A redação do art. 253, II, do Código de Processo Civil, após sua alteração pela Lei n. 10.358/2001, previa que caberia ao juízo que prolatara sentença homologatória de desistência da ação (art. 267, VIII, do Código de Processo Civil) o processamento e julgamento de ação idêntica que viesse a ser proposta após a formação da coisa julgada formal. Pretendia o legislador com essa previsão normativa impedir que demandantes escolhessem o juízo para o trâmite de suas ações, mediante a distribuição de várias petições iniciais idênticas para que em subseqüência fossem formulados requerimentos de desistência naquelas varas cujo entendimento fosse contrário à tese autoral ou, ainda, cujo trâmite processual fosse maléfico.
Essa finalidade é claramente explicitada nas notas explicativas do Anteprojeto que conduziu à Lei n. 10.358/2001, redigido por Athos Gusmão Carneiro:
Evitar-se-ão, assim, as ofensas ao princípio do juiz natural,atualmente ‘facilitadas’ nos foros das grandes cidades: o advogado, ao invés de propor a causa sob litisconsórcio ativo, prepara uma serie de ações similares e as propõe simultaneamente, obtendo distribuição para diversas varas. A seguir, desistedas ações que tramitam nos juízos onde não obteve liminar, e para os autores dessas demandas postula litisconsórcio sucessivo, ou assistência litisconsorcial, no juízo onde a liminar haja sido deferida.
A alteração desse artigo do CPC foi inclusive sugerida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por ofício datado de 19.05.1994, e encaminhado ao Conselho da Justiça Federal ( of. 270/94- PRESI), com esse objetivo: obstar as ‘distribuições conduzidas’.
O tempo, contudo, revelou que a alteração realizada não foi suficiente.
Com efeito, a nova redação do inciso II do art. 253 do Código de Processo Civil previa apenas a distribuição por prevenção nos casos em que houvera sido prolatada sentença homologatória da desistência da ação pelo réu, deixando de contemplar as demais hipóteses de extinção do processo sem resolução do mérito, algumas delas, inclusive, que repousam na inércia da parte autora.
A atecnia legislativa foi incapaz de criar um mecanismo de fato eficaz para evitar a escolha de juízo. Não podendo mais desistir da ação, sob pena de vincular-se ao juízo definitivamente, bastaria que o demandante abandonasse o processo, nas situações descritas nos incisos II e III do art. 267 do Código de Processo Civil, para que escapasse à previsão.
Como forma de solucionar a falha legislativa, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região editou em 2001, em sua Consolidação de Normas, o art. 44, que previa que "o juízo que julgar extinto o processo sem solução do mérito será considerado competente, por prevenção, para processar e julgar novos processos entre as partes originárias e calcados na mesma pretensão material", ou seja, estendia a previsão do Código de Processo Civil a todas sentença de extinção do processo sem resolução do mérito.
Iguais previsões constam ainda no art. 145 do Provimento Geral da Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região; art. 407, § 3º, da Consolidação Normativa da Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 4ª Região; e art. 5º do Provimento n. 08, de 20 de março de 2002, da Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Embora essas normas hajam sido questionadas quanto a sua validade, considerando que a competência para legislar sobre processo civil é privativa da União, através das Casas Legislativas, as dúvidas foram superadas ao argumento que a matéria versada é de competência de juízo, sobre a qual os Tribunais têm disponibilidade, a teor do art. 91 do Código de Processo Civil [01].
Chegamos então à alteração promovida pela Lei n. 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, cujo art. 4º [02] conferiu nova redação aos incisos II e III do art. 253 do Código de Processo Civil, passando a ter o seguinte teor:
Art. 253. Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001)
(...)
II - quando, tendo sido extinto o processo, sem julgamento de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda; (Redação dada pela Lei nº 11.280, de 2006)
III - quando houver ajuizamento de ações idênticas, ao juízo prevento. (Incluído pela Lei nº 11.280, de 2006)
(...)
Embora finalmente haja sido dissipada qualquer dúvida acerca da obrigatoriedade de distribuição por prevenção, de ação idêntica ao juízo que haja prolatado sentença com fundamento no art. 267 do Código de Processo Civil à ação anterior, não atentou o legislador para o confronto na aplicação desta nova regra em relação ao art. 3º da Lei n. 10.259/2001.
