Capa da publicação Cargos comissionados: quando há desvio de função?
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Estado de cargos inconstitucional.

Apontamentos sobre a deformação estrutural dos cargos em comissão na administração pública brasileira

Resumo:


  • O artigo analisa a existência de um "estado de coisas inconstitucional" no uso de cargos em comissão na administração pública brasileira.

  • O texto destaca a teoria do "estado de coisas inconstitucional" consagrada pelo STF e a jurisprudência relacionada aos cargos comissionados.

  • Propõe-se a categoria conceitual de "estado de cargos inconstitucional", evidenciando o desvirtuamento sistêmico na nomeação e utilização desses cargos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Cargos comissionados são usados como moeda política, em violação à moralidade e impessoalidade. Como enfrentar esse estado de coisas inconstitucional no serviço público?

Resumo: O presente artigo analisa a existência de um estado de coisas inconstitucional no uso dos cargos em comissão na administração pública brasileira, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), da doutrina e das práticas administrativas correntes. O texto evidencia o desvirtuamento sistêmico da natureza desses cargos, que têm sido utilizados como instrumentos de apadrinhamento político e recompensa por apoio eleitoral, em flagrante violação aos princípios da moralidade, impessoalidade e eficiência administrativa. O estudo propõe a qualificação desse fenômeno como um “estado de cargos inconstitucional”, evidenciando sua natureza estrutural e disseminada em todos os entes federativos e órgãos autônomos.

Palavras-chave: Estado de Coisas Inconstitucional; Cargos em Comissão; Apadrinhamento Político; Administração Pública; STF.


1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um modelo republicano de administração pública, fundado em princípios como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Contudo, a prática cotidiana revela o desrespeito sistemático a esses mandamentos, especialmente na nomeação para cargos em comissão, os quais, em tese, deveriam ser destinados exclusivamente às atribuições de direção, chefia e assessoramento (art. 37, V, CF/88).

A despeito disso, assiste-se, nas três esferas da Federação, ao uso indiscriminado desses cargos como moeda de troca por apoio político, promessas de campanha ou laços pessoais, fomentando o que ora se propõe denominar de estado de cargos inconstitucional, expressão inspirada na teoria do estado de coisas inconstitucional, consagrada pelo STF na ADPF 347.


2. O Conceito de Estado de Coisas Inconstitucional

A teoria do estado de coisas inconstitucional (ECI), de origem colombiana, foi incorporada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347/DF, sob relatoria do Min. Marco Aurélio. Na ocasião, reconheceu-se que o sistema penitenciário brasileiro viola de forma generalizada e estrutural os direitos fundamentais, caracterizando-se por omissões estatais múltiplas e persistentes.

O STF definiu o ECI como uma situação em que há:

  • violação massiva de direitos fundamentais;

  • falha estrutural e reiterada da atuação estatal;

  • ineficiência das medidas pontuais;

  • necessidade de atuação judicial estrutural e sistêmica.


3. Cargos em Comissão e a Jurisprudência do STF

O Supremo Tribunal Federal tem afirmado, em sucessivos precedentes, que os cargos comissionados não podem ser usados para o desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais, devendo restringir-se às funções de direção, chefia e assessoramento.

Jurisprudência destacada:

  • ADI 1.150/RS – Rel. Min. Cármen Lúcia: o STF declarou inconstitucional a criação indiscriminada de cargos em comissão para atividades técnicas, ressaltando que tais cargos devem ser a exceção, e não a regra.

  • ADI 4.125/MT – Rel. Min. Ayres Britto: reconheceu-se a inconstitucionalidade da criação de centenas de cargos em comissão com funções meramente operacionais, sob o argumento de burla à exigência de concurso público.

  • RE 1.041.210/SP (Tema 1010 da Repercussão Geral) – Rel. Min. Alexandre de Moraes: reafirmou-se a obrigatoriedade de concurso público para cargos de natureza técnica ou administrativa, vedando sua ocupação por comissionados.


4. Direção, Chefia e Assessoramento: Funções e Limites Constitucionais

O permissivo constitucional para provimento de cargos em comissão encontra-se no art. 37, V, da Constituição Federal, que autoriza sua criação "destinados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento". Essas funções exigem confiança política, lealdade institucional e vinculação direta à autoridade nomeante, mas possuem contornos técnicos que merecem análise:

  • Direção: corresponde à condução estratégica de órgãos ou unidades administrativas, com autonomia decisória e responsabilidade institucional. Pressupõe liderança sobre equipes, deliberação sobre prioridades e interação com outras esferas de governo.

  • Chefia: refere-se à coordenação de setores internos, com supervisão de tarefas, orientação de servidores efetivos e implementação de diretrizes superiores. Exige capacidade gerencial, mas não necessariamente decisões estratégicas.

  • Assessoramento (função de staff): consiste em prestar apoio técnico ou político à autoridade competente, seja por meio da produção de informações, elaboração de pareceres ou planejamento de ações. A função de staff, como conhecida na administração, não realiza diretamente os fins do órgão, mas apóia sua direção. É, portanto, função auxiliar, de caráter intelectual ou estratégico, nunca operacional ou meramente executório.

Conforme esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello, tais cargos não podem ser utilizados para "exercício de tarefas rotineiras, administrativas ou técnicas", sob pena de burla à exigência constitucional do concurso público.


