Capa da publicação 8 de Janeiro: CPC pode inspirar o processo penal?
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Atos de 8/1 e a analogia do CPC no processo penal: garantias em risco

21/04/2025 às 22:33

Resumo:


  • A sistemática adotada pelo STF nos processos de 8 de janeiro de 2023 gerou críticas no meio jurídico devido à intimação apenas das testemunhas arroladas pelo Ministério Público.

  • A aplicação analógica do artigo 3º do CPP ao processo penal tem sido questionada por comprometer garantias fundamentais como o contraditório e a paridade de armas.

  • A interpretação do artigo 3º do CPP deve ser restritiva, considerando que normas processuais penais restritivas devem ser interpretadas de forma a proteger os direitos do acusado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Nos casos do 8 de Janeiro, o STF impôs à defesa a apresentação direta de testemunhas. Essa analogia com o CPC compromete o contraditório e a paridade de armas?

Nos processos penais instaurados em decorrência dos eventos de 8 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal adotou uma sistemática diferenciada para a produção da prova testemunhal de defesa, provocando intensas críticas no meio jurídico. Nessas ações, o Ministro Alexandre de Moraes determinou que apenas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público seriam intimadas judicialmente, incumbindo à defesa a apresentação direta de suas testemunhas, sem intermediação do juízo. Ademais, condicionou a oitiva de testemunhas abonatórias à apresentação de declarações escritas, afastando a possibilidade de inquirição oral.

A justificativa do relator se fundamenta na aplicação subsidiária do artigo 455 do Código de Processo Civil ao processo penal, com base no artigo 3º do Código de Processo Penal. Este permite, nos casos omissos, a utilização da legislação processual civil, desde que compatível com os princípios que regem o processo penal. Segundo Moraes, tal sistemática visa à celeridade processual e à prevenção de abusos, especialmente diante da complexidade de ações com múltiplos réus.

Contudo, a aplicação analógica do CPC ao processo penal suscita questionamentos relevantes. É compatível com as garantias constitucionais a transposição de institutos processuais civis para um sistema de natureza acusatória, estruturado na proteção do acusado? A aplicação do artigo 455 do CPC pode comprometer o direito à prova, o contraditório e a paridade de armas, sobretudo em contextos nos quais a defesa apresenta maior vulnerabilidade.

A interpretação extensiva do artigo 3º do CPP tem ganhado espaço na jurisprudência brasileira como mecanismo de suprimento de lacunas legislativas e de racionalização da marcha processual. Além da intimação direta de testemunhas, admite-se, com base em dispositivos do CPC, a aplicação da preclusão consumativa (art. 507)1, a multa do art. 102, § 4º do CPC a casos de agravos em recursos extraordinários, em matéria penal, manifestamente inadmissíveis ou improcedentes2, a imposição de astreintes (arts. 139, IV e 536)3, o indeferimento liminar de habeas corpus com fundamento no art. 932, inciso III, do CPC4 etc. Embora essas medidas sejam justificadas por critérios de eficiência, impõem riscos significativos ao sistema acusatório e à preservação das garantias fundamentais.

A principal objeção à interpretação analógica do artigo 3º do CPP é de ordem estrutural: os princípios que regem o processo civil, como a liberdade dispositiva e a igualdade formal entre as partes, são incompatíveis com o modelo penal, centrado em uma relação de poder entre o Estado-acusação e o indivíduo acusado. Tal incompatibilidade está presente desde Beccaria, que, em Dos delitos e das penas, condenava a interpretação extensiva das normas penais, por compreender que o juiz deve aplicar estritamente a lei penal, evitando qualquer forma de arbitrariedade (BECCARIA, 2000).

Luigi Ferrajoli, ao estruturar o modelo garantista, também rejeita a analogia in malam partem, sustentando que o processo penal deve operar com normas estritas e previamente estabelecidas. Para ele, a analogia compromete a função epistêmica do processo e fragiliza garantias como o contraditório, a motivação das decisões e a imparcialidade judicial (FERRAJOLI, 2006). Nesse sentido, a interpretação do art. 3º do CPP deve ser restritiva, sob pena de se instaurar um decisionismo autoritário e violador do devido processo legal.

