5. Análise da Justa Causa e a Necessidade de Individualização das Condutas na Denúncia
Superadas as questões preliminares de competência, imparcialidade e nulidades formais, o cerne da deliberação da Primeira Turma do STF na APET 12.100 voltou-se para a análise da substância da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Neste ponto, o debate concentrou-se em verificar se a peça acusatória preenchia os requisitos legais indispensáveis para o início de uma ação penal, notadamente a existência de justa causa e a adequada individualização das condutas imputadas a cada um dos denunciados.
A justa causa, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, e refletido no Art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal (CPP), exige que a denúncia esteja amparada por um lastro probatório mínimo – elementos informativos colhidos na investigação – que indiquem a ocorrência do crime (materialidade) e forneçam indícios suficientes de quem seja seu autor (autoria). Sem esse suporte fático-probatório inicial, a acusação é considerada temerária e deve ser rejeitada liminarmente.
Intimamente ligada à justa causa está a exigência de individualização das condutas, prevista no Art. 41. do CPP. Este dispositivo determina que a denúncia deve conter "a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas". Isso significa que a acusação não pode ser genérica; ela precisa descrever, de forma clara e precisa, qual foi a participação específica de cada denunciado nos fatos delituosos, permitindo-lhes compreender exatamente do que estão sendo acusados para que possam exercer plenamente seu direito à ampla defesa e ao contraditório. A ausência dessa individualização pode levar à inépcia da denúncia (Art. 395, I, CPP).
A Posição da Acusação:
O Procurador-Geral da República, Dr. Paulo Gonet Branco, sustentou que a denúncia cumpria ambos os requisitos. Reafirmou a narrativa apresentada no julgamento do primeiro núcleo, argumentando que os fatos atribuídos aos seis denunciados deste grupo foram devidamente individualizados, descrevendo as ações específicas que cada um teria gerenciado dentro da suposta organização criminosa voltada à abolição violenta do Estado Democrático de Direito e à tentativa de golpe. Segundo a PGR, as condutas de coordenação de forças policiais (Silvinei, Marília, Fernando), monitoramento de autoridades e interlocução com manifestantes (Mário, Marcelo), e elaboração/apresentação de decreto golpista (Felipe Martins) estavam suficientemente delineadas e amparadas pelos elementos colhidos na investigação, justificando o recebimento da denúncia.
As Contestações das Defesas:
As defesas, por outro lado, atacaram veementemente a denúncia por considerá-la inepta e carente de justa causa em relação aos seus clientes. Argumentaram que a PGR construiu uma narrativa baseada em ilações, suposições e na mera presença dos acusados em determinados locais ou cargos, sem apresentar provas concretas e individualizadas de suas participações dolosas nos crimes imputados.
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Fernando Oliveira: Sua defesa alegou surpresa com a acusação de omissão nos atos de 8 de janeiro, afirmando que sua investigação inicial focava apenas na interferência eleitoral. Sustentou que ele agiu diligentemente como Secretário de Segurança Pública substituto, buscando apoio da Força Nacional e gerenciando a crise, e que não havia provas de dolo ou omissão relevante.
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Felipe Martins: A defesa contestou a relevância de sua presença no Palácio da Alvorada (seu local de trabalho) e a falta de provas concretas que o ligassem à "minuta do golpe" encontrada com Mauro Cid, ressaltando a ausência de mensagens ou testemunhos diretos e a alegação de que ele estava em outro estado no dia 8 de janeiro. A falta de acesso a dados de geolocalização foi apontada como um obstáculo à contraprova.
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Marcelo Câmara: Argumentou-se que a acusação de "monitoramento" era uma distorção de atividades rotineiras de assessoria e que não havia descrição de sua participação efetiva nos atos de 8 de janeiro ou na suposta organização criminosa. Sua atuação posterior na gestão do acervo presidencial foi apresentada como prova de sua legalidade.
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Marília Alencar: A defesa defendeu que o Boletim de Inteligência (BI) era um documento técnico regular, sem finalidade de obstrução eleitoral, e que não foi repassado a Silvinei Vasques. Sua atuação em 8 de janeiro teria sido correta e reconhecida pelo interventor federal.
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Mário Fernandes: A defesa focou na alegação de que a "minuta do punhal", principal elemento contra ele, jamais teria sido apresentada a ninguém, segundo o próprio colaborador Mauro Cid, esvaziando a justa causa para a acusação e para sua prisão preventiva.
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Silvinei Vasques: A defesa negou o uso do BI para direcionar a fiscalização da PRF, apresentando dados periciais próprios e destacando a ausência de eleitores impedidos de votar. Contestou a interpretação de suas falas em reuniões e sua participação nos atos de 8 de janeiro, dos quais estava distante e sem função de comando.
Esses argumentos defensivos buscavam demonstrar que a denúncia falhava em estabelecer o nexo causal entre as condutas individuais de cada acusado e os crimes graves que lhes foram imputados, configurando, assim, a ausência de justa causa e/ou a inépcia da peça acusatória. Caberia, então, à Primeira Turma do STF ponderar esses elementos e decidir se os indícios apresentados pela PGR eram suficientes para superar o filtro inicial e autorizar a instauração da ação penal, onde as provas seriam aprofundadas e o mérito definitivamente julgado.
Fonte: https://youtu.be/3ALMGoltV8M?si=hs7uU6wEtIgrwxHn