1. Contexto e Acusações Formais na Ação Penal (APET) 12.100
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) dedicou uma sessão extraordinária à análise de um processo de grande relevância para o cenário jurídico e político nacional: o recebimento ou rejeição de uma denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no âmbito da Ação Penal (APET) 12.100. Esta etapa processual, prevista no ordenamento jurídico brasileiro, representa um filtro inicial onde o Judiciário avalia se a peça acusatória possui os elementos mínimos necessários para dar início a uma ação penal formal contra os indivíduos apontados como autores de infrações penais.
Neste núcleo específico da denúncia, a PGR imputa responsabilidade criminal a um grupo de seis pessoas: Fernando de Souza Oliveira, Felipe Garcia Martins Pereira, Marcelo Costa Câmara, Marília Ferreira de Alencar, Mário Fernandes e Silvinei Vasques. As acusações são graves e abrangem um espectro de delitos que atentam contra a estrutura do Estado Democrático de Direito e o patrimônio público.
Conforme detalhado pela PGR e apresentado ao STF, os crimes imputados aos denunciados incluem:
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Organização Criminosa Armada: A acusação se baseia no Art. 2º da Lei nº 12.850/2013, que define o crime de "Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa". A denúncia aponta ainda a incidência da causa de aumento de pena prevista no § 2º do mesmo artigo, por se tratar, supostamente, de uma organização armada.
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Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito: A imputação refere-se ao Art. 359-L do Código Penal, que criminaliza a conduta de "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". A forma tentada é considerada, conforme o Art. 14, inciso II, do Código Penal.
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Tentativa de Golpe de Estado: A denúncia também aponta para a prática do crime previsto no Art. 359-M do Código Penal: "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído", igualmente na modalidade tentada (Art. 14, II, CP).
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Dano Qualificado: Os fatos narrados pela PGR também se enquadrariam no crime de dano, previsto no Art. 163. do Código Penal, com as qualificadoras descritas em seu parágrafo único, incisos I ("com violência à pessoa ou grave ameaça"), III ("contra o patrimônio da União [...]") e IV ("por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima").
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Deterioração de Patrimônio Tombado: Por fim, imputa-se o crime do Art. 165. do Código Penal, que consiste em "Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico".
A PGR aplicou, na construção da denúncia, as regras do concurso de pessoas, conforme o Art. 29. do Código Penal ("Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade"), e do concurso material, previsto no Art. 69. do mesmo código ("Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido").
Na narrativa acusatória, a PGR descreveu a existência de uma suposta organização criminosa estruturada em núcleos, com o objetivo de atentar contra as instituições democráticas. Sustentou que os denunciados deste grupo, ocupando posições profissionais estratégicas à época dos fatos, teriam gerenciado ações específicas dentro dessa trama. Segundo a acusação, Silvinei Vasques, Marília Ferreira de Alencar e Fernando de Souza Oliveira teriam coordenado o uso de forças policiais para interferir no processo eleitoral e apoiar a permanência ilegítima do então presidente no poder. Mário Fernandes e Marcelo Costa Câmara, por sua vez, seriam responsáveis por monitorar e planejar ações contra autoridades públicas, além de manter contato e estimular lideranças envolvidas nos atos violentos de 8 de janeiro de 2023. Já Felipe Garcia Martins Pereira teria sido o responsável por elaborar, apresentar e defender, perante o então Presidente da República e militares, um projeto de decreto com medidas excepcionais que configurariam o golpe de Estado planejado.
É fundamental destacar que a análise realizada pela Primeira Turma do STF nesta fase se limita a verificar a admissibilidade formal e material da denúncia. O Tribunal avalia se a peça acusatória descreve fatos que, em tese, constituem crime, se há indícios mínimos de autoria e materialidade (justa causa) e se estão presentes os requisitos do Art. 41. do Código de Processo Penal, não incidindo nas hipóteses de rejeição do Art. 395. do mesmo diploma legal. A decisão pelo recebimento da denúncia não representa um juízo condenatório, mas sim o reconhecimento de que existem elementos suficientes para a instauração da ação penal, momento a partir do qual as provas serão produzidas sob o contraditório e a ampla defesa, permitindo aos acusados refutar as imputações.
