4. APLICABILIDADE E EFETIVIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS
A aplicabilidade de uma norma jurídica revela a capacidade que ela tem de produzir efeitos, enquanto a efetividade se relaciona ao impacto gerado por aquela norma.
No caso das medidas protetivas, essa efetividade está diretamente condicionada à atuação articulada do sistema de justiça, das instituições de segurança pública e das políticas públicas de apoio às vítimas. Em outras palavras, não basta que o dispositivo normativo produza efeitos formais, é imprescindível que esses efeitos se traduzam em mudanças concretas, capazes de interromper o ciclo da violência e garantir a proteção integral das mulheres.
De acordo com o IPEA, a Lei Maria da Penha contribuiu para a redução de aproximadamente 10% nos casos de feminicídio em comparação ao cenário contrafactual sem a lei. Segundo o mesmo instituto, mais de 1 milhão de medidas protetivas de urgência foram solicitadas em 2019 no Brasil, sendo concedidas mais de 90% (BRASIL, 2024).
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), o Brasil registrou em 2023 o total de 540.255 medidas protetivas de urgência concedidas, representando um crescimento significativo em relação aos anos anteriores. Dentre essas, 81,4% foram deferidas pelo Judiciário, o que demonstra uma resposta célere do sistema de justiça, ao menos no plano decisório. No entanto, a efetiva fiscalização do cumprimento dessas ordens ainda representa uma lacuna preocupante (BRASIL, 2024).
Entretanto, os desafios práticos são inúmeros. Um crescimento de 9,8% nos registros de violência doméstica notificados, totalizando 258.941 casos, e o aumento de 33,8% nas denúncias de violência psicológica, com 38.507 registros, evidenciam que, apesar do avanço na conscientização, o sistema ainda enfrenta dificuldades na prevenção e no monitoramento contínuo dos casos. As tentativas de feminicídio, que chegaram a 2.797, e os 1.247 feminicídios consumados, reforçam essa realidade, sobretudo no que diz respeito à efetividade da proteção ofertada pelo aparato legal. Como um reforço da ideologia patriarcal, os homens representam 90% dos assassinos de mulheres (BRASIL, 2024).
Por um lado, vê-se como avanço o aumento do número de denúncias de violência doméstica. As medidas protetivas, ao darem visibilidade ao problema, contribuíram para a diminuição da cultura de silêncio que envolvia as vítimas de violência. Muitas mulheres passaram a se sentir mais seguras para denunciar seus agressores, sabendo que o sistema judiciário estava disposto a tomar providências imediatas (BARBOSA, 2022).
De outro viés, a conscientização ainda convive com inúmeros obstáculos estruturais. As ações estatais ainda não conseguiram criar uma sensação de credibilidade e confiança total na população, onde os agressores na maioria das vezes não são punidos na forma da lei.
Além disso, a aplicação das medidas protetivas sofre impacto direto da ausência de infraestrutura adequada nos Estados e Municípios. Muitas localidades carecem de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), casas-abrigo e equipes multidisciplinares capacitadas. Essa precariedade compromete não apenas a celeridade na aplicação das medidas, mas também a segurança das vítimas no período posterior à concessão da proteção judicial (BARBOSA, 2022)
No tocante à segurança, a Polícia Militar, por meio da Patrulha Maria da Penha implementada em diversas unidades da federação, tem um papel relevante e promissor no monitoramento das medidas protetivas, realizando visitas regulares às vítimas e fiscalizando o cumprimento das ordens judiciais. A atuação dessa patrulha tem sido fundamental para ampliar a proteção oferecida pelas medidas judiciais ao contribuir significativamente para a redução da reincidência da violência, além de promover sensação de segurança às vítimas (HELAL, VIANA, 2019).
Adicionalmente, uma análise interseccional revela que mulheres negras, indígenas, trans ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica enfrentam barreiras adicionais no acesso às medidas protetivas. Essa realidade reforça a importância de políticas públicas sensíveis às especificidades desses grupos, que, segundo CERQUEIRA et al. (2015, p. 7), dependem de “uma política integrada, com investimentos contínuos e ações multissetoriais” para alcançar a efetividade desejada.
