUESTÕES RELEVANTES
7.1 A interpretação mais favorável ao acusado
É relevante a compreensão de que a matéria disciplinar, no seu aspecto sancionador, está intimamente ligada ao Direito Penal, ou Direito Penal Especial como definiu Magalhães Noronha. Evidentemente o controle da disciplina – como visto neste estudo – é, antes de tudo, uma atividade de gestão com base em instrumentos da Ciência da Administração. Quando, todavia, avança para a possibilidade de sancionar um agente, entram princípios recolhidos da Ciência Penal.
O argentino Daniel E. Maljar12 vê a questão disciplinar como ramificacione del gênero comum (...) que es el poder punitivo do Estado.
Chega um momento, segundo o professor da Universidade Nacional de La Plata, que a questão ou fica afeta a el derecho administrativo sancionador ou a el derecho penal común . Mesmo quando se resume ao derecho administrativo sancionador (disciplinar) entiendo que deben aplicarse (...) los princípios del derecho penal, diz o jurista.
O Tribunal Constitucional espanhol13, a propósito, decidiu:
(...) aplicables, sin prejuício de las oportunas modulaciones, los principios del derecho penal al derecho administrativo sancionador (...) en la medida necesaria para preservar los valores essenciales que se encuentran en la base de esse precepto y la seguridad jurídica (...).
O Tribunal, obviamente, teve cautela ao explicar que cada espécie (sancionador e penal) mantém regramento específico. O que se aproveita são princípios que resulten compatibles con su própria naturaleza.
O Judiciário espanhol também proferiu14:
Es la doctrina ya consolidada que los principios inspiradores de el derecho penal son aplicables com ciertas matizaciones a el derecho sancionador administrativo. La razón es clara: ambos son manifestaciones del poder punitivo o represivo del Estado (...)
O Direito Disciplinar, portanto, muito mais amplo que o mero processo disciplinar, precisa beber na fonte dos princípios do Direito Penal em razão da natureza similar de ambas as ramificações. Sendo assim, o exame do instituto da prescrição, de ordem pública na espécie, deve ser avaliado dentro das balizas da Ciência Penal.
Segundo Fernando Capez15, o princípio favor rei , inerente aos processos de natureza penal, consiste em que qualquer dúvida ou interpretação deve sempre ser levada pela direção mais benéfica ao réu. Associa-se ao princípio in dubio pro reo, aplicado em matéria de interpretação.
Nelson Hungria, favorável a invocação do princípio in dubio pro reo em matéria de interpretação da lei penal, prelecionava: no caso de irredutível dúvida entre o espírito e a letra da lei, é força acolher, em matéria penal, irrestritamente, o princípio in dubio pro reo. Desde que não seja possível descobrir-se a voluntas legis, deve guiar-se o intérprete pela conhecida máxima: favorabilia sunt amplianda, odiosa sunt restringenda. O que vale dizer, a lei penal deve ser interpretada restritamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente no caso contrário.
A própria Constituição Federal prestigia essa linha ao prever a retroatividade da lei penal “para beneficiar o réu” – art. 5º, LX.
Ora, se a Lei nº 8.112/90 não esclarece objetivamente de quem é conhecimento do fato para efeitos de marcar o início do prazo de prescrição, a interpretação não pode ser aquela prejudicial ao argüido, de forma a abrir a temerária e esdrúxula perspectiva de se ver condenado até 15, 20, 25 anos depois de uma ocorrência cujo chefe imediato teve conhecimento à altura em que aconteceu ou logo depois. Ou, em situação que também deve ser considerada, quando, existindo estrutura formal de controle, ninguém auditou, ninguém avaliou, ninguém percebeu, ninguém reagiu.
7.2 A contagem do prazo a partir do fato e não do conhecimento do fato
Para que se tenha idéia do amplo leque de interpretações que se abre acerca da questão, há outra possibilidade jurídica que não pode ser desprezada: a de que, não obstante a lei prever que a prescrição de dá “do conhecimento do fato”, essa regra está em desarmonia com institutos superiores de direito.
