RESUMO
Este breve artigo versa sobre a crise de legitimidade do Estado Democrático de Direito a partir das reflexões teóricas de Zygmunt Bauman e Lênio Streck. A modernidade líquida, de acordo com Bauman, mostra a volatilidade das instituições e a fragilidade das relações sociais, fatores que parecem refletir também na estabilidade do ordenamento jurídico. Em paralelo, Streck denuncia a fluidez da normatividade jurídica em razão da fragmentação hermenêutica e da instrumentalização do direito, a comprometer sua coerência e integridade. Este pequeno texto sugere que a crise do Estado Democrático de Direito não se restringe a problemas institucionais, mas reverbera na percepção do direito e na sua hodierna aplicação. A dissolução dos referenciais normativos sólidos e a crescente subjetividade interpretativa geram um cenário de insegurança jurídica e descrença institucional, ampliando a crise de representatividade e governabilidade. Assim, argumenta-se que a superação dessa crise de legitimidade do Estado não pode se quedar ao largo de uma reafirmação da normatividade jurídica como elemento estruturante da própria ideia de Estado, porquanto intrinsecamente ligado aos fundamentos do direito e da democracia.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito; Modernidade Líquida; Crise de Legitimidade; Hermenêutica Jurídica e Crise do Direito.
1. INTRODUÇÃO
A reflexão sobre a denominada crise do Estado de Direito emerge como uma das questões centrais no debate jurídico, político e filosófico contemporâneo, refletindo instabilidade e insofismável crise de legitimidade estatal. O Estado Democrático de Direito, pensado como uma estrutura de garantias jurídicas e institucionais voltadas à segurança jurídica, ao império da lei e à salvaguarda dos direitos fundamentais, parece enfrentar desafios capazes de pôr à prova sua capacidade de exercer tais funções legitima e eficazmente. Nessa conjuntura, a análise da relação entre a crise contemporânea do direito e a legitimidade estatal demanda uma leitura ladeada dos mecanismos que fundamentam a autoridade do Estado e a normatividade jurídica, bem como alguns fatores que precipitam sua erosão.
É certo que o Estado Moderno, em sua conformação hodierna, ancora-se predominantemente na legitimidade racional-legal weberiana1, conceito segundo o qual há no direito positivo o fundamento preambular da legitimação do Estado. Tal domínio se baseia em normas estabelecidas segundo uma estrutura racional e impessoal, sendo aplicada por instituições estatais que garantem previsibilidade e estabilidade ao sistema jurídico e, por conseguinte, à própria estrutura estatal. A legitimidade legal-racional do Estado, portanto, está intrinsecamente relacionada às normas codificadas e às instituições que as sustentam, garantindo que as decisões governamentais estejam sujeitas a critérios objetivos e procedimentos regulados.
Nessa perspectiva, nota-se que a eidos Weberiana sugere que a legitimidade do Estado é indissociável à estabilidade do ordenamento jurídico, uma vez que este constitui sua base normativa e fundamento estruturante. Desse modo, a previsibilidade das normas e a coerência do sistema jurídico são elementos essenciais para a manutenção da ordem democrática, garantindo que o exercício do poder ocorra dentro de parâmetros previamente estabelecidos e reconhecidos como legítimos, eis que sendo as normas dotadas de clareza, estabilidade e aplicabilidade equitativa, reforça-se a percepção de que o Estado atua com base no Direito, fomentando a confiança social nas instituições. Contudo, qualquer abalo nessa estrutura pode comprometer a legitimidade estatal, abrindo espaço para crises institucionais e questionamentos sobre a própria efetividade do Estado Democrático de Direito.
Neste contexto, Zygmunt Bauman2 pontua um traço característico da contemporaneidade, qual seja, a liquidez das instituições e a precariedade dos laços sociais, fenômeno que decorre da transição de uma modernidade sólida para uma modernidade líquida. O Estado, outrora um ente sólido e estruturado, caracterizado por sua previsibilidade e estabilidade institucional, torna-se cada vez mais vulnerável às pressões externas e internas, especialmente diante da globalização, do avanço das tecnologias e da erosão das identidades coletivas. Essa nova percepção fragiliza os marcos normativos que, na modernidade sólida, sustentavam a autoridade estatal e garantiam a previsibilidade das relações sociais.
Já no âmbito jurídico, Lenio Streck3 alerta para o enfraquecimento da normatividade em razão da fragmentação hermenêutica e da crescente subjetividade nas interpretações judiciais. Para o professor, a crise do Estado Democrático de Direito manifesta-se sob a forma de um decisionismo judicial que solapa a segurança jurídica e compromete a previsibilidade normativa. Tal fenômeno parece decorrer da superação do positivismo clássico desprovido de diretrizes claras sobre um novo paradigma hermenêutico que assegure a coerência, força e a integridade do direito.