2. Questões Preliminares de Competência e Imparcialidade no Julgamento do STF
Antes de adentrar na análise da existência ou não de justa causa para a instauração da ação penal, o julgamento da APET 12.100 na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) foi marcado por intensos debates acerca de questões preliminares cruciais, levantadas pelas defesas dos acusados. Essas questões versavam sobre a própria competência do STF para julgar o caso, a adequação da Primeira Turma como órgão julgador (em detrimento do Plenário) e a imparcialidade tanto dos Ministros julgadores quanto do Procurador-Geral da República, responsável pela acusação.
A Competência do Supremo Tribunal Federal em Xeque:
Diversas defesas, notadamente as de Felipe Garcia Martins Pereira, Marília Ferreira de Alencar, Mário Fernandes e Silvinei Vasques, arguiram a incompetência do STF para processar e julgar os acusados neste núcleo da denúncia. O argumento central residia no fato de que nenhum dos denunciados detinha, à época do oferecimento da denúncia ou mesmo dos fatos, foro por prerrogativa de função perante o STF. Alegava-se que a conexão com investigações envolvendo autoridades com foro privilegiado, como o ex-presidente da República (investigado em outros inquéritos relacionados), não seria suficiente para atrair a competência da Suprema Corte para julgar cidadãos comuns.
Essa discussão tangencia a complexa questão da extensão do foro por prerrogativa de função, tema recorrente nos tribunais brasileiros. A defesa invocou o entendimento consolidado na Ação Penal (AP) 937 (Questão de Ordem), na qual o STF restringiu o foro privilegiado a crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Argumentou-se que, cessada a função ou não havendo relação direta com ela, a competência deveria ser declinada para a primeira instância da Justiça.
Contudo, a Primeira Turma, seguindo a linha já adotada no julgamento do primeiro núcleo da denúncia e decisões anteriores do Plenário relacionadas aos atos de 8 de janeiro, rejeitou majoritariamente essa preliminar. O Ministro Relator, Alexandre de Moraes, reiterou que a competência do STF foi firmada desde o início das investigações sobre os ataques às sedes dos Três Poderes, abrangendo todos os envolvidos, executores e supostos autores intelectuais, dada a conexão probatória e a gravidade dos fatos contra o Estado Democrático de Direito. Mencionou-se também a recente mudança jurisprudencial do Plenário que, em março de 2025, passou a entender que a competência do STF se mantém mesmo após a cessação do mandato, caso os crimes tenham sido cometidos durante o exercício da função e relacionados a ela, o que, embora não aplicado diretamente para fundamentar a competência neste caso específico (já estabelecida anteriormente), reforça a vis atractiva da Corte para fatos conexos. O Ministro Luiz Fux, contudo, manteve sua posição divergente, entendendo que, sem foro privilegiado atual, a competência seria da Justiça comum, ou, se mantida a lógica de julgamento como se ainda exercessem função pública, a competência seria do Plenário.
A Competência da Turma versus Plenário:
Subsidiariamente à tese de incompetência do STF, as defesas argumentaram que, caso a Corte fosse considerada competente, o julgamento deveria ocorrer no Plenário, e não na Primeira Turma. Alegaram que a Emenda Regimental nº 59, de dezembro de 2023, que alterou o Regimento Interno do STF (RISTF) para permitir a distribuição de certas ações penais às Turmas, seria inadequada para casos de tamanha magnitude e repercussão, especialmente aqueles com potencial conexão a um ex-Presidente da República. O Ministro Fux, em seu voto vencido quanto à competência, também defendeu a atribuição do Plenário, relembrando que uma emenda anterior, durante sua presidência, havia concentrado as ações penais no órgão máximo da Corte.
A maioria da Turma, no entanto, acompanhou o relator ao rejeitar essa arguição. O Ministro Flávio Dino ressaltou que a mudança regimental foi aprovada pela maioria expressiva do Plenário antes mesmo da existência formal desta denúncia específica, não se tratando de medida casuística. Enfatizou que as Turmas são órgãos fracionários do próprio STF e que suas decisões representam a manifestação do Tribunal, sendo uma prática comum em colegiados para otimizar os trabalhos. A Ministra Carmen Lúcia acrescentou que aplicar uma regra diferente a este caso, quando outros já foram julgados pelas Turmas sob a égide da nova norma regimental, feriria o princípio da isonomia.