A Lei que instituiu os Juizados Especiais Federais, em seu art. 3º [03], dispôs que a estes órgãos caberiam a competência absoluta para julgamento das causas com valor até sessenta salários-mínimos que se inserissem na regra de competência constitucional da Justiça Federal, ressalvadas algumas situações previstas no parágrafo único ou pessoas que não poderiam estar presentes nos pólos passivo ou ativo.
Em certas situações, com o perdão do trocadilho, é evidente a existência de conflito aparente de normas em certas situações. Vejamos um exemplo: proposta ação perante um dos Juizados Especiais federais para condenação da CEF ao pagamento de dano moral, a ser fixado pelo magistrado, por violação do cofre em que estavam depositadas jóias de família, o demandante requer a desistência da ação, antes da citação, a qual vem a ser homologada pelo juiz. Após a ciência da sentença, a parte ingressa novamente em juízo, perante uma das Varas Cíveis federais, com o mesmo pedido e causa de pedir, mas, desta vez, o valor atribuído à causa é equivalente a sessenta e um salários mínimos.
Qual seria, então, a norma aplicável, afinal, por um lado, o art 253 do Código de Processo Civil determina que a competência seria do Juizado, mas, de outro, o valor atribuído agora à causa lhe usurpa essa competência?
A solução passa não apenas pelos critérios clássicos de solução de conflito aparente de normas (critérios cronológicos, de especialidade e subsidiário), mas também pelo princípio constitucional do juiz natural (art. 5º, XXXVII, da Constituição da República).
De acordo com Gilmar Ferreira Mendes, "entende-se que o juiz natural é aquele regular e legitimamente investido de poderes da jurisdição, dotado de todas as garantias inerentes ao exercício de seu cargo (vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos – CF,I, II, III), que decide segundo regras de competência fixadas com base em critérios vigentes ao tempo do fato" [04].
Aliando-se à cláusula do juiz natural aos motivos que conduziram Às modificações do art. 253 do Código de Processo Civil pelas leis n. 10.358/2001 e 11.280/2006, outra não é a conclusão senão pelo reconhecimento da competência do primeiro juízo que conheceu da causa, ainda que a posterior alteração do valor a ela atribuído importe, ao menos em tese, a exclusão da competência do órgão.
Com esse entendimento, evita-se o retorno ao passado e às brechas legislativas que permitiam a antiética escolha do órgão julgador.
A mesma finalidade é atingida mediante a aplicação do princípio de que a lei posterior derroga a anterior, isto é, a superveniência da regra do Código de Processo Civil afasta, nas situações em que igualmente aplicável, o art. 3º da Lei n. 10.259/2001, por lhe ser posterior.
Outra proposta utiliza friamente o princípio da especialidade, para informar que em sede de competência dos Juizados Especiais Federais a regra de competência é originariamente informada pela Lei n. 10.259/2001, para, na falta de regra específica ou insuficiência, então recorrer ao Código processual [05].
Gostaria de propor, todavia, uma interpretação intermediária para o problema apresentado.
Inicialmente, faz-se necessário distinguir duas situações: a primeira, em que o valor atribuído à causa pode ser aferido desde o início, ainda que de forma aproximada, bastando que se efetue a soma dos valores pretendidos pelo demandante e a observância das regras de fixação de valor à causa previstas nos arts. 258 a 260 do Código de Processo Civil. A segunda situação seria, por exclusão, os casos em que o demandante não tem como avaliar, senão após o início da etapa de execução da sentença, o conteúdo econômico da demanda, de forma que o valor atribuído à causa é feito por estimativa e tão-somente para fins fiscais.
Estabelecidas essas premissas, acredito que em relação aos processos que se encontrem no primeiro daqueles dois grupos, a competência deve recair sobre o órgão judicial – Vara federal ou Juizado Especial Federal – a quem a lei atribua a função de julgar as causas do valor estipulado, ainda que a fixação desse quantum tenha sido realizada em uma segunda demanda, após a extinção sem resolução de mérito da primeira. Exemplificando: uma pessoa propõe ação requerendo a condenação da União a restituir R$ 100,00 pagos a mais a título de tributo federal, tendo atribuído à causa o valor de R$ 25.000,00, razão pela qual a competência seria de uma das Varas Cíveis federais. Ultrapassada a análise da exordial sem que o magistrado tenha verificado o valor da causa e, por conseqüência, a competência para julgamento da demanda, o processo vem a ser extinto sem resolução do mérito. O demandante propõe novamente a demanda, mas agora, perante os Juizados Especiais, e atribui corretamente valor à causa de R$ 100,00. Salvo se adotado o entendimento que privilegia o princípio da especialidade, as demais soluções conduzem à modificação da competência do processo para uma das Varas Cíveis, mesmo sendo o conteúdo econômico da demanda inferior ao patamar mínimo legal.