Desse modo, o distanciamento do direito em relação à sua função teleológica e sua instrumentalização para fins alheios à justiça em si comprometem sua legitimidade e corroem os alicerces do Estado Democrático de Direito4. A hermenêutica jurídica — notadamente a hermenêutica constitucional — que deveria servir como um mecanismo de preservação da coerência do sistema jurídico, por vezes se transforma em um campo de disputas ideológicas e acomodações pragmáticas, permitindo interpretações casuísticas que relativizam os preceitos normativos. Como consequência, o direito deixa de ser um referencial objetivo e passa a ser moldado segundo interesses contingentes, comprometendo a credibilidade do sistema jurídico e refletindo, de igual modo, na credibilidade do próprio Estado de Direito.
Diante desse panorama, este breve texto tem como objetivo analisar se a crise do direito representa, em essência, apenas uma faceta da crise de legitimidade do Estado, ou, ao contrário, se a crise do direito fomenta, à sua maneira, os fundamentos da autoridade estatal no contexto contemporâneo. Este breve ensaio adotará uma abordagem teórica e crítica, baseando-se na análise dos conceitos de legitimidade estatal desenvolvidos por Weber, e mediante um diálogo entre Bauman e Streck, a fim de compreender as possíveis relações entre a crise do Estado Democrático de Direito e a crise do próprio Direito.
2. FORMAS DE LEGITIMAÇÃO DO ESTADO
A legitimidade do poder estatal constitui um dos pilares fundamentais da teoria política e jurídica, sendo amplamente debatida por diversos pensadores ao longo da história. Dentre esses, Max Weber destaca-se por sua abordagem sociológica sistemática, na qual examina os diferentes tipos de dominação legítima que estruturam a autoridade do Estado e fundamentam a obediência dos governados. Em sua obra Economia e Sociedade 5, Weber identifica três tipos ideais de dominação: a tradicional, a carismática e a racional-legal. Embora distintas em sua essência, tais formas delineiam padrões empíricos do exercício do poder estatal, influenciando as relações entre governantes e governados.
Segundo Weber, a dominação configura-se como uma relação de poder na qual as ordens emanadas pelos detentores da autoridade não apenas são cumpridas, mas também assimiladas pelos dominados como normas de conduta legítimas6. Para que essa dominação se efetive, torna-se imprescindível que a obediência seja percebida como um dever por aqueles que se encontram sob a autoridade de um governante. Tal reconhecimento está indissociavelmente ligado à aceitação da legitimidade do comando ou, em termos equivalentes, à crença na legitimidade do poder exercido por aqueles que governam. Nesse sentido, Weber propõe a seguinte indagação fundamental: “sobre quais princípios últimos pode basear-se a validade, a legitimidade de uma forma de dominação, isto é, a exigência de obediência da parte de ‘funcionários pelo seu senhor’ e da parte dos dominados pelo ‘senhor’ e pelos ‘funcionários’?”7.
No pensamento weberiano, os conceitos de “legitimidade” e “forma de dominação” encontram-se intimamente interligados. Considerando-se uma estrutura de dominação composta por um “senhor” (ou grupo de “senhores”) detentor do poder, por um corpo de “funcionários” responsáveis por sustentar essa dominação e por um conjunto de dominados, a legitimidade manifesta-se como o princípio que fundamenta a obediência dos funcionários ao governante e a dos dominados tanto aos funcionários quanto ao próprio senhor. A legitimação da dominação, portanto, torna-se um mecanismo crucial para a manutenção do poder, pois não apenas justifica o exercício da autoridade, mas também assegura a obediência dos subordinados. Esse processo de validação do controle político pode alicerçar-se em diferentes fundamentos, tais como etnia, ascendência sanguínea ou vantagens naturais. Cada uma dessas justificativas origina um tipo distinto de dominação8.