Imparcialidade dos Julgadores e do Acusador:
As defesas de Felipe Garcia Martins Pereira, Marcelo Costa Câmara e Silvinei Vasques levantaram suspeitas sobre a imparcialidade do Ministro Relator Alexandre de Moraes e dos Ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino, pleiteando seus impedimentos ou suspeições com base nos artigos 252 e 254 do Código de Processo Penal. Tais alegações já haviam sido objeto de análise e rejeição no julgamento do núcleo anterior e, crucialmente, pelo Plenário do STF em incidentes processuais específicos (Arguição de Suspeição 236), onde a Corte, por ampla maioria, afastou qualquer comprometimento da imparcialidade dos magistrados mencionados para julgar os fatos relacionados à PET 12.100. A Turma, portanto, reafirmou por unanimidade a rejeição dessas arguições.
De forma inédita neste núcleo, a defesa de Felipe Garcia Martins Pereira também arguiu o impedimento e a suspeição do Procurador-Geral da República, Paulo Gonet Branco, acusando-o de conduzir a investigação e a denúncia de forma parcial, distorcendo fatos e ignorando provas. O Ministro Relator e a Turma, por unanimidade, rechaçaram a alegação, destacando que o Ministério Público, no exercício de sua função e diante de indícios de autoria e materialidade, tem o dever de oferecer a denúncia (princípio da obrigatoriedade). O Ministro Fux lembrou que vigora, nesta fase, o princípio in dubio pro societate, e a discordância da defesa com a tese acusatória não configura, por si só, quebra de imparcialidade. Ademais, o Plenário já havia afastado, por unanimidade, arguição semelhante contra o PGR.
Assim, a Primeira Turma superou essas importantes questões preliminares, reafirmando a competência do STF e da própria Turma para o caso, bem como a imparcialidade dos seus membros e do órgão acusador, passando então à análise das demais nulidades processuais arguidas.
3. Nulidades Processuais Arguidas pelas Defesas dos Acusados
Uma parte substancial do debate na sessão da Primeira Turma do STF foi dedicada à análise de diversas nulidades processuais apontadas pelas defesas dos seis acusados. Muitas dessas alegações espelhavam argumentos já apresentados e rejeitados durante a análise do recebimento da denúncia contra o primeiro grupo de investigados no mesmo inquérito, mas algumas novas nuances e argumentos específicos foram trazidos à baila. O Ministro Relator, Alexandre de Moraes, e os demais membros da Turma examinaram cada ponto, majoritariamente afastando as nulidades arguidas nesta fase processual.
Prazos e Acesso à Denúncia:
Uma das contestações recorrentes referia-se ao prazo de 15 dias para a apresentação da resposta à acusação, previsto no Art. 4º da Lei nº 8.038/1990 e no Art. 233. do Regimento Interno do STF (RISTF). As defesas, como a de Felipe Martins, argumentaram que o prazo seria exíguo diante da complexidade do caso e do vasto volume de documentos e mídias a serem analisados, configurando cerceamento de defesa. A Turma, contudo, reafirmou a legalidade do prazo estabelecido na legislação, destacando que as defesas foram devidamente apresentadas, inclusive com sustentações orais detalhadas, demonstrando que não houve prejuízo concreto ao exercício do contraditório e da ampla defesa.
A defesa de Mário Fernandes, especificamente, levantou a questão do acesso aos autos, alegando que o indeferimento do pedido para que lhe fosse franqueado um computador na unidade prisional onde se encontrava detido preventivamente violaria o Art. 4º, §1º, da Lei 8.038/90. O relator, seguido pela Turma, rejeitou a alegação, afirmando que o dispositivo legal não especifica a forma de acesso (física ou digital) e que o direito foi garantido pelo acesso irrestrito dos advogados constituídos aos autos digitais, os quais poderiam levar cópias impressas ao cliente. Ademais, ressaltou a vedação legal ao uso de eletrônicos por presos, conforme o Art. 50, inciso VII, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).
Acesso às Provas e Cadeia de Custódia:
Várias defesas, incluindo as de Marcelo Câmara, Marília Alencar e Felipe Martins, questionaram o acesso integral às provas e a integridade da cadeia de custódia. Argumentou-se que as defesas não tiveram acesso aos arquivos originais apreendidos, mas apenas a cópias digitais fornecidas pela Secretaria do STF, o que impediria a verificação da autenticidade e a análise de eventual quebra na cadeia de custódia (Art. 158-A e seguintes do CPP). A defesa de Felipe Martins, em particular, insistiu na necessidade de acesso a dados de geolocalização (ERBs) que teriam sido obtidos pela investigação, mas não integralmente disponibilizados ou utilizados na denúncia, argumentando que seriam cruciais para contrapor alegações sobre sua presença em reuniões específicas.