Outro exemplo: consumidor ajuíza ação contra a CEF objetivando a condenação da ré a proceder a revisão de contrato de financiamento imobiliário, cujo valor do contrato é inferior a R$ 24.900,00, perante o Juizado Especial federal [06]. Requerida e homologada a desistência, o demandante ingressa com nova ação perante uma das Varas Cíveis federais, mas, agora, instrui a exordial com planilha das diferenças cobradas a mais pela instituição financeira, acrescida de atualização monetária e juros, sendo que os valores apontados superam o teto permitido aos Juizados. Aqui, novamente, apenas a adoção do princípio da especialidade parece adequar a competência ao valor da causa, intenção esta que claramente foi a do legislador. As demais soluções importariam na alteração da competência para o Juizado Especial federal.
Ultrapassada a análise em que é possível ao demandante verificar o conteúdo econômico de sua pretensão, cabe-nos analisar a segunda hipótese, que versa não só sobre as situações em que a verificação do valor econômico da demanda é impossível, como também naquelas em que este é inestimável.
A solução a ser aplicada nesta situação deve ser diferente da acima analisada, sob pena de novamente conferir-se autorização para a prática de fraude processual.
Com efeito, estando o demandante insatisfeito com os rumos de sua pretensão, bastaria que causasse a extinção do processo sem resolução do mérito para que, alterando o valor da causa, propusesse a ação em outro juízo, sem que contra essa conduta pudesse ser aplicada alguma sanção processual, eis que legítima. A regra a ser aplicada a essas situações, privilegiando o postulado do juiz natural e como forma de prevenção à fraude, é aquela disposta no art. 253, II, do Código de Processo Civil, mantendo-se a ação no juízo que primeiro conheceu da causa, ainda que o valor a ela atribuído, agora, pelas normas processuais, estivesse fora de sua alçada.
Embora a reforma já haja acontecido há quase dois anos, não há na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a solução dos conflitos de competência entre Varas Cíveis federais e Juizados Especiais federais, ainda que pertencentes a mesma Região Judiciária, nos termos doa rt. 105, I, "d" da Constituição da República [07], julgado que verse sobre a discussão posta em destaque neste texto.
Estas eram as observações que gostaria de compartilhar.
Notas
Veja-se, por todos, o Conflito de Competência n. 2006.02.01.005349-7, julgado em 13.03.2007, DJ 19.03.2007, p.302, Oitava Turma Especializada do TRF 2ª Região, Rel. Desembargador Federal Poul Erik
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Art. 4º O art. 253 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 253. ..........
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II - quando, tendo sido extinto o processo, sem julgamento de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda;
III - quando houver ajuizamento de ações idênticas, ao juízo prevento.
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Art. 3º. Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas da competência da Justiça Federal até o valor de 60 (sessenta) salários-mínimos, bem como executar as suas sentenças.
§ 1º. Não se incluem na competência do Juizado Especial Cível as causas:
I – referidas no art. 109, incisos II, III e XI, da Constituição Federal, as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos;
II – sobre bens imóveis da União, autarquias e fundações públicas federais;
III – para anulação ou cancelamento de ato administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento fiscal;
IV – que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou de sanções disciplinares aplicadas a militares.
§ 2º. Quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de 12 (doze) parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput.
§ 3º. No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, 2ª ed., p. 570.
A aplicação subsidiária do CPC está inclusive disposta no art. 1º da Lei n. 10.259/2001: "São instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, aos quais se aplica, no que não conflitar com esta Lei, o disposto na Lei n.9.099, de 26 de setembro de 1995". (g.n.)
O art. 259, inciso V, do Código de Processo Civil estipula que em processos cujo mérito envolvam a discussão quanto a "existência, validade, cumprimento, modificação ou rescisão de negócio jurídico" o valor da causa deve ser o do contrato.
Veja-se, por todos, o CC 87364-MG, Primeira Seção, Relatora Ministra Denise Arruda, DJ 07.04.2008, p. 1.