A depender do princípio de legitimação adotado, distintas formas empíricas de dominação emergem9. Quando a relação entre “dever de obediência” e “poder de comando” se estrutura sobre normas racionalmente instituídas, como ocorre no direito positivo, que delimita com precisão aqueles que detêm o poder e os limites de sua autoridade, configura-se a dominação racional-legal. Por outro lado, quando a legitimidade do poder decorre da tradição, ou seja, de um costume enraizado que, desde tempos imemoriais, define quem possui o direito de comandar, tem-se a dominação tradicional, cujos exemplos clássicos incluem o patriarcado, o patrimonialismo e o feudalismo. Nota-se, então, que tanto a dominação racional-legal quanto a tradicional se fundamentam na obediência a normas. Entretanto, enquanto no primeiro caso a legitimidade da ordem advém da norma jurídica estabelecida, no segundo, resulta da sujeição pessoal ao “senhor”, cuja autoridade é considerada legítima em razão da tradição10.
Dessa maneira, na dominação racional-legal, a obediência recai sobre a norma jurídica, que estabelece quem deve ser obedecido, em quais circunstâncias e em que medida. Tal aspecto é tão determinante que até mesmo aquele que exerce o comando submete-se à norma, pois ela representa, em certa medida, a própria lei. O exemplo mais puro desse modelo de dominação é a burocracia estatal moderna, em que a autoridade emana da legalidade das normas estabelecidas e não da figura do governante11. A legitimidade da obediência, assim, encontra-se justificada por um sistema normativo racionalmente estruturado, que confere validade ao comando exercido12. Em contraposição, nenhuma das formas tradicionais de legitimação pode ser qualificada como racional, uma vez que estão alicerçadas na perpetuação de costumes e práticas historicamente estabelecidas, sem um critério normativo abstrato que regule sua validade13.
Trazendo tais conceitos Weberianos ao âmbito discursivo da noção de Estado Democrático de Direito, é e se reconhecer que a dominação racional-legal aqui exposta assume papel preponderante, na medida em que a ideia de uma estrutura normativa impessoal assegura a previsibilidade das relações sociais e certa estabilidade política. Assim, Weber sustenta que esse modelo se caracteriza por um aparato administrativo burocrático, pautado na impessoalidade, na hierarquia funcional e na especialização das funções. A burocracia estatal, nesse contexto, opera conforme os princípios da legalidade e pretensa impessoalidade, garantindo que o poder seja exercido de maneira previsível e controlada.
3. PARA UMA DEFINIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Uma ontologia do Estado Democrático de Direito reside na conjugação inextricável entre normatividade jurídica e princípios democráticos, forjando uma estrutura estatal que transcende a mera legalidade formal para alçar-se à esfera substancial da legitimidade política e jurídica. O adjetivo “democrático” adicionado ao conceito de Estado de Direito não constitui mero apêndice retórico, porquanto, em sua essência, representa a pedra angular que diferencia tal configuração estatal das formas precedentes de organização política, impondo-lhe a necessária subordinação ao princípio da soberania popular e à efetiva concretização dos direitos fundamentais.
O conceito de Estado Democrático de Direito transcende a mera formalidade das constituições e dos códigos legais, demandando um compromisso efetivo com a institucionalização dos direitos fundamentais e a limitação do poder político por meio de freios e contrapesos. Conforme Loewenstein14, o traço marcante do Estado Democrático de Direito está na distribuição e nos mecanismos institucionais de controle do poder político, fazendo com que este seja efetivamente submetido aos seus destinatários, ou seja, ao povo. Nesse sentido, a concepção clássica do Estado de Direito remonta à tradição liberal, na qual o governo se submete ao ordenamento jurídico, garantindo a previsibilidade das normas e a segurança jurídica. Com a consolidação da democracia representativa, essa estrutura normativo-institucional foi gradativamente aprimorada, culminando na necessidade de um equilíbrio dinâmico entre legalidade e legitimidade.
O Estado Democrático de Direito estrutura-se, portanto, em três eixos fundamentais: a supremacia das normas jurídicas, a separação dos poderes e a salvaguarda dos direitos fundamentais. A primazia da lei constitui o princípio basilar desse modelo, assegurando que todas as esferas de poder estejam sujeitas à normatividade jurídica, vedando, assim, qualquer forma de arbítrio ou exercício discricionário do poder estatal. A separação dos poderes, conforme delineada por Montesquieu, assume a função de evitar a concentração de autoridade em um único órgão, distribuindo competências e instituindo mecanismos de fiscalização mútua. Por fim, a tutela dos direitos fundamentais opera como o alicerce axiológico desse modelo, conferindo substância ao conceito de dignidade humana e garantindo a efetividade das liberdades civis e políticas15.