O STF afastou essas nulidades no presente momento. O relator considerou "esdrúxula" a alegação de nulidade pelo fato de as cópias terem sido fornecidas pela Secretaria, afirmando que se tratou de uma medida para facilitar o trabalho das defesas e que não havia qualquer indício de fraude ou adulteração. Ressaltou que, nesta fase, a defesa se manifesta sobre os fatos e provas apresentados pela acusação. Eventuais questionamentos sobre a cadeia de custódia, a necessidade de perícias ou o acesso a provas não utilizadas pela PGR são matérias a serem aprofundadas durante a instrução processual, caso a denúncia seja recebida. O Ministro Flávio Dino complementou, afirmando que a garantia da cadeia de custódia repousa na fé pública dos agentes estatais envolvidos e que o recorte probatório feito pela acusação é necessário para viabilizar a defesa, que poderá, na instrução, apresentar seu próprio recorte e contraprovas.
Outras Nulidades Alegadas:
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Prova Ilícita e Fishing Expedition: Alegações genéricas sobre a ilicitude de provas derivadas de investigações supostamente ilegais (como o Inquérito 4878) ou de "pesca probatória" foram rejeitadas, reafirmando-se a legalidade dos procedimentos investigatórios já validados pela Corte.
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Resposta Simultânea ao Colaborador: A tese de nulidade por apresentar a resposta à acusação simultaneamente ao colaborador Mauro Cid foi novamente afastada, pois, antes do recebimento da denúncia, não há formalmente réus nem processo instaurado nos termos do CPP. Foi reiterado que, após o recebimento, na fase subsequente, o colaborador se manifesta antes dos demais corréus.
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Irregularidade na Distribuição: A alegação de irregularidade na distribuição da PET 12.100 foi afastada.
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Nulidade da Prisão Preventiva: A defesa de Felipe Martins arguiu a nulidade de sua prisão preventiva, o que contaminaria provas subsequentes. O relator declarou a questão preclusa, pois a legalidade da prisão e das cautelares já havia sido confirmada pela Primeira Turma em julgamento de agravo regimental anterior.
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Pendência de Agravos Regimentais: A defesa de Marcelo Câmara argumentou que a análise do recebimento deveria aguardar o julgamento de agravos pendentes. A Turma rejeitou, lembrando que recursos como o agravo regimental, em regra, não possuem efeito suspensivo que impeça o prosseguimento do feito principal.
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Ilegitimidade de Parte: A defesa de Fernando Oliveira alegou sua ilegitimidade passiva. O STF entendeu que a questão se confunde com o mérito (análise da efetiva participação e relevância da conduta), sendo que a denúncia descreveu fatos que, em tese, justificam a inclusão do nome na peça acusatória, o que basta para esta fase de admissibilidade.
Dessa forma, a Primeira Turma, por unanimidade, rejeitou o conjunto de nulidades processuais arguidas, considerando que não havia vícios capazes de impedir a análise da admissibilidade da denúncia naquele momento.
4. A Validade da Colaboração Premiada e a Cadeia de Custódia das Provas Digitais
Dois pontos de natureza probatória e procedimental receberam atenção especial durante a análise das preliminares na APET 12.100: a validade do acordo de colaboração premiada firmado pelo Tenente-Coronel Mauro César Barbosa Cid com a Polícia Federal e a integridade da cadeia de custódia das provas digitais que embasaram a denúncia. Ambos os temas foram objeto de contestações pelas defesas e de deliberação pela Primeira Turma do STF.
A Colaboração Premiada de Mauro Cid:
A defesa de Felipe Garcia Martins Pereira, especificamente, arguiu a nulidade do acordo de colaboração premiada firmado entre Mauro Cid e a Polícia Federal, homologado pelo Ministro Relator Alexandre de Moraes. Argumentos semelhantes já haviam sido levantados por outras defesas no julgamento do primeiro núcleo da denúncia. As críticas geralmente orbitam em torno da credibilidade do colaborador, da voluntariedade do acordo (especialmente considerando que Cid esteve preso preventivamente) e da própria legalidade do procedimento de homologação. A defesa de Silvinei Vasques, por exemplo, mencionou em sua sustentação oral que a colaboração não possuiria "credibilidade e, principalmente, fiabilidade alguma".