Na doutrina nacional, Aury Lopes Jr. critica a aplicação da Teoria Geral do Processo ao processo penal, denunciando o equívoco de tratá-lo como mera extensão do processo civil. A importação de conceitos como “lide” e “interesse de agir” compromete a autonomia dogmática do processo penal e fragiliza seus pilares constitucionais, como a presunção de inocência e a imparcialidade. Para o autor, é imprescindível a construção de uma teoria própria da acusação penal, fundada nos limites e finalidades do garantismo (LOPES JR., 2017).

Juarez Cirino dos Santos, por sua vez, enfatiza que o processo penal é uma relação de poder desigual, em que o Estado exerce sua autoridade contra o cidadão. Diferente do processo civil, que admite a paridade de armas entre partes privadas, o processo penal exige cautela redobrada e proteção ampliada ao acusado (SANTOS, 2011).

Carlos Maximiliano, embora admita a analogia como instrumento hermenêutico no âmbito processual, reconhece que sua aplicação é inadmissível em normas que imponham restrições à liberdade ou aos direitos de defesa. Nesses casos, a interpretação deve ser estrita e taxativa, sob pena de violação das garantias individuais (MAXIMILIANO, 1997).

Dessa forma, a interpretação do artigo 3º do CPP deve observar, como princípio hermenêutico essencial, que normas processuais penais com potencial de restringir a liberdade ou os direitos do acusado só podem ser interpretadas restritivamente e, se for o caso, aplicadas por analogia apenas quando resultarem em benefício ao réu.

Conclui-se, portanto, que a aplicação analógica do artigo 455 do CPC ao processo penal, com base no artigo 3º do CPP, representa uma distorção metodológica que compromete a integridade do modelo acusatório. A diretriz adotada pelo STF nos processos de 8 de janeiro de 2023 evidencia os riscos da importação de institutos civis sem adequada filtragem constitucional. A tradição garantista impõe uma leitura estrita das normas que limitam direitos, vedando interpretações extensivas ou analogias prejudiciais ao acusado. A eficiência processual não pode justificar o enfraquecimento de garantias históricas do direito penal democrático. Assim, a analogia, quando admitida, deve operar exclusivamente em favor da liberdade.

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Referências bibliográficas

BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Criminal n. 0000642-26.2014.8.24.0070, Relator: Luiz Cesar Schweitzer, Quinta Câmara Criminal, julgado em 14 nov. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental nos embargos de declaração no agravo em recurso extraordinário n. 1.321.696-ED-AgR/MG, Relator: Ministro André Mendonça, Segunda Turma, julgado em 6 jun. 2022, publicado em 29 jun. 2022.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal n. 5005444-22.2020.4.04.7002, Relator: Des. Federal Luiz Carlos Canalli, Sétima Turma, julgado em 31 ago. 2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n. 70070359153, Relatora: Fabianne Breton Baisch, Oitava Câmara Criminal, julgado em 20 jul. 2016, publicado em 21 jul. 2016.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.


Notas

1 TJ-SC - Apelação Criminal: 0000642-26.2014 .8.24.0070, Relator: Luiz Cesar Schweitzer, Data de Julgamento: 14/11/2019, Quinta Câmara Criminal

2 STF - ARE nº 1.321.696-ED-AgR/MG, Min. André Mendonça, Segunda Turma, j. 06/06/2022, p. 29/06/2022.

3 TRF-4 - APR: 50054442220204047002, Relator.: Luiz Carlos Canalli, Sétima Turma, Data de Julgamento: 31/08/2022.

4 TJ-RS - HC: 70070359153 RS, Relator.: Fabianne Breton Baisch, Data de Julgamento: 20/07/2016, Oitava Câmara Criminal, Data de Publicação: 21/07/2016.

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Sobre o autor
Henrique Gonçalves Sanches

Advogado responsável pela área penal do escritório Gilberto Rodrigues Gonçalves e Advogados Associados. Mestrando em Direito Político e Econômico e membro do Grupo de Pesquisa de Direito Penal Econômico e Internacional da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHES, Henrique Gonçalves. Atos de 8/1 e a analogia do CPC no processo penal: garantias em risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7964, 21 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113633. Acesso em: 5 dez. 2025.

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