Brasilino Pereira dos Santos16 examinou essa ótica em um excelente ensaio, no qual concluiu:
Para nós, o dispositivo da lei administrativa que hospeda um tamanho absurdo deve ser tido como não escrito, aplicando-se, sempre, a boa doutrina que sempre inspirou a legislação penal. No direito penal, conta-se a prescrição do momento da consumação do crime, apenas excetuando a hipótese de falsidade de assentamento de registro civil.
O autor avança:
Ora, tendo o Código Penal, independente da gravidade do crime, e assim, tanto no homicídio, como no latrocínio, no seqüestro, no tráfico ilícito de drogas, como nos crimes de menor relevância, fixado como o marco inicial da prescrição o momento consumativo da infração – e não a data do conhecimento do fato pela autoridade pública –, não há como admitir-se que a data do conhecimento da falta disciplinar seja a regra em sede de direito administrativo disciplinar, se esta é a exceção em direito penal .
(Grifamos e sublinhamos)
Na monografia "O Ilícito Administrativo e seu Processo" 17 , obra com a qual Edmir Netto de Araújo conquistou o título de Doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o tema é esmiuçado. E o autor labora em torno da época em que não havia previsão legal expressa quanto à prescrição no processo disciplinar, o que levou o Supremo Tribunal Federal a assim decidir (no RE 78.917):
Aplicam-se às penas disciplinares as normas de prescrição do Direito Penal. O direito administrativo não é infenso à analogia penal.
(...) o recurso ao Poder Judiciário, como em tantas outras oportunidades tem ocorrido, poderá forçar até mesmo a modificação do direito positivo, firmando o entendimento de que o dies a quo deve ser o dia da infração. Ressalte-se que a União já adotou este entendimento pelo menos quando da promulgação da recentíssima Lei da Defensoria Pública da União, Lei Complementar nº 80, de 12.01.94, que em seu artigo 50, § 7º, declara que o prazo prescricional para a penalidade de advertência, suspensão e remoção compulsória é de dois anos contados da data em que foram cometidas as faltas.
Edmir Netto de Araújo, na sua produção, lembra a seguir a existência de
(...) certas aberrações decorrentes dos dispositivos estatutários, especialmente federais, como se acham em vigor, mesmo cumprida a determinação constitucional (art. 37, § 5º) para fixação, por lei, dos prazos de prescrição de ilícitos administrativos.
"1) A primeira delas: a prescrição da ação disciplinar do ilícito administrativo que ocasiona demissão, mesmo agravada, tem seu termo inicial da data do conhecimento da infração, ao passo que a falta-crime a tem na data do fato. Ou seja, é provável que, muitas vezes, a infração mais grave deixe de ser punível antes da infração menos grave.
2) A fixação do dies a quo na data do conhecimento da autoridade, e interrupção da prescrição pela instauração do respectivo procedimento administrativo levam a outros absurdos: será quase impossível ao servidor, especialmente federal, na prática livrar-se da ameaça de punição.
Brasilino Pereira, no seu estudo de fundo, traz a interessante situação:
Um exemplo prático poderá melhor elucidar o absurdo a que pode conduzir a norma administrativa que fixa o marco inicial da prescrição na data do conhecimento do fato: uma falta ética supostamente praticada em 1971, veio a ser punida em 1995, isto é, quase 23 anos depois, com a cassação do registro profissional de um profissional da medicina. A falta por ele cometida era apenas de natureza administrativa, isto é, o fato não correspondia igualmente a uma falta criminal. Se fosse o crime mais grave que se pode imaginar, o prazo máximo da prescrição, segundo o Código Penal (art. 109, I) seria, como é, de 20 anos. A prescrição vintenária em sede criminal atinge qualquer crime cuja pena máxima seja superior a 12 anos de privação da liberdade.
O professor José Cretella Júnior, por sua vez, leciona 18 :
Ora, se a sanção, como categoria jurídica, é sempre ligada à prescrição e esta é vinculada ao tempo, o princípio informador do instituto prescricional não pode deixar de ser senão este: a prescrição começa a correr "a partir do fato". Por quê? Porque o tempo vai apagando aos poucos a imagem do evento e do quadro da época. O fato e as circunstâncias que o cercaram esmaecem-se na memória dos que o presenciaram, as provas materiais e as testemunhais perdem o significado.