A Primeira Turma, no entanto, rejeitou por unanimidade essa preliminar, reiterando a posição firmada na sessão de 26 de março de 2024, referente ao núcleo 1. O Ministro Relator destacou que o acordo foi "devidamente homologado com a máxima observância dos requisitos legais", conforme a Lei nº 12.850/2013, que rege o instituto. Enfatizou a voluntariedade de Mauro Cid ao celebrar e manter o acordo, sempre acompanhado por seus advogados. Citou trechos da ementa da decisão anterior (itens 11 e 12), que afirmam a "legalidade e validade do acordo" e a competência do relator para supervisionar o processo, inclusive realizando audiências para "sanar eventuais irregularidades" e verificar a manutenção dos requisitos legais, como a voluntariedade, regularidade, legalidade e adequação dos benefícios e resultados.
O Ministro Flávio Dino, em seu voto, fez uma analogia bíblica, comparando a introdução de novos institutos legais, como a colaboração premiada, à travessia no deserto, onde podem ocorrer desvios, mas o instituto em si não deve ser demonizado ("transformado para sempre no bezerro de ouro"). Argumentou que a colaboração é um "instrumento utilíssimo" e não pode ser descartada aprioristicamente, devendo ser analisada caso a caso quanto ao cumprimento dos requisitos legais.
Crucialmente, a Turma distinguiu o momento atual – análise da validade formal do acordo para fins de recebimento da denúncia – do momento futuro da instrução processual. O Ministro Relator e o Ministro Luiz Fux ressaltaram que, caso a denúncia seja recebida, as defesas terão ampla oportunidade de impugnar o conteúdo das declarações do colaborador, participar de sua oitiva e confrontá-lo, buscando eventuais contradições ou omissões. O Ministro Cristiano Zanin lembrou que a própria Lei nº 12.850/2013, em seu Art. 4º, § 16, veda a condenação (e, por extensão jurisprudencial, o recebimento da denúncia) com fundamento exclusivo nas declarações do colaborador, o que, segundo a Turma, não seria o caso dos autos, onde a denúncia se apoiaria também em outros elementos.
Cadeia de Custódia das Provas Digitais:
Outro ponto de intensa argumentação foi a suposta quebra da cadeia de custódia das provas digitais (mensagens, documentos eletrônicos, dados de geolocalização). As defesas de Marília Alencar, Felipe Martins e Marcelo Câmara, entre outras, alegaram não ter tido acesso aos dispositivos originais apreendidos ou às mídias brutas, recebendo apenas cópias fornecidas pela Secretaria do STF em HDs ou pen drives. Argumentaram que isso impediria a verificação da integridade dos dados e a realização de contraperícia adequada, violando os preceitos do Art. 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, que tratam da preservação do local do crime e da cadeia de custódia. A defesa de Felipe Martins, por exemplo, mencionou a necessidade de acessar dados de ERBs (Estações Rádio Base) que comprovariam sua localização em datas cruciais.
O STF, contudo, não acolheu a alegação de nulidade neste momento. O Ministro Relator classificou como "absurda" a ideia de que o fornecimento de cópias pela Secretaria do Tribunal configuraria nulidade, explicando que foi uma medida para facilitar o acesso das partes ao vasto material digital, sem qualquer indício de fraude ou manipulação por parte dos servidores da Corte. O Ministro Flávio Dino reforçou que a garantia da cadeia de custódia se baseia na fé pública dos agentes estatais (peritos, policiais, servidores da justiça) responsáveis pela coleta e preservação dos vestígios, conforme o próprio CPP.
A Turma entendeu que questionamentos mais aprofundados sobre a integridade dos dados, a necessidade de perícias específicas ou o confronto com os arquivos originais são matérias próprias da instrução processual, a ser realizada caso a denúncia seja recebida. Neste momento de admissibilidade, avalia-se a existência de indícios a partir do material apresentado pela acusação e disponibilizado às defesas.
Portanto, tanto a validade formal do acordo de colaboração premiada quanto a regularidade da cadeia de custódia das provas digitais foram confirmadas pela Primeira Turma como suficientes para permitir a análise do recebimento da denúncia, ressalvando-se a possibilidade de aprofundamento e contraditório sobre o conteúdo e a integridade dessas provas na fase de instrução.