Freitas e Meneguin (2013) afirmam que a eficácia da política pública depende de sua inserção no contexto sociopolítico e da capacidade institucional de operacionalizá-la com qualidade e regularidade. Dessa forma, a efetividade das medidas protetivas, mesmo que respaldada por um arcabouço normativo robusto, carece de esforços coordenados para superar os gargalos estruturais e promover uma aplicação eficaz das normas.
Em síntese, a análise empírica revela que, embora a Lei Maria da Penha represente um avanço normativo significativo, a consolidação de sua eficácia depende de superação dos obstáculos práticos. A transformação do potencial protetivo da lei em proteção real às mulheres exige um comprometimento político e a implementação contínua de políticas públicas integradas que fortaleçam as redes de apoio e acolhimento no país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei Maria da Penha representou um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro ao conferir visibilidade, normatividade e eficácia à proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Reconhecida internacionalmente como uma das legislações mais avançadas no enfrentamento à violência de gênero, a Lei nº 11.340/2006 reafirma o compromisso do Estado brasileiro com a promoção e salvaguarda dos direitos humanos das mulheres.
A análise dogmática demonstrou a robustez dos dispositivos legais que estruturam a Lei Maria da Penha, que não apenas sancionam o agressor, mas também asseguram uma proteção integral à vítima por meio das medidas protetivas de urgência.
No entanto, a avaliação empírica destaca que a efetividade prática dessas medidas ainda esbarra em desafios relevantes. Ainda que os dispositivos legais estejam consolidados, a resposta estatal muitas vezes permanece fragmentada, ineficiente ou insuficiente, sobretudo em contextos regionais marcados por desigualdades sociais.
Para que o potencial transformador da lei se concretize, é imprescindível a adoção de uma abordagem intersetorial que integre o sistema de justiça, a segurança pública, a assistência social e outras políticas de suporte. Investimentos na capacitação dos operadores do Direito, na ampliação dos serviços especializados e na criação de uma rede de apoio efetiva são medidas indispensáveis para a superação dos entraves identificados.
Há uma necessidade urgente de se implementar políticas públicas de caráter preventivo, voltadas à transformação das estruturas patriarcais que ainda perpetuam a violência contra a mulher. A educação para a igualdade de gênero, desde os primeiros anos escolares, e a mobilização comunitária são instrumentos fundamentais para desconstruir estigmas, ressignificar papéis sociais e fomentar uma cultura de respeito, equidade e não violência.
Portanto, embora a Lei Maria da Penha tenha proporcionado um arcabouço jurídico robusto e simbólico, sua plena eficácia depende da conjugação entre vontade política, alocação orçamentária, eficiência institucional e participação ativa da sociedade civil. A transformação do panorama da violência contra a mulher exige não apenas a manutenção de um marco legal avançado, mas também a mobilização contínua dos entes governamentais e da sociedade civil para assegurar que a proteção prevista se traduza em segurança real para as vítimas.
REFERÊNCIAS
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Notas
1https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.826.htm
2https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13984.htm#art2
3https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13984.htm#art2
4https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.826.htm#art6
5https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.bak2#art461%C2%A75
Abstract: The Maria da Penha Law (Law No. 11.340/2006) stands as a fundamental normative milestone in the Brazilian legal system, establishing specific instruments to confront domestic and family violence against women. Grounded in the constitutional principles of human dignity, gender equality, and the protection of human rights, the legislation institutes civil, criminal, and procedural measures aimed at preventing violence, protecting victims, and holding perpetrators accountable. This paper is dedicated to a doctrinal analysis of the Maria da Penha Law, dividing the investigation between its normative structure—with emphasis on the definition of forms of violence and on protective measures—and the evaluation of its practical applicability as evidenced by recent statistical data. The study seeks to comprehensively understand the legal foundations that underpin the creation of the law and the challenges encountered in implementing its protective measures within the context of the Brazilian legal system.
Key words : Maria da Penha Law; Legal Framework; Domestic Violence; Protective Measures; Human Rights