5. Estado de Cargos Inconstitucional

Com base nas premissas anteriores, propõe-se a categoria conceitual de estado de cargos inconstitucional, como expressão de uma realidade estruturalmente viciada em todas as instâncias e órgãos do poder público, caracterizada por:

  • Uso desvirtuado e generalizado de cargos comissionados para funções ordinárias e técnicas;

  • Nomeações motivadas por interesses político-partidários, laços familiares ou promessas de campanha, em detrimento da impessoalidade;

  • Criação legislativa artificial de cargos de confiança como forma de contornar os limites constitucionais da nomeação mediante concurso público;

  • Resistência institucional à profissionalização da administração pública, em clara afronta ao mérito como critério de seleção.

Além disso, em muitas unidades da Federação, nem sequer há lei formal instituindo os cargos comissionados, ou as leis existentes não estabelecem as respectivas atribuições funcionais, contrariando o art. 61, §1º, II, "a", da Constituição. Tal lacuna legislativa inviabiliza o controle de constitucionalidade e de legalidade das nomeações, pois torna impossível a aferição do nexo entre o cargo e as funções de direção, chefia ou assessoramento.


6. O Apadrinhamento e a Portariocracia

A prática do apadrinhamento – vulgarmente chamada de “cabide de empregos” – perpetua-se mediante o uso político de portarias de nomeação, que funcionam como instrumentos de gratificação por apoio político ou fidelidade partidária.

Nas palavras do Ministro Luiz Fux, em voto no RE 1.041.210/SP, essa lógica resulta em um “retrocesso civilizatório”, pois afronta os pilares da impessoalidade e da meritocracia. A expressão "portariocracia", cunhada em meio à crítica doutrinária, reflete o poder informal conferido a gestores para nomear e exonerar à revelia dos princípios constitucionais.


7. A Dinâmica Sistêmica e o Papel do Judiciário

A inércia dos Poderes Executivo e Legislativo na correção dessa distorção enseja a intervenção judicial estrutural, a exemplo do que ocorreu na ADPF 347. O Judiciário, em especial o STF, tem o papel de proteger os direitos fundamentais à moralidade e à igualdade de oportunidades no serviço público, o que inclui reprimir práticas abusivas na criação e ocupação de cargos comissionados.

Doutrina como a de José dos Santos Carvalho Filho alerta que a burla ao concurso público configura grave inconstitucionalidade material, demandando controle de constitucionalidade repressivo e preventivo, inclusive com ações populares, mandados de segurança e ADIs.


8. Conclusão

O fenômeno do estado de cargos inconstitucional é uma expressão da falência estrutural do princípio do mérito na administração pública brasileira. Enraizado na cultura patrimonialista, o uso desviado dos cargos em comissão compromete a funcionalidade, a eficiência e a legitimidade do Estado.

É urgente que o Supremo Tribunal Federal, as Cortes locais, o Ministério Público e a sociedade civil avancem no reconhecimento e enfrentamento desse quadro, sob pena de se perpetuar um Estado capturado por interesses pessoais e partidários, incompatível com os fundamentos da República.

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9. Considerações Finais: Quem poderá nos salvar?

O quadro delineado ao longo deste artigo revela um fenômeno que ultrapassa desvios pontuais ou irregularidades administrativas isoladas. O uso de cargos em comissão como moeda de troca política e instrumento de aparelhamento institucional é um problema estrutural, sistêmico e transpartidário, presente nas esferas municipal, estadual e federal — inclusive nos órgãos que deveriam zelar pela legalidade e pelo controle do poder, como Ministérios Públicos, Defensorias, Tribunais de Contas e, não raramente, o próprio Poder Judiciário.

Como bem disse o Ministro Luiz Fux, esse cenário representa um retrocesso civilizatório. Mas talvez a crítica mais profunda seja a da realidade concreta: o Brasil construiu sua promessa republicana sobre a ideia de meritocracia seletiva via concurso público — e foi justamente esse instituto que se tornou, como reconheceu o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da 20ª Vara Federal do TRF1, “o verdadeiro milagre brasileiro”. Em meio a tantos vícios institucionais, o concurso público segue sendo, ainda que enfraquecido, a ponte entre a cidadania e o Estado, o último reduto de isonomia, sobretudo para as camadas sociais historicamente excluídas do poder.

No entanto, quando até mesmo as mais altas Cortes da República não estão imunes à lógica do compadrio — com indicações e nomeações que frequentemente ultrapassam os limites da impessoalidade e da técnica — resta à sociedade um questionamento retórico, porém urgente:

“E agora, quem poderá nos defender?”

Como diria Chapolin Colorado, o herói improvável dos desassistidos, se até o Judiciário está infectado pelo estado de coisas inconstitucional, quem poderá nos salvar?

Talvez, enquanto a resposta não vier dos poderes instituídos, ela deva vir da própria sociedade civil, pelo exercício da cidadania ativa, do controle social e da cobrança firme por reformas estruturais que recolquem o mérito, a legalidade e a moralidade no centro da vida pública.


Referências Bibliográficas

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 38. ed. São Paulo: Atlas, 2024.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

STF. ADPF 347/DF. Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 09/09/2015.

STF. ADI 1.150/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 18/10/2006.

STF. RE 1.041.210/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 16/09/2020.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS JÚNIOR, Raimundo Wilson Pereira. Estado de cargos inconstitucional.: Apontamentos sobre a deformação estrutural dos cargos em comissão na administração pública brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7968, 25 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113648. Acesso em: 5 dez. 2025.

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