E conclui o autor19:
13. Nos Estatutos omissos, quanto ao início da prescrição, deve ser adotada, por analogia, a regra do Código Penal, ou seja, a prescrição deve fluir a partir do momento da consumação do ilícito e nunca a die scientiae.
"14. De lege ferenda, os Estatutos, que adotam o critério para a contagem do prazo prescricional da época da ciência da falta pela autoridade, devem abandonar essa regra pelos absurdos a que conduz e pela infração ao princípio geral do direito, que agasalha a regra da prescritibilidade, traço inseparável do direito de punir.
Mauro Roberto Gomes de Mattos 20 traz argumento irrefutável:
Verificado então a prática do ato ilícito pelo servidor público, o termo inicial da prescrição disciplinar é o do dia em que o mesmo foi praticado, sendo ilegal considerar-se o dia de sua ciência pela Administração, pois, como representante do Poder Público, seus atos produzem efeitos jurídicos a partir da ocasião em que foram praticados.
Ou seja, é totalmente ilegal e contrário ao direito afirmar-se que um preposto do Poder Público, ao praticar um ato ilícito funcional, tenha que aguardar a Administração alegar que tomou conhecimento do fato oficialmente/publicamente.”
Ora, o servidor público, como preposto do Estado, quando pratica um ato representando o seu órgão ou repartição pública, ao lesar ou violar direitos de pessoas ou terceiros, concede ao lesado a oportunidade de tentar reformar ou anular seus atos até 5 (cinco) anos do dia em que foi praticado o ato e não do conhecimento do mesmo pela Administração Pública.”
Por que inverter este princípio quando se trata de ato ilícito administrativo do servidor público, ao ponto de considerar o dies a quo o da data do conhecimento da Administração Pública?
Mais coerente com os princípios doutrinários e constitucionais apresenta-se a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, que, no particular, dispõe:
Art. 245. A prescrição começa a correr:
I - do dia em que a falta for cometida; ou
II - do dia em que tenha cessado a continuação ou permanência, nas faltas continuadas ou permanentes.
Interessante foi a solução adotada pelo legislador no Estado do Paraná. A Lei Estadual nº 6.174/70, estatuto dos servidores do Estado, também outrora aplicada aos auditores fiscais, ditava (e dita) os prazos prescricionais, mas não demarca o prazo inicial para a contagem da prescrição. Para corrigir o lapso e estabelecer segurança jurídica – e adequar-se aos padrões do melhor direito – foi editada a Lei Complementar nº 131, de 28 de setembro de 2010, que reestrutura a carreira do Agente Fiscal da Coordenação da Receita do Estado. No art. 141. da citada Lei, adotou-se a mesma linha da Lei Complementar nº 75/93:
Art. 141. A prescrição começa a contar:
I - no dia em que a falta for cometida;
Por isso Mauro Roberto Gomes de Mattos 21 insurge-se contra o formato adotado na burocracia do Poder Executivo da União:
Apesar da regra ser a da prescritibilidade, o art. 142. da Lei nº 8.112/90 possui graves equívocos sobre a matéria, pois estabelece em seus parágrafos exatamente o contrário, sendo totalmente incongruente.
A estabilidade das relações jurídicas é uma preocupação real de toda sociedade, ainda mais quando se trata do poder público. Não é salutar para o direito que nas relações das pessoas, entre si ou com o Estado, não vigore a segurança jurídica, capaz de proteger o passado, pelo decurso do tempo.
É curiosa, por outro lado, a incongruência do próprio estatuto federal – Lei nº 8.112/90 - que, para o mesmo instituto, estabelece critérios diferentes. Isso ocorre com o parágrafo 2º do art. 142, que impõe o prazo de prescrição previsto na lei penal para as infrações disciplinares capituladas também como crime. Ou seja, este parágrafo, por seguir similitude com a legislação penal quanto à prescrição estipulada, determina o início da contagem a partir do dia em que o crime se consumou, conforme disposto no art. 111, § 1º, do Código Penal, e não do conhecimento, eis que esta é a regra da lei penal. Por que, para uma ocorrência de menor lesividade o critério teria que ser o de maior gravidade para os funcionários?