Ademais, a noção de Estado Democrático de Direito, remete à proliferação de formulações teóricas que, a despeito de suas peculiaridades, convergem na centralidade da limitação do poder estatal, da primazia dos direitos e garantias fundamentais e da institucionalização de mecanismos de controle e participação popular. Karl Loewenstein16 enfatiza que a estrutura democrática constitucional exige a presença de “instituições efetivas por meio das quais o exercício do poder político esteja distribuído entre os detentores do poder, e por meio das quais esses mesmos detentores estejam submetidos ao controle de seus destinatários, constituídos como os verdadeiros soberanos do poder”. Nesse diapasão, a lógica subjacente ao Estado Democrático de Direito reside na dispersão da autoridade e na garantia de que o poder político permaneça submetido à vontade popular.
A legitimidade do Estado Democrático de Direito não se exaure na observância formal dessas premissas, exigindo uma articulação com a democracia representativa e o sistema jurídico. A representação popular, materializada pelo sufrágio universal e pela participação cidadã nos processos decisórios, confere à estrutura estatal sua legitimidade política, garantindo que o governo derive sua autoridade da vontade coletiva. O sistema jurídico, por sua vez, deve operar como um mecanismo de institucionalização dessa vontade, traduzindo os princípios democráticos em normas cogentes e aplicáveis. Assim, o equilíbrio entre legalidade e representatividade emerge como substrato basilar do Estado Democrático de Direito, assegurando que o ordenamento jurídico não se descole das demandas sociais e que a democracia não se converta em um instrumento de tirania da maioria17.
No entanto, a limitação do poder, por si só, não se revela suficiente para consolidar a complexa tessitura do Estado Democrático de Direito, sendo imperioso o estabelecimento de mecanismos institucionais que assegurem a legitimidade do exercício estatal. A democracia representativa, conquanto historicamente consolidada como método de escolha dos governantes, emerge insuficiente na consecução plena dos ideais democráticos, dado a recorrente dissociação entre representantes e representados. Como adverte José Afonso da Silva18, a soberania popular “impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na simples formação das instituições representativas, mas exige um completo desenvolvimento democrático”. Portanto, o Estado Democrático de Direito não pode se restringir à realização periódica de eleições, devendo estruturar-se de maneira a fomentar o envolvimento contínuo da sociedade na formulação, deliberação e implementação das políticas públicas.
Nota-se, portanto, que atribuir ao Estado Democrático de Direito uma definição estanque e definitiva é tarefa hercúlea, quiçá um tanto quanto utópica, ante a fluidez inerente às concepções democráticas e às mutações político-jurídicas que lhe dão forma ao longo do tempo. Todavia, perece verossímil delinear certos elementos fundamentais que o caracterizam. Canotilho19 sintetiza o princípio da soberania popular em cinco dimensões, das quais se destacam: a necessidade de justificação e legitimação do poder político, a titularidade desse poder pelo povo, a estruturação institucional que permita sua efetivação e a conformação do ordenamento jurídico à vontade popular. Esses elementos evidenciam que o Estado Democrático de Direito transcende a mera submissão do Estado às normas jurídicas, exigindo a presença de um arcabouço institucional que garanta não apenas a previsibilidade e estabilidade do direito, mas, pari passu, a efetividade da participação cidadã nos processos decisórios.
Ademais, a concretização do Estado Democrático de Direito não se esvaia na dimensão político-institucional, abarcando igualmente a promoção da justiça social e da igualdade substancial. Como observa Bonavides20, “o velho liberalismo, na estreiteza de sua formulação, não pôde resolver os problemas essenciais da ordem econômica e social, sendo irremediavelmente superado pela necessidade de um Estado voltado à realização da justiça distributiva”. Dessa maneira, a evolução do Estado de Direito para sua vertente democrática implicou a absorção de preceitos fundamentais do constitucionalismo social, orientados à concretização de direitos fundamentais em suas diversas dimensões.
A institucionalização do poder popular, aliada à prevalência da ordem jurídica e à efetivação dos direitos fundamentais, configura, assim, a essência do Estado Democrático de Direito. Sua existência pressupõe um equilíbrio dinâmico entre governabilidade e participação, entre legalidade e legitimidade, entre liberdade individual e justiça social. Trata-se, portanto, de um modelo em constante construção, cujo aprimoramento depende da permanente vigilância democrática e da consolidação de mecanismos que assegurem a prevalência da vontade popular na estrutura do Estado. Em uma concepção fenomenológica heideggeriana, o Estado Democrático de Direito não se reduz a uma estrutura estática, mas se desvela na medida em que é projetada em direção ao seu próprio sentido — sua essência estruturante; trata-se de um ente histórico que se constitui no tempo, no entrelaçamento de decisões e fatos sociais, sempre à mercê da facticidade, jamais plenamente realizado, mas em perpétuo vir